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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Uma imprensa isenta - Evo Morales é nomeado pela ONU “Herói Mundial da Mãe Terra”

                                                                                                                                                                                     

Há dias, um amigo meu, leitor do Público, como eu, mas também de outros títulos da imprensa dita “de referência”, dizia-me ter tomado conhecimento da nomeação de Evo Morales como “Herói Mundial da Mãe Terra” pela Assembleia Geral das Nações Unidas, não através da referida imprensa, mas sim através do Avante! O acontecimento data de 29 de Agosto p.p. e nem este amigo nem eu próprio tínhamos dele conhecimento.
Admito que algum destes órgãos de comunicação escrita ou qualquer outro – da audiovisual – tenha dado conta da ocorrência. Estávamos no fim de Agosto, tempo de férias, de praia e de pouca atenção à actualidade. Mas, se o fez, só pode ter sido escassamente e sem relevo, à socapa, numa notícia de fundo de página.
Ora este acontecimento não tem nada de irrelevante. Eis o que pude apurar pela consulta do site http://www.processocom.wordpress.com , de que cito alguns passos:
·        Evo Morales recebeu a sua nomeação das próprias mãos do presidente da Assembleia Geral da ONU, o nicaraguense Miguel D’Escoto, sob a forma de uma medalha e de um pergaminho, cujo texto define o primeiro indígena a governar a Bolívia como “o máximo expoente e paradigma de amor à Mãe Terra”.
·        “A ideia de conceder a distinção a Morales, revelou D’Escoto, partiu de uma iniciativa do rei Abdullah da Arábia Saudita. Após escutar um discurso do boliviano em defesa da Mãe Terra, o líder saudita sugeriu convocar uma reunião da Assembleia Geral da ONU para discutir maneiras de resgatar conceitos ancestrais a fim de combater a mudança climática.”
·        “Até hoje, somente dois outros líderes haviam sido designados “heróis mundiais” pela ONU. São eles o ex-presidente cubano Fidel Castro, “Herói Mundial da Solidariedade”, e o falecido ex-presidente da Tanzânia Julius Nyerere, nomeado “Herói Mundial da Justiça Social”.
·        Na cerimónia realizada em La Paz, Miguel D’Escoto disse: “O que queremos fazer é apresentar ao mundo estas três pessoas e dizer que elas encarnam as virtudes e valores dignos de serem copiados por todos”.
·        “O presidente da Assembleia Geral da ONU lembrou que Morales “foi quem mais ajudou as Nações Unidas a declararem o 22 de Abril como Dia Mundial da Mãe Terra”.
Pois bem, numa época em que o debate sobre o aquecimento global – agora baptizado de “alterações climáticas” – é omnipresente nos media e numa ocasião recente em que os líderes mundiais discutiam em Copenhaga as medidas a implementar para as combater, com o insucesso conhecido, nem uma só vez dei por uma referência à nomeação com que Evo Morales foi distinguido.
Por que será? – perguntamo-nos. Não faço a mínima ideia. Mas quer-me parecer que se, em vez de Morales, o nomeado fosse, por exemplo, Obama, Sarkozy, Uribe, ou Netanyahu, toda a imprensa embandeirava em arco.
Já agora – alguém sabia da nomeação de Fidel como Herói Mundial da Solidariedade? E de Julius Nyerere como Herói Mundial da Justiça Social? Eu também não. Decididamente, somos muitos a andar mal informados, maugrado a pletora de informação nesta sociedade da comunicação.
E, por outro lado, por que será que os nomeados são estes e não os outros que referi atrás?
Tantas perguntas, com, talvez, duas respostas possíveis. Uma é a que D’Escoto nos dá: “ [estes homens] encarnam as virtudes e valores dignos de serem copiados por todos”.
Claro que é sempre possível dar a outra resposta: a Assembleia Geral é maioritariamente composta por pequenos países do mundo subdesenvolvido, pelo que as suas deliberações são pouco fiáveis.
Escolham – que eu já escolhi há muito e não vejo motivos para mudar de ideias.
Foto de Alain Bachellier, in http://www.flickr.com/photos/alainbachellier/146124152/

