Uma amiga, que me sabe ímpio e a quem me queixei do calor infernal que nos assola, aconselhou-me benevolamente a converter-me, a fim de escapar ao castigo térmico: «Fernando, tente aguentar-se. Converta-se e sairá do inferno – diz-me ela». Não este inferno, que é objecto de estudo e previsões do IPMA, mas o que nos espera a alguns de nós, depois do trânsito terreno. Ora convertido estou eu, há muito. Sempre que vejo alguns comentadores da nossa praça televisiva, imediatamente invoco a preciosa ajuda divina: - “Meu Deus!” O mesmo acontece quando me entram pelos ouvidos dentro certas opiniões desconchavadas que tenho de suportar com paciência cristã: - “Santo Deus!”
Talvez a minha invocação tenha um valor sobretudo interjectivo (de interjeição). É como dizer “Bolas!” ou “Chiça! Ou “Apre!”, esta última conotada com a terceira idade, por causa da associação com o mesmo nome. Mas não deixo de invocar o santo nome do Senhor, e, contrariamente a Voltaire, que dizia: “Cumprimentamo-nos, mas não nos falamos”, eu falo com ele, embora naqueles termos lacónicos que referi.
Voltando à conversão: qualquer que seja o entendimento que o Supremo Tribunal do Juízo Final fizer do meu comportamento terreno, não escaparei a uma passagem pelo Inferno. Basta um breve exame de consciência para me certificar.
Chega a minha alma lá abaixo (que o caminho estreito do Céu é ascendente, mas para o Inferno a via é larga e descendente), e, chamuscada como vai, por via da cremação, o Mafarrico franqueia-lhe imediatamente a entrada da recepção, devidamente climatizada. Pergunta-lhe se tem passe verde e manda-a sentar num mocho mal-amanhado, talhado a golpes de canivete. Abana a cauda e os cornos, e pergunta-lhe de chofre:
- Diz-me lá que pecados cometeste em vida!
A minha alma titubeia, trémula e enxofrada, e cicia:
- Em jovem, teria eu uns dezassete anos, que é uma idade do Diabo! ... Peço perdão: é uma idade tramada! Apaixonei-me por uma actriz loura, americana, novinha e bonita como um anjo, como aqueles que só há lá no Céu …. Peço perdão, novamente; bonita que nem uma chama ardente. Era amante de um milionário, milionário que tinha um filho, filho esse que se apaixona por ela e vice-versa e aquilo gera uma confusão dos Infernos. Perdão: gera um conflito intergeracional, acrescido de implicações nas relações intrafamiliares e no domínio patrimonial. Não me lembro do nome dela, nem do título do filme. Só me ficou a recordação desse amor infeliz, a que se seguiram vários outros que não vou contar, porque compreendo a Sua dificuldade em ouvir tantas almas que diariamente por aqui passam.
- Só isso?! – retruca-me o Mafarrico, com espanto.
- Bem, tenho outros pecadilhos, tudo mais ou menos venial. Não me ocorre nenhum verdadeiramente capital e que valha o tempo que lhe estou a roubar! Ah! Talvez um: fui comunista toda a vida. Aposto que esse não tem remissão!
- Ora! Como te enganas! Comunistas é o lado pra que melhor durmo. Eu até me dou bem com eles. Sobretudo desde que mandei um para o Céu – um tal Karl Qualquer Coisa – que armou aqui um alvoroço insuportável, com greves, comícios e manifestações a toda a hora.
- Ah! Sei quem é. Já ouvi contar essa história. Parece que Deus também não o suportou e finou-se.
- É isso mesmo. Eu fui à missa do sétimo dia e trouxe o Karl de volta, não fosse ele lembrar-se de apelar à união das almas oprimidas de todo o mundo e subverter a ordem sobrenatural das coisas. Aliás, ele disse-me logo que as relações de produção, aqui, são mais equilibradas do que no Céu: eu próprio, entidade patronal, me encarrego do fornecimento da energia, dou uma mãozinha sempre que alguma alma reclama assistência médica, e quando reivindicam aumentos da temperatura ou do horário de trabalho, visitas a almas amigas retidas no Purgatório, etc., assino de imediato a convenção colectiva. No fundo, acabei com as classes, enquanto lá em cima continuam com aquela corte profusa de anjos, arcanjos, querubins, beatos e santos, todos a viver à custa das pobres almas que por lá vagueiam, absortas e ausentes como doentes de Alzheimer. Portanto, já vês: que não seja por isso. Se, no Juízo Final, te deram guia de marcha para aqui, tenho de concluir que o Líder Supremo se equivocou.
E, num sussurro quase imperceptível:
– Acontece aos melhores, com tantos processos em tramitação. O teu lugar é no Céu. Vou já pôr-te a caminho, que tenho mais com que me ocupar. Tens aí o passe verde?
A minha alma não ficou lá muito feliz com a rejeição demoníaca. Neste sítio quente e seco, ela sabia, agora mais do que nunca, que ia encontrar montes de amigos e conhecidos fecundos em malfeitorias. No Céu, eram só almas puras, sem mácula alguma, insonsas e sem graça, mal-grado a Graça divina.
Mark Rutte fez recentemente um hiperbólico elogio ao papá Trump: nunca nenhum outro Presidente dos States logrou a façanha histórica que ele, Trump, cumpriu com inigualável galhardia: levar os europeus a investirem 5% do seu PIB no Orçamento da Defesa. O panegírico não deve ter caído nada bem lá para os lados de Biden e kamala. Por ser injusto. Então, os chamados Democratas não acabariam, mais dia menos dia, por fazer o mesmo, ou parecido, ou pior? É sabido que, nisto de investimentos na Defesa, como em muitos outros domínios, são parentes muito chegados.
Quem não deve ter ficado muito satisfeito foram alguns americanos e outros cidadãos do mundo inteiro, que se lembraram da invasão do Capitólio, das perdas de vidas nessa acção épica, da absolvição plenária de todos os envolvidos e, para cúmulo, da atitude do Senhor Rutte quando, há pouco tempo, na Sala Oval, ouviu da boca do seu papá a intenção de anexar o Canadá, parceiro da NATO, mais a Gronelândia, que o parceiro dinamarquês da NATO administra, em regime de Commonwealth. Como nos lembramos bem, o Senhor Rutte, na ocasião, nem sequer ciciou: – “Olhe que o Direito Internacional … Olhe que a Aliança do Atlético Norte … (em versão nunomeliana) Olhe que o art.º 5.º …” Nadinha. Rabinho entre as pernas e sorriso nos lábios. O Zelensky, se calhar, também não gostou, mas como os States não são a Rússia, tudo bem. Quanto aos Japoneses, que ouviram o Senhor da Sala Oval gabar-se (apesar de não querer usar tais exemplos – cruzes, canhoto!) do óptimo trabalho feito pelo Enola Gay em Hiroshima e Nagasaki, esses também devem ter ficado acabrunhados, mas, lá está!, os States não são a Coreia do Norte. E, entre nós, só muito poucos quisemos saber se o Governo português acha bem colocar o porta-aviões das Lajes ao serviço de uma operação militar especial contra o Irão, violando o Direito Internacional. Mas, lá está, uma vez mais (que chatice!): os States são nossos aliados desde antes do 25 do 4. Se fosse um navio russo a navegar aqui ao largo, a coisa fiaria mais fino, não é, meu Almirante? Lá ia o Mondego atrás dele. Mesmo a meter água pela escotilha. O respeitinho é muito bonito! Oh yes!
Ora este ilustre traste, compatriota do social-democrata ex-presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, que considerava a solidariedade um valor extremamente importante, mas que tínhamos obrigações e não podíamos gastar todo o dinheiro em mulheres e álcool para, depois, pedirmos ajuda, este traste, dizia eu, faz um perfeito pendant com os nossos dirigentes comunitários: aquele trio composto por duas senhoras, que representam à perfeição o ideal de sensibilidade e delicadeza do eterno feminino, mais o nosso compatriota que em tempos pôs termo ao ostracismo a que estavam votados os partidos à esquerda do PS, relativamente ao arco da governação, ideal do bloco central de interesses igualmente sensíveis e delicados. Porque é que o fez? Talvez um vaipe ou uma aparição do espectro do pai. Como aconteceu ao Hamlet, num contexto dinamarquês pré-comunitário.
Decididamente, algo está podre no reino da Dinamarca, fora uma série de outros, e cada vez mais sinto, com o João de Melo, que o meu mundo não é deste reino. É certo que o meu respeito por esta gente nunca foi muito, e o que pudesse subsistir levou já sumiço. O nojo tomou-lhe o lugar. A loucura que parece ter-se apoderado (uma vez mais) destes donos das nossas vidas mereceria um acesso colectivo de loucura dos cidadãos. Algo semelhante ao que, algumas vezes, na História, se revelou capaz de inverter o rumo dos acontecimentos e que não me apetece agora explicar.