Atribulações de um cidadão em busca do respectivo Cartão

 

Foi no dia 28 de Agosto próximo passado que resolvi pedir o Cartão do Cidadão (CC). O meu BI até estava longe de ter caducado, mas entendi que era tempo de emagrecer a carteira, a abarrotar de cartões de toda a espécie. O CC sempre é mais pequeno do que o BI e, sobretudo, substitui dois ou três outros. Dou todas estas explicações, não se vá pensar que sou daqueles que, há uns anos atrás, quando a nossa entrada na CEE era uma miragem duradoura e tema inspirador de humoristas, se apressaram a substituir as placas antigas de matrícula dos carros por placas idênticas às que já se usavam no estrangeiro, embora nada os obrigasse a fazer essa despesa.
Foi fácil e rápido. Apenas a fotografia à la minute ficou uma lástima, ou seja muito diferente dos passes que se faziam antigamente, se bem que me tenham garantido uma grande fidelidade ao original. Mera opinião, sem dúvida alguma malévola.
 A 21 de Setembro, uma vez que a carta pin, indispensável para levantar o cartão, continuava sem me chegar, dirigi-me novamente ao balcão de Faro da Loja do Cidadão, onde pedi uma 2.ª via da referida carta. A 9 de Outubro, porém, não é esta 2.ª via que me chega, mas sim a primeira carta, emitida perto de um mês e meio antes, com marcas de sujidade indiciadoras de um percurso atribulado. Quanto à 2.ª via, nicles-batatões. Nunca a vi.
Tendo-me ausentado durante uns dias, só a 20 de Outubro fui à Loja do Cidadão reclamar, enfim, o meu novo cartão. Ufano, fiz a imediata entrega dos três ou quatro de que ia finalmente livrar-me à jovem funcionária, que não desejava senão enfiá-los diligentemente numa máquina de furar, a fim de os invalidar. E que mos devolveu competentemente esburacados, não fosse eu insistir em conservá-los na carteira empanzinada – cioso destes artefactos que farão, porventura, a felicidade dos historiadores que vão, no futuro, estudar a variedade dos instrumentos de identificação dos cidadãos do século XX.
Tempo perdido. Embora o cartão estivesse lá (foi-me mostrado, com aquela fotografia horripilante…), a funcionária recusou-me a respectiva entrega, já que o Sistema Informático – essa entidade abstracta, imaterial e todo-poderosa que põe e dispõe dos nossos cartões e das nossas vidas – alega não estar “concluído o processo de validação” por motivo de “dados incoerentes”. Exultei: o sistema informático detectara seguramente que aquela fotografia era incoerente com a pessoa que pretendia retratar. Contudo, o meu júbilo ficou fortemente abalado logo a seguir, quando percebi que, enquanto o demónio esfregava um globo ocular (expressão inquestionavelmente menos susceptível de confusão com um qualquer plebeísmo de gosto mais que duvidoso do que a sua congénere que, obviamente, omito), eu ficara despojado dos meus tradicionais documentos de identificação (BI, cartão de contribuinte, cartão de utente do SNS e cartão de eleitor) e impossibilitado de usar o meu novíssimo e inacessível cartão.
A jovem lojista (do cidadão) pôs água na fervura da minha angustiosa preocupação: enquanto eu não fosse contactado pelos serviços do IRN (e, para o efeito, pediu-me o n.º de telefone), bastar-me-ia andar sempre acompanhado do pedido inicial do cartão de cidadão – uma folhinha A4 que eu dobrei conscienciosamente em oito e que ficou sensivelmente com o tamanho do BI furado e com a espessura dos cartões inutilizados todos juntos. Refira-se, de passagem, que a folhinha em questão contém a fotografia do cidadão a que diz respeito, por muito que o cidadão em causa recuse qualquer semelhança com a sua representação fotográfica.
A 5 de Novembro, perante a ausência de qualquer contacto, dirigi-me novamente à Loja. Talvez o problema estivesse ultrapassado e tivessem extraviado o meu n.º de telefone (!). O jovem funcionário viu tudo, estranhou tudo, pediu-me também o n.º de telefone e garantiu-me que ia enviar um fax para os serviços centrais, a fim de indagar.
Eis senão quando… A 9 de Dezembro, na iminência de chegar a 2010 indocumentado e decidido a falar com as chefias, esperei pela minha vez, expliquei muito sucintamente a outra funcionária o que se passava e … ela entregou-me o cartão de cidadão. Ainda procurou no Sistema Informático e na pasta de faxes um vestígio dos trâmites atribulados que eu lhe narrara com pouca convicção, mas… nada. Era a entrega, sem história, de um cartão a um cidadão que tinha tardado a levantá-lo. E eu saí, entre o satisfeito e o acabrunhado. Sem saber muito bem se a culpa não terá sido minha. É que até tinha um BI – agora com um furo perverso no canto superior direito – cuja fotografia datava de há uns anos. Que me identificava muito melhor do que a actual e com a qual me sentia mais identificado – o que é seguramente desejável num documento de identificação.
Para além deste pormenor – apesar de tudo, irrelevante –, cumpre dizer que, nas minhas seis deslocações à Loja do Cidadão, terei gasto cerca de dez horas e uns vinte euros, no estacionamento subterrâneo do Largo do Mercado. O que é uma ninharia, comparado com a exaltação do contacto humano que me foi assim proporcionado.
Ando com vontade de pedir a substituição deste cartão. Não é por nada, mas aquela fotografia…