Uma coisa sempre direi: até estou disponível para investir, não 5, mas 10 ou mesmo 20% da minha pensão de aposentação num orçamento da Defesa que me proteja das ameaças que esta corja representa para a humanidade. As democracias ocidentais que, em Setembro de 1938, se mancomunaram com Hitler, na Conferência de Munique, excluindo a URSS (pois, pois, falem-me do Pacto de Agosto 39!) e dando luz verde à ocupação dos Sudetas, meses depois seguida da invasão e ocupação dos países europeus, reúnem-se agora com Trump, no Lupanar Oval, num exercício de diplomacia que é o único que conhecem – o da vassalagem, que rima com vilanagem. Que tristeza!
José Estêvão Cruz, com um currículo de deputado, de autarca, de jornalista (para além do exercício mais propriamente profissional e granjeador do pão para a boca), é também um prolífico escritor, com um assinalável número de romances, frequentemente focados na vida das gentes do Sotavento algarvio, em diferentes momentos históricos.
A sua obra alia as características próprias da ficção literária – nomeadamente no tocante ao estilo e às categorias da narrativa, com personagens que interagem e dialogam no espaço e no tempo que lhes é próprio – ao didactismo de um narrador que detém conhecimentos profundos sobre a vida das gentes que dão consistência e espessura aos seres de papel que as personagens sempre são. Tal didactismo não se limita, porém, a este conhecimento directo, tangível, do dia-a-dia de quem labuta por uma bucha de pão e um tecto.
A obra de José Estêvão Cruz é, toda ela, reveladora de uma vida, em boa parte, consagrada à defesa dos interesses dos trabalhadores, nos diferentes cargos electivos que exerceu. Mostra-nos isso num registo linguístico muito concreto – por vezes, mesmo técnico –, sempre que se trata de questões relacionadas seja com a vida tout court e a actividade profissional dos pescadores, mariscadores e armadores, seus percalços e pendências com as autoridades fiscalizadoras (construção clandestina, contrabando, vigência do acordo de pescas entre os Estados ibéricos), seja no respeitante à legislação, aos procedimentos e às relações entre os dois países.
A construção, em tempo recorde, de uma barraca de lata, no areal de Monte Gordo, por um jovem casal de namorados – João Largo e Almerinda Ferreira –, ansioso por privacidade, em tempos de contra-revolução, com a AD no governo central e uma Câmara comunista em Vila Real de Santo António, constitui o ponto de partida do romance Sob o Céu das Fronteiras.
Essa barraca de lata, ainda sem tecto, serve de abrigo e de cenário a uma primeira entrega dos namorados aos jogos do amor. Porém, logo na manhã seguinte, são acordados por funcionários que os instam a abandonar a ideia de terem ali um poiso. Num tempo em que construções clandestinas precárias se espraiam pela zona poente do areal de Monte Gordo, o projecto SAAL prevê a construção de uma rua, separando o mar e o areal mais a ele chegado, da área onde as barracas são já numerosas. Ora a barraca recém-erguida ficaria mesmo no meio dessa rua ainda por rasgar. A vizinhança mobiliza-se, solidária com os namorados, mas a diplomacia municipal logra pôr água na fervura, com a promessa de um «programa de reabilitação dos loteamentos implantados no areal da praia a capricho dos habitantes, com alinhamentos irregulares» e a cedência de «terrenos em regime de direito de superfície».
O desvendamento do enredo do romance será o melhor meio de acicatar o apetite do potencial leitor? Não sei. Pelo sim, pelo não, vou acrescentar três ou quatro pormenores: várias peripécias levam à separação temporária do casal; as relações transfronteiriças azedam com o encerramento da fronteira fluvial, fruto de discordâncias quanto a um acordo de pescas de 1969, sobretudo em termos de vigência; João Largo vê-se desterrado por algum tempo em mares e terras da Mauritânia, na sequência de um incêndio e naufrágio; entra na história uma espanhola militante da causa do Saara Ocidental e da Frente Polisário, procurada pela polícia em virtude da sua semelhança com uma etarra; Almerinda faz-se operária conserveira e sofre um aborto na sequência de uma carga da Polícia de Intervenção, a mando do Governo Central, por ocasião de uma greve do sector conserveiro. Acho que foram cinco (pormenores). Venham mais cinco, digo-vos eu, que gostei do que li e me lembrei de Redol. E do Zeca, claro.
O serviço público de TV (RTP1) brindou-me ontem, enquanto almoçava, com 50 minutos ininterruptos de Selecção Nacional. Durante este lapso de tempo, pesquisei todos os outros canais informativos e, em todos eles, as imagens se equivaliam: Selecção Nacional. Depois de cogitar brevemente na hipótese de haver informação sobre os conflitos em curso no mundo ou sobre a actualidade nacional, optei por desligar o aparelho. Almoço concluído, digestão iniciada, não estava disposto a esperar mais. Mas, sem TV, deu-me para reflectir, coisa que me acontece esporadicamente e que não é nada boa para a digestão, mas enfim… E então, eis que comecei por reflectir na importância das Selecções Nacionais, que empolgam milhões de meus semelhantes, em Portugal, e ainda mais milhões de meus semelhantes em tudo menos na nacionalidade, que ele há Selecções Nacionais um pouco por todo o planeta e, quem sabe, noutras galáxias circundantes da Terra, centro do Universo. Quando há Selecções Nacionais, não há conflito, naufrágio, catástrofe natural ou fenómeno meteorológico sobrenatural capaz de obnubilar as câmaras das referidas Selecções Nacionais, sob pena de atentado aos sentimentos patrióticos do povo. Vai daí, também reflecti, malgrado o desespero da digestão posta em lista de espera, que o Futebol é, juntamente com a Senhora de Fátima-Ourém, um mobilizador excepcional das massas.
(Não comece já a disparatar: claro que esta reflexão nada tem de original; há montes de anos que muita gente fala dos três efes; só reflicto em banalidades. Alto lá, que eu ainda não cheguei a meio.)
Ora bem. Agora é que me vou acercar do cerne da questão, o qual é este: há imenso tempo que partidos (uns mais do que outros) e sindicatos se debatem com problemas de mobilização dos cidadãos para defesa disto e daquilo, muitas vezes sem êxito notável. O meu Partido, para usar apenas o exemplo que me é mais querido, só fala de coisas que pouco dizem aos meus semelhantes: ele é o custo da vida, ele são os baixos salários e pensões, enfim, não vou continuar que vocês conhecem a cassette. Ora isto não interessa ao careca. Nem ao cabeludo. Nem ao Miguel Sousa Tavares. A Selecção Nacional, essa sim. Vai daí (como disse já atrás), disse para com os meus botões de punho: eh pá! O D. Duarte Pio, duque de Bragança e herdeiro do trono, não é muito inspirador; logo, a criação de uma Selecção Monárquica não nos levaria longe. Até os pastorinhos de Fátima-Ourém, hoje em dia, já não olham para o céu, nem topam ninguém na copa das alfarrobeiras ou lá que árvore era aquela, que alfarrobeiras é mais cá para baixo; agora, distraem-se com o Tik-tok, vivem naquele eclipse permanente, e aparições... nicles. Claro que milhões de meus semelhantes continuam a fazer a sua peregrinação anual ou, pelo menos, a vergar-se perante a imagem da Senhora, mas este domínio reveste-se de particular delicadeza, pelo que vale mais não insistir. Até porque se pode sempre dizer que a Senhora Tal e Coisa é a minha utopia da nova Idade do Ouro. Aí, eu ia ter de dizer que uma coisa é o Pai Natal, outra coisa é o Joaquim Francisco, e nunca mais se parava. Quanto ao Fado, um dos efes, evoluiu de tal modo que já não mobiliza como outrora: os marialvas e as desgraçadinhas modernizaram-se, foram à escola; eles adaptaram-se às redes sociais e elas já não sofrem com a traição (dão de frosques e vão ao Kinder, aliás Tinder, acabo de descobrir). Logo… os partidos (exceptuando o PPM, em busca do trono perdido) têm de criar equipas de Futebol próprias, para disputar os campeonatos, as ligas e as taças: Futebol Clube Social-Democrata, Futebol Clube da Esquerda Bloquista, Clube Comunista Português, Liberal Futebol Clube, e assim sucessivamente. Ides ver que o nobre povo vai encher patrioticamente os estádios, ruas e praças desta nação valente e imortal e festejar as vitórias do nosso clube partidário de forma nunca dantes vista. Garantido!
Todos conhecemos melhor ou pior a história do sábio Fausto, lenda da Baixa Idade Média, retomada por Goethe nos finais do século XVIII e primeira metade do século XIX.