                                    

                                                fanzine "loja do cidadão" , flickr.com

 

Perplexidades

 

Leio, no Público de 20 de Dezembro, a páginas 14, o título “Relação confirma envolvimento de Ricardo Rodrigues com «gang internacional» ”. Depois, no corpo da notícia, que cita o texto do jornalista Estêvão Gago da Câmara (EGC) – alvo de processo-crime rejeitado pelo Tribunal da Relação: “Rodrigues esteve envolvido com um gang internacional na qualidade de advogado, sócio e procurador de uma sociedade offshore registada algures num paraíso fiscal; advogado/sócio de uma mulher [Débora Raposo] que está foragida no estrangeiro, acusada de ‘ter dado o golpe’ de centenas de milhares de contos à agência da CGD de Vila Franca do Campo”. Por tudo isto, “não deveria nunca ter enveredado pela actividade política”.
Fica-se a saber:
  • Que a Relação, pronunciando-se sobre a utilização da expressão gang, considerou que a palavra era insultuosa e indelicada”, mas estava “justificada em factos”;
  • Que “os factos remontam a 2000, quando Rodrigues foi constituído arguido num processo sobre crimes de associação criminosa, infidelidade, burla qualificada e falsificação de documentos”;
  • Que “o processo relativo a Rodrigues foi arquivado, mas
  • Que “no despacho do Ministério Público podia ler-se que, apesar das ‘dúvidas’ sobre a sua contribuição “nas actividades subsequentes à burla levadas a cabo pelos principais arguidos”, o advogado [R. Rodrigues] alegou ”desconhecimento da actividade delituosa”;
  • Que “esta decisão foi lida com “perplexidade” pelo juiz de primeira instância. Isto porque o MP dissera que Rodrigues “foi referenciado como tendo mantido contactos (…) com a arguida, principalmente em reuniões que foram organizadas tendo em vista dar aplicação a quantias ilicitamente apropriadas (…);
  • Que “fez deslocações a fim de tratar de assuntos relacionados com as actividades da arguida, as quais eram tudo menos transparentes (…) obviamente pagas com dinheiro obtido de actividades que eram tudo menos lícitas”;
  • Que “o juiz de instrução concluiu que a acusação de que Rodrigues se envolvera “com um gang internacional” tinha sustentação, o que, a final, conduziu à corroboração da sentença da primeira instância pela Relação – sentença com a qual Rodrigues se diz agora “conformado”.
 