Muito resumidamente, chegado a velho e insatisfeito com a sua vida:
Para brincar somente, sou mui velho;
Para não desejar, mui moço ainda. (vv. 1563-1566)
e pouco preocupado com a “outra vida”:
Pouco monta
O outro mundo tem pra mim; se este
For um dia ruínas, muito embora
Venha outro depois! É desta terra
Que brotam meus prazeres, minhas penas
Este sol alumia. […] (vv. 1671-1676)
Fausto faz um pacto com Mefistófeles (traduzindo: vende a alma ao Diabo – Diabo com maiúscula merecida, enquanto émulo de Deus), pacto graças ao qual recupera a juventude e a capacidade de fruir plenamente da vida. O contrato é selado com um pingo de sangue do velho aspirante a jovem, que se apaixona por Margarida e a seduz, com a preciosa ajuda do demoníaco outorgante. Margarida é vítima da censura social, é encarcerada, e Fausto, atanazado pelo remorso, faz tudo para salvá-la. Em vão. Margarida acaba por morrer. A primeira parte do poema-tragédia acaba aqui, mas, na segunda parte, vemos um Fausto resgatado pelo amor, transfigurado moralmente, resistindo às sucessivas tentações do seu credor, e dando corpo a projectos em benefício da comunidade.
Ora, aqui chegados, há que tirar, pelo menos, duas ou três conclusões:
a primeira é que o pacto leva Fausto a cometer uma indignidade, mesmo à luz de princípios morais mais distensos hoje do que na Idade Média ( no fundo, algo equivalente a dissolver uma droga na bebida servida na discoteca);
a segunda é que Mefistófeles não sai vencedor desta contenda, uma vez que Fausto comete uma malfeitoria, mas resgata-se moral e socialmente;
a terceira é que o contrato que Fausto faz com o Diabo é aquilo a que se chama um “contrato leonino”: contrato em que uma das partes é claramente beneficiada em relação à outra. Trocando por miúdos: o que Fausto vende ao Diabo é uma realidade virtual (“verdade imaginada” ou “realidade intersubjectiva”, diria Harari), uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, o vazio. Em contrapartida, Mefistófeles dá-lhe a juventude. E promete-lhe Margarida. O vencedor iniludível é Fausto. Fausto, herói do nosso tempo. Um negócio da China.
Não me atrevo a tirar mais conclusões, a não ser esta: Fausto dá corpo e consistência à consciência contemporânea decorrente dos avanços da ciência, nomeadamente no que concerne à biotecnologia e à crescente capacidade de aumentar a longevidade humana, na senda de uma imortalidade relativa (passe a incongruência).
Se estivesse ao meu alcance, proporia ao Parlamento uma lei que instituísse o Dia de Fausto, como feriado nacional. Evitar-se-ia o incómodo, para a economia, de mais um dia de ócio, fazendo-o coincidir com o 10 de Junho. O âmbito da celebração passaria a ser Portugal, Camões, Fausto e as Comunidades Portuguesas.
Segundo alguns, o nosso Poeta Maior só escreveu os dez cantos da epopeia para que lá coubesse o Canto IX, mui adequado para deliciar o leitor, em geral, e compensar os jovens, em particular: volvidas as agruras da divisão de orações, tomai lá o conúbio na Ilha dos Amores.
Margarida e as ninfas valem bem a alma. E as glórias do Império.
O que se passa no Médio Oriente, para me cingir ao que de mais infame tem vindo a acontecer, deveria envergonhar-nos a todos. Mas sobretudo aqueles que, tendo o poder, são cúmplices, por acção ou por omissão, e aqueles que, não tendo esse poder, nada fazem para manifestar a sua indignação, admitindo que a sentem.
Sim, sim, eu sei. A frase-feita é “a melhor defesa é o ataque”, mas o inverso também resulta. Para alguns. Entre os quais, os nossos governantes, muita gente da área do arco da governação (nova fénix renascida), muita gente que receia moderadamente o abismo, papão muito ao gosto dos esquerdalhos, numerosos comentadores televisivos, o Senhor Almirante e outra gente mais.