Ora o que eu – leigo em matéria jurídica, mas cidadão atento ao processo político – retenho de tudo isto é que o deputado Ricardo Rodrigues, vice-presidente da bancada parlamentar do Partido Socialista, de que é frequente porta-voz, colaborou activamente com gente da pior espécie – chamemos-lhes gangsters ou, mais portuguesmente, vigaristas, malandrins, burlões, patifes, gatunos. E isso leva-me a estranhar, conforme terá sucedido a EGC, que se mantenha na política activa, em lugar de tal destaque e com uma animosidade tão acentuada para com os adversários políticos que Sócrates até lhe elogiou a “combatividade” no jantar de Natal do grupo parlamentar do PS (Público, 23/12). Não sei se será caso para dizermos asinus asinum fricat, trocando obviamente a espécie animal. Mas é seguramente caso para nos inquietarmos e desconfiarmos cada vez mais da rectidão dos representantes do poder.

NATAL-REVOLUÇÃO

Hoje, fico-me por uma citação de Eça que me sugere este decalque: Revolução é sempre que um povo quer.

“É justamente nestas horas de festa íntima, quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoísmo – que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia universal e que a consciência da miséria em que se debatem tantos milhares de criaturas volta com uma amargura maior. Basta então ver uma pobre criança pasmada diante da vitrina de uma loja, e com os olhos em lágrimas para uma boneca de pataco, que ela nunca poderá apertar nos seus miseráveis braços – para que se chegue à fácil conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas, findas as consoadas, o egoísmo parte à desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos, dignos do cárcere; e a miséria continua a gemer ao seu canto!”
Eça de Queiroz, “O Natal”, in Cartas de Inglaterra

                                The Martyring of Che Guevara
                                por Ben Heine, flickr.com

 

Requisitório contra o casamento entre pessoas do mesmo (ou de outro) sexo

 

 

“[A monogamia, na Grécia Antiga,] não foi de maneira nenhuma fruto do amor sexual individual, com o qual não tinha absolutamente nada que ver, já que os casamentos continuaram a ser casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família baseada não em condições naturais, mas em condições económicas, a saber: a vitória da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva e espontânea. Soberania do homem na família e procriação de filhos que só pudessem ser dele e que estavam destinados a herdar a sua fortuna, – eram esses, proclamados sem rodeios pelos Gregos, os fins exclusivos do casamento conjugal. […]
O casamento conjugal não entra pois na história como a reconciliação do homem e da mulher, e muito menos ainda como a forma suprema do casamento. Pelo contrário, aparece como a subjugação de um sexo pelo outro, como a proclamação de um conflito dos dois sexos, desconhecido até então em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito composto por Marx e por mim em 1846, encontro estas linhas: «A primeira divisão do trabalho é a que ocorre entre o homem e a mulher para a procriação.» E posso acrescentar agora: A primeira oposição de classe que se manifesta na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher no casamento conjugal, e a primeira opressão de classe, com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino. O casamento conjugal foi um grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo abre, a par da escravidão e da propriedade privada, esta época que se prolonga até aos nossos dias e na qual cada progresso é ao mesmo tempo um passo atrás relativo, visto que o bem-estar e o desenvolvimento de uns são obtidos pelo sofrimento e recalcamento dos outros. […]”
Engels, Friedrich, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 1884
 
A extensa citação de Engels serve de esteio a breves considerações sobre o(s) casamento(s), que resultam duma dupla surpresa interrogativa, a saber:
1.º, como é possível que alguém, independentemente da sua orientação sexual, ainda pretenda casar-se?
2.º, opondo-se ao casamento de pessoas do mesmo sexo, a Igreja (melhor dizendo: as Igrejas) e a direita não estarão a cometer um erro estratégico?
Aduzo as razões que fundamentam as minhas surpresas.
À partida, e pelo menos em teoria, o móbil do casamento é a consecução de uma união desejada por dois indivíduos que se sentem reciprocamente atraídos e em comunhão de sentimentos. Porém, o casamento define-se como contrato e, como contrato que é, impõe deveres a ambas as partes, donde resulta que o casamento espartilha o que se pretende viver como experiência libertadora, confere um carácter impositivo àquilo que as partes vivenciam como uma experiência exaltante de felicidade – o que configura um paradoxo;
Durante séculos, o casamento e a família monogâmica dele resultante consagraram o papel subalterno da mulher relativamente ao homem (foi a “derrota histórica do sexo feminino”, necessária para garantir a paternidade autêntica na herança (F. Engels, op. cit.) e é do conhecimento geral que a instituição está hoje em crise, como o indicia o número crescente de divórcios e de uniões livres.
Nestas circunstâncias, parece ser forçoso concluirmos que a natureza contratual do casamento já não se coaduna com os anseios irrefreáveis de liberdade que caracterizam o nosso tempo – e estamos conversados quanto à minha primeira estranheza.
 