Vamos ao que importa: o empanzinamento do orçamento da defesa, longe de ser um factor de restrição calórica dos orçamentos da saúde, da habitação, da educação, da cultura et alia, é um poderoso estímulo à economia nacional, visto que, se uma parte desse orçamento é efectivamente investida em armas, munições e outros meios de sobrevivência da espécie, outra parte dele será canalizada para indústrias, nomeadamente na área das tecnologias mais avançadas, que vão empregar mais gente e contribuir significativamente para o aumento do nosso PIB. Ou seja: quanto mais armas produzirmos, melhor nos defenderemos e, por acréscimo, melhor viveremos. O investimento na indústria da guerra é percebido pelos investidores, e accionistas em geral, como um óptimo meio de proporcionar ao povo férias de sonho nas Maldivas ou em Vilamoura. E a percepção é importante, como sabemos. Os eventuais efeitos colaterais desse magnânimo desígnio, como sejam o caminhar efectivo para o abismo e a eliminação física de pessoas desse modo impedidas de fruir das Maldivas ou de Albufeira, é um pormenor apenas daquilo que foi, é e sempre será o destino da humanidade, segundo gente bem informada. Podemos, pois, agradecer aos nossos egrégios governantes a sua sábia governação. E dizer, com o General Millan-Astray: «Viva la muerte!»
Mar Shopping, Loulé. Estacionamento interior. Zona amarela. G02. Bolas! Tudo cheio. Mesmo os lugares com luz verde. Bom. Não me esquecer: zona amarela, G02. Mais uma pequena volta e lá está um verde genuíno, autêntico, verdadeiro, sincero, vegetal, esperançoso. Não ter de ficar ao sol. Não transpirar ainda mais, dentro de um habitáculo sobreaquecido, as costas encostadas ao encosto, a contragosto e com desgosto. Não esquecer: amarelo G02. Uma volta no piso 0, à procura de duas coisas impossíveis de encontrar e rápido regresso ao -1. Amarelo G02. Amarelo G02. Ora vejamos, vejamos. Não estou a vê-lo, não estou a vê-lo. Rodopio sobre as solas dos sapatos num ângulo de 180º, depois outros 180 no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. Estranho. Amarelo G02. Amarelo G02. Não. Vamos ver aqui ao lado, que ainda é amarelo. Não. Vinte e cinco minutos. Em vinte, já eu tinha descoberto que ninguém tinha o que eu queria. Meia-hora. Amarelo G02. Raios. Eu que tive a lembrança de fixar a cor, a letra e o número com dois algarismos: amarelo-G-02. Bom. Vamos ver se alguém lá de cima, no céu do IKEA, nos ajuda. Senhor vigilante do IKEA, eu estacionei aqui perto desta entrada e destas escadas que rolam e enrolam, e que, por isso, chamamos rolantes, nunca enrolantes, se bem que não rolariam se não enrolassem, e nada. Não encontro o meu carro. Olhe, nós somos poucos, não podemos sair daqui. Vá ali à recepção. É um balcão branco, mesmo à entrada, no outro extremo. OK, obrigado. Passo largo e rápido. Estugado, sói dizer-se. Recepcionista simpática e bonita. O quê? Quarentas... Vai ver que o seu carro aparece. Disse-me carro branco, marca e matrícula tal e tal, zona amarela G02. Sim, G02. O vigilante do estacionamento vai já ver. Pode demorar um pouco, porque acontece estar no início de uma volta. Vinte minutos. Ainda nada. Ainda nada. Disse-me: amarela G02. Sim, exactamente: amarela G02. Telefone: Fulano, o Senhor já começa a estar cansado, mas tem a certeza de que o deixou na zona amarela, Júlia 2. Aquele “Júlia”… Olhe, para não estar aqui de pé, vá tomar um café aqui ao lado, que eu já o vou chamar, quando o vigilante encontrar o seu carro. Topei aquela preocupação com a demorada permanência de pé. Boa ideia. Descafeinado pingado, para não agravar a falta de sono. Vinte minutos. Já lá vai uma hora e meia. Não seria melhor eu descer para procurar melhor? Então, deixe-me o seu contacto. Deixei o telemóvel no carro. Bom, eu vou contactar outra vez o vigilante. Fulano, zona amarela, Júlia 2. Olhe aqui o livrete, modernamente DUC. Marca, modelo, matrícula. Disse-me: jota 02. Não, eu disse gê 02. Gê, que é o mesmo que guê. O jota é só jota. Ah! Como muita gente diz gê… Mais uns minutos. Preocupação minha: Já aqui houve roubo de carros? Até agora, nunca aconteceu. Tranquilizante, mas também inspirador de outra preocupação: acontece virem aqui pessoas por não encontrarem o carro? Ah! Sim, diariamente, de todas as idades e espécies. Boa. Há gente mais nova que também anda às aranhas no estacionamento. Quase me apeteceu dizer porreiro, pá. Claro que não disse. A Senhora era simpática, educada, e eu também sou ou tento ser educado – e simpático, tanto quanto consigo. Agora, aquela das espécies deixou-me pensativo. Lembrei-me do Darwin, claro. Uma pessoa ouve falar de espécies e pensa logo em evolução, em sapiens e coisas que tais. Olhe o vigilante já o encontrou. Realmente, estava na zona amarela, mas F01. Ou 02, já não sei – isto digo eu. Safa! Uma parte da tarde perdida por causa de um gê que eu vou passar a chamar guê, cá por causa das coisas.