No tocante à oposição das Igrejas e da direita (laica), vejamos: se o casamento, na sua forma heterossexual, é a melhor garantia de manutenção da moral e dos bons costumes, bem como de reprodução ininterrupta da actual ordem social e política – o que, obviamente, só pode interessar a estas entidades –, a sua extensão aos casais, ou pares, homossexuais potenciará essa garantia, uma vez que a infracção será absorvida pelo sistema. A instituição do casamento homossexual, conferindo a estes casais dignidade semelhante à dos casais heterossexuais, retirá-los-á do limbo de vergonha e rejeição que estimula os sentimentos negativos de quantos se cingem aos figurinos normativos tradicionais. Para a(s) Igreja(s), seria um acto de generosidade fraterna. Para ambas – Igrejas e direita – seria propiciar a multiplicação da célula-base da nossa sociedade e, com isso, optimizar as condições de reprodução da actual ordem social.
 
Bem sabemos que Sodoma e Gomorra ainda estão na lembrança de muitos. Mas, depois de tudo o que Caim lhe disse (remeto para a versão saramaguiana do Velho Testamento, claro), Jeová não terá coragem para, de novo, fazer cair o enxofre e o fogo purificador sobre a cidade. Até porque há as crianças - mais uma vez as crianças! Que estavam inocentes, em Sodoma, mas nem por isso foram poupadas… E que eu deixei de fora nestas considerações (demasiado) ligeiras.  

 

                                                  

                                                   Pergamon Altar Nordfries / The...
                                                   por
josephdesarre, flickr.com

 

Berlusconi, Oeiras e sutura de feridas

 

Silvio Berlusconi and his shadow
por
Siegfried Woldhek, in www.flickr.com

 
Sempre que penso na situação política italiana, surpreendo-me com a atracção que Berlusconi pôde exercer sobre este povo. É que, se é verdade que muitos Italianos se deixaram levar na onda do fascismo, não é menos verdade que resistiram ao nazi-fascismo e têm uma séria tradição de esquerda. Talvez seja, de novo, a atracção do abismo.
 
No fundo, passa-se em Itália algo semelhante ao que se passa entre nós e, porventura, em muitos outros países, quando alguns figurões da política são reeleitos, mesmo depois de serem indiciados, acusados, julgados e condenados. Mas … que dizer do facto de Oeiras ser o concelho do país com mais elevado nível de vida e mais alta taxa de gente diplomada? Para alguns, seria razão para desconfiar da qualidade do nosso ensino. Em minha opinião, é mais uma questão de valores do que de conhecimentos. E, infelizmente, a nossa escola está mais focada na transmissão destes do que na inculca daqueles. Ora, se a esperteza saloia e a desonestidade são os valores mais cotados na bolsa nacional (e na sociedade capitalista, em geral), como não hão-de os eleitores, diplomados ou não, votar naqueles que melhor os encarnam?
 
Vem este arrazoado a propósito da recente agressão de que Berlusconi foi vítima. Independentemente da natureza repulsiva da criatura, o argumento da força é um argumento sem força, só compreensível e explicável atendendo a que o agressor sofre de perturbações psíquicas, segundo foi dito.
 
Posto isto, esta agressão, que lhe terá custado dois dentes e uma cana rachada (o septo nasal), vai provavelmente render-lhe uns quantos pontos (percentuais) na quota de popularidade e uns milhares de votos em próximas eleições. É também para suturar as lacerações provocadas pelos escândalos que servem estes actos tresloucados.
                                                                                                                                                                     

                                             Berlusconi 
                                               por
MIRIAM GODET, in www.flickr.com

 

A minha arrecadação

 

 
Acabo de fazer uma arrecadação/garagem. Tem cerca de 35 m², uma zona aberta, com bancadas para lava-loiça, fogão, barbecue, etc., e um terraço onde poderei, entre outras coisas, pôr figos a secar no Verão. Na zona fechada – a arrecadação e garagem propriamente ditas – tenciono guardar tudo o que não faz permanentemente falta dentro de casa e aquilo que deixou de fazer falta, mas que poderá vir a ser reutilizado (nunca se sabe!). Foi coisa de pouco tempo, uns diazitos apenas, e vai-me dar um jeitão que nem imaginam. Mas o melhor de tudo foi ter-me ficado praticamente de graça. Para além da mão-de-obra, que eu pus, só gastei papel, cartolina e lápis.
                                   
Com uma receita destas, até o governo mais inepto conseguiria uma taxa de execução orçamental de 100%.

Arrogância e representação parlamentar

 

Os debates quinzenais no Parlamento são sempre uma excelente oportunidade para se apreciar o desempenho oratório dos intervenientes, a sua habilidade dialéctica e características da sua personalidade. No que ao Primeiro-Ministro diz respeito, a oratória é geralmente, se não sempre, impressionante – pela fluência e pelos recursos expressivos (ironia, entoação, …) – e a inteligência táctica revela-se frequentemente na utilização de argumentos ad hominem que confundem os adversários. Quanto aos traços de personalidade que mais sobressaem nestes debates, é mais ou menos consensual, pelo menos para aqueles que não prestam vassalagem ao Governo e ao Partido Socialista, que, em matéria de arrogância, José Sócrates não fica a dever nada ao ex-Primeiro-Ministro Cavaco Silva (ainda se lembram daquela admoestação aos trabalhadores dos transportes em greve: “Esperem pela privatização!...”?) nem à ex-ministra Manuela Ferreira Leite.
 
Ora era aqui que eu queria chegar – à arrogância, à agressividade altiva na relação com os outros. É que eu entendo perfeitamente que as oposições sejam agressivas e, por vezes, até um pouco excessivas e inconvenientes, tendo em conta que estão na mó de baixo e que o ofício de ser oposição se torna exasperante, quando não desesperante, se a maioria faz obstrução às mais inócuas das propostas que delas vêm. Mas quando se tem a maioria e se tem a faca e o queijo na mão, porquê enfatizar ainda mais esse poder com o acinte da arrogância?
 
Claro que este raciocínio era particularmente válido quando a maioria era absoluta – e bem se viu que José Sócrates nunca perdeu a oportunidade de rebaixar e humilhar os seus adversários. No fundo, agora, acaba por ter parte da desculpa que se concedia atrás às oposições. Mas uma maioria relativa, sendo relativa, não deixa de ser maioria. Impõe negociação, impõe um consenso mínimo, mas permite, no essencial, a prossecução das políticas que essa maioria entende dever implementar. Vamos, provavelmente, confirmá-lo com as questões da criminalização (ou não) do enriquecimento ilícito, do Orçamento de Estado, do casamento de pessoas do mesmo sexo, etc. Umas vezes com a direita, outras com a esquerda, o Governo levará a água ao seu moinho.
 
É assim que somos levados a concluir que, das duas uma – ou esta acrimónia faz parte da grande encenação parlamentar típica dos partidos do sistema, que deste modo induzem a ilusão de que se combatem, quando na realidade convergem na manutenção do statu quo da democracia burguesa, que reproduz infinitamente os mecanismos de dominação do capital, ou àquele rol de virtudes que eu, no primeiro parágrafo, reconheci a José Sócrates faltará uma, a inteligência emocional.
 
Na primeira hipótese, tenho para mim que a esquerda consequente apenas figura como vítima ou participante involuntária na encenação. Quando se tem representação parlamentar, não há meio de fugir à “representação” parlamentar. O jogo parlamentar comporta riscos. A histrionia é um deles.