Estive agarrado à Antena 1, esta manhã, durante quase duas horas, entre as 10 e tal e o meio-dia menos pouco.
Num painel constituído por Miguel Szimanski (jornalista e escritor), José Manuel Rosendo (jornalista da RTP), Raul Manarte (psicólogo, activista dos direitos humanos, etc.), João Antunes (Médicos Sem Fronteiras) Manuel Serrano e Ana Cavalieri (ambos comentadores), sobre a situação vivida nos territórios palestinianos e, em particular, Gaza, ficaram bem patentes, por um lado, a divergência de perspectivas dos primeiros em relação a Ana Cavalieri; por outro, a adaptação do registo discursivo a que se obrigam jornalistas e comentadores, consoante de encontram num debate radiofónico ou nas suas intervenções televisivas. Pelo menos, no que toca a Szimanski, Rosendo e até, talvez, Antunes (dos outros, não tenho lembrança).
Quanto à divergência de perspectivas, de tão evidente, pouco haverá a dizer. Enquanto todos denunciavam acerbamente o genocídio em curso em Gaza, a pesarosa (…) complacência das democracias europeias e norte-americana e a imperiosa necessidade de pôr um termo à carnificina, Ana Cavalieri repetia incessantemente a toada do terrorismo e dos terroristas do Hamas, co-responsáveis pelos danos colaterais da política de defesa do governo de Netanyahu. Irmã gémea de Helena Ferro de Gouveia, ainda que menos imponente (aqui está algo que denuncia uma certa misoginia da minha parte e que me expõe ao risco de apanhar com um copo de água no frontispício!), Cavalieri debitou, com a proficiência própria de uma doutoranda em Ciência Política, o discurso formatado pelas Universidades que frequentou ou frequenta.
Porém, o que mais me impressionou foi a acutilância usada pelos demais na condenação inequívoca quer do governo de Israel, quer da passividade dos governos “ocidentais”, salvo raras excepções. Parêntesis: aqui, ocorre-me a imagem exaltante de Paulo Rangel na fronteira colombo-venezuelana, em Fevereiro de 2019, dando apoio ao autoproclamado Presidente interino, Juan Guaidó, e aos pobres Venezuelanos em trânsito na Ponte Internacional Simón Bolívar, intensamente bombardeada pela aviação e artilharia pesada sob as ordens de Nicolás Maduro. Os dentes daquele Rangel rangiam de indignação perante a ignominiosa barbárie bolivariana; já não rangem, que perderam o esmalte. Fim do parêntesis.
Quando os ouço e vejo na TV, percebo (mais com uns do que com outros; mais com Szimanski do que com Rosendo, por exemplo) que condenam a acção inqualificável do governo sionista. Mas fazem-no com luvas de veludo, de modo a não machucar com aspereza a sensibilidade dos tele-espectadores, do Conselho de Administração e do Ministro da pasta. Na rádio, apesar de pertencente aos mesmos patrões, abriram as comportas, sem dizer água-vai. Resultado: fiquei agarrado à rádio.
Enfim, tudo isto para dizer que o lápis azul daquela sacro-santa instituição se salazarenta descorou, porque foi metabolizado e está hoje dentro das nossas cabeças, sempre pronto a adaptar o nosso discurso à circunstância, e dando razão, mais uma vez, a Ortega, que parafraseio: o comentador é ele mais a circunstância em que comenta.
(As personagens da primeira cena, na mesma esplanada, tomando outro café)
Socidemo – Mas … a privação das liberdades individuais, as restrições à liberdade de expressão, a estatização dos meios de comunicação, a concentração da economia na esfera do Estado, a Sibéria?!