                                                            

 

Fotos:

Jose Socrates 07
por orlando_almeida_photographer, in www.flickr.com

 

José Socrates
por Miguel A. Lopes "Migufu", in www.flickr.com  

PETIÇÃO EM FAVOR DE ANTONIO TABUCCHI

APELO RETIRADO DO SITE http://resistir.info
 
 
O escritor italiano António Tabucchi, ex-embaixador da Itália em Portugal, está a ser perseguido pelo regime berlusconiano. A liberdade de expressão está ameaçada na Itália. Procuram intimidar democratas como Tabucchi, exigindo-lhe em tribunal a quantia milionária de 1.350.000 euros. Assine a petição a favor de Tabucchi:
http://www.cienciahoje.pt/37585

Caim, as caricaturas de Maomé e as metáforas da Bíblia

A recente publicação de Caim, de José Saramago, suscitou a indignação e os protestos de muitos. Não se assistiu, porém, ao desenrolar de violentas manifestações de rua com apedrejamentos e incêndios um pouco por todo o lado, como aconteceu no mundo islâmico aquando da publicação das caricaturas de Maomé.
 
Não creio que estas situações sejam comparáveis. A relação actual dos cidadãos ocidentais com o divino não é, de todo, assimilável à que os muçulmanos mantêm com a sua religião. Aqui, depois das cruzadas, do teocentrismo medieval, dos “episódios” sangrentos das guerras de religião (a que ainda perdura na Irlanda é antes uma guerra de classes) e da Inquisição, conhecemos o Iluminismo, a Revolução Francesa - e outras, imbuídas de anticlericalismo, iconoclastas, ateias, antropocêntricas. Ali, o apego integrista-fundamentalista à letra do Corão e a amálgama dos poderes político e religioso parecem ter atravessado os séculos incólumes. Prova de atraso atávico desses povos? Mais uma vez, não creio. Querer julgar os outros povos à luz da nossa própria idiossincrasia é uma atitude de etnocentrismo que a consciência esclarecida crescentemente condena. Esses povos têm apenas a sua própria “orientação” civilizacional. Talvez acabem por “convergir” connosco. Ou talvez não. Mas é seguramente ilegítimo impingir-lhes os nossos valores e os nossos “timings” como se fossem pressupostos irrecusáveis da humanidade. Para além do mais, nem sequer temos autoridade moral para lhes apontar o dedo, nós, ocidentais, que temos uma história e um presente pejados de atrocidades, nomeadamente coloniais, para citar só aquelas em que muitos deles figuram como vítimas.
E esta condenação que aqui se lavra das nossas atrocidades, envolvendo um claro juízo moral, não contraria o que atrás ficou dito sobre a postura etnocêntrica. É que se trata de uma condenação que surge a posteriori, vinda de consciências que conheceram as transformações a que me referi. E que, por isso, têm “obrigações” especiais, digamos assim.
É pelas razões aduzidas que contesto o acerto de críticas dirigidas precisamente àqueles que, como eu, optam por tratamentos diversos dos fundamentalismos – o muçulmano e o cristão.
Voltando a Caim, de Saramago, a acusação de falta de respeito pela consciência religiosa dos cristãos parece-me acertada. Mas também me parece dever ser contextuada e, consequentemente, desvalorizada: o contexto ocidental moderno caracteriza-se precisamente pela arreligiosidade das elites intelectuais e pela iconoclastia, o que “autoriza” tais excessos. Quanto à acusação de que o autor teria feito uma leitura literal da Bíblia, quando o seu conteúdo só pode ser entendido metaforicamente, parece-me que os detractores de Saramago não entenderam a ironia do livro. Para Saramago, tudo é efectivamente metafórico – a começar por Deus, arquimetáfora das potencialidades humanas. Ou não será verdade que os atributos de Deus (omnipotência, omnisciência, omnipresença) são cada vez mais os atributos do homem – agora, com os progressos da ciência e da tecnologia, a tender para a eternidade?