Marlen – E as criancinhas ao pequeno-almoço e a injecção atrás da orelha! E o Staline, meu Deus! O Pacto germano-soviético?! O Fidel!! E o Chávez e o Maduro?! (dois comunistas, como o Allende!). E a Coreia do Norte?! Livra!
Socidemo – Isso, goza! Se passasses por isso, não ias gostar!
Marlen – Repara: não há como negar as evidências históricas. Há como compreendê-las. Compreendê-las é, necessariamente, contextualizá-las – coisa que não é nada do agrado de quem tanto se empenha em obliterar a profunda iniquidade de um regime assente em princípios desumanos que propugnam a rivalidade, a concorrência, a meritocracia chico-esperta dos que singram à custa do esforço alheio. Ora, compreender tais evidências é reconhecer que a implantação de um sistema estruturalmente diferente do sistema em vigor implica fatalmente o recurso a meios que impeçam a antiga classe possidente de retomar o poder, quer através dos seus próprios representantes, quer através de revolucionários posteriormente convertidos às doutrinas que antes combatiam.
Socidemo – Esqueces-te de que, em democracia e num Estado de direito, todos os cidadãos podem votar livremente! Se os eleitores preferem viver neste sistema, por que razão insistes em conduzi-los para o teu redil comunista?
Marlen – Olha! Nós esquecemo-nos rapidamente das lições da História. Aquando da (burguesa) Revolução Francesa, o Terror de Robespierre foi um abrir e fechar de olhos na linha do tempo da sociedade feudal que condenava milhões de camponeses à privação e à morte lenta. A morte, quando é lenta, não aterroriza, mas não deixa, por isso, de matar. O comandante-em-chefe do Exército de Itália viria, anos volvidos, a impor o seu consulado e posterior coroa imperial à França republicana. Revolução e contra-revolução. A violência proletária de 1917 e, sobretudo, do período posterior à morte de Lénine foi angustiante para muitos e injusta para alguns. Mas (odiada adversativa…) foi o meio necessário para que as grandes mudanças estruturais da sociedade russa pudessem concretizar-se. Houve excessos? Houve erros? Ninguém os nega. Mas a História nunca foi desenhada a régua e esquadro no estirador de um arquitecto. E, mais tarde, a experiência de construção do socialismo sucumbiu. Mas o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança.
Socidemo – Ok, mas a liberdade de escolha?!
Marlen – Referes-te à opção entre Republicanos e Democratas? Entre Biden e Trump ou entre Kamala Harris e Trump? Bela liberdade de escolha que os meios de comunicação inteiramente nas mãos do capital te proporcionam!
Socidemo – Olha, eu partilho a posição do Camus sobre esta questão. O eleitor tem sempre a possibilidade de se revoltar. Não temos é o direito de impor.
Marlen – O humanismo de Camus, que saúda a revolta e condena a revolução?! Foi justamente apodado de “burguês” por Sartre, que bem sabia da náusea de um sistema podre a carecer da varredela organizada e vigorosa das massas. A revolta é salutar, mas não chega para mudar. E o voto continua a ser o “piège à cons”, óptimo instrumento de condução do rebanho, qual rafeiro que instintivamente sempre leva as ovelhas ao redil do dono. Ignorantes da sorte que as espera. Socidemo, meu querido, a história da humanidade é mesmo a história da luta de classes. Tem avanços e recuos. E tem contradições, como as que vivemos presentemente, com o avanço da extrema-direita, ao mesmo tempo que se vai afirmando uma nova ordem mundial, com as potências emergentes a ganharem terreno na luta contra a hegemonia imperial euro-americana.
Socidemo – Reparei que resumiste a contextualização histórica a umas vagas considerações sem nada de concreto…
Marlen – Claro! Íamos ficar aqui a tarde inteira a esgrimir factos e números, sem chegarmos a acordo. Além disso, íamos alongar exageradamente uma peçazinha que não aspira a galhardetes.
Socidemo – Bela desculpa!
Marlen – Tá bem, deixa! Aconselho-te a procurar fontes que não sejam exclusivamente os órgãos de comunicação dos detentores do capital. Quanto mais não seja, para teres uma ideia da diversidade que tanto aprecias.
Socidemo – Bem pregas tu, mas quem te ouve? Já agora: em quem vais votar no domingo?
Marlen – No próximo domingo, vou votar CDU. Como sempre. Depois, continuarei a imitar o Padre António Vieira. Pregando aos peixes. «E posto que o assunto seja tão desusado, espero que me não falte a costumada graça. Ave Maria.»