Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O poder do poder – ou: um parêntesis na racionalidade

Em Novembro de 2002, quando o petroleiro Prestige se afundou ao largo da costa ocidental da Península Ibérica, Paulo Portas, então ministro do governo de Durão Barroso, exprimia a sua felicidade pelo facto de a mancha de crude ter sido levada para a Galiza, dizendo que tinha sido Nossa Senhora de Fátima que nos tinha protegido.
 
Em Dezembro de 2004, aquando do terrível tsunami que semeou a destruição e a morte na Indonésia e Tailândia, uma casa permaneceu incólume, em local de que já não me recordo, no meio da destruição geral. O proprietário indonésio (salvo erro) atribuía e agradecia a Deus a milagrosa excepção.
 
Há dias, um miudinho de seis ou sete anos foi salvo dos escombros de uma casa em Port-au-Prince por um elemento das equipas internacionais. Com o entusiasmo que o demorado jejum e o isolamento de vários dias ainda lhe permitiam, proclamava, de braços escancarados, que tinha sido salvo por Deus.
 
E assim sucessivamente.
 
Não sei em que pé terão ficado as relações dos Galegos poluídos com uma Nossa Senhora de Fátima que tão desalmadamente os tratou e tramou. E que diriam – se pudessem! – daquele Deus que tão cruelmente os deixou morrer, elegendo uns poucos para salvamentos milagrosos dos escombros, os milhares de criaturas que perderam a vida na Indonésia, na Tailândia, na China, em Itália, no Haiti, etc., etc., etc.?
 
Por outro lado, em que conta terá Paulo Portas a Virgem que nos pôs a salvo da mancha de fuel-oil, despachando-a para cima dos nossos irmãos galegos? Estará ele convencido de que a Senhora de Fátima é bairrista a este ponto? E aqueles que Deus contemplou com a vida e os bens salvos achar-se-ão particularmente mais merecedores da misericórdia divina do que milhares de outros semelhantes?
 
Admite-se que a criancinha do Haiti e até o adulto da Indonésia nunca se tenham interrogado sobre a pertinência das suas profissões de fé. Mas Paulo Portas, meu Deus?!
 
A um outro nível, longe deste despautério que é meter o Rossio da sabedoria divina na Betesga do transporte marítimo de nafta, como encarar a atitude dos cientistas que renegam o método científico e abrem um parêntesis na sua postura de fria objectividade para proclamarem uma fé que é a negação da racionalidade?
 
 Porque a fé, ao contrário da convicção, é irracional. Não se crê por via dedutiva, não se crê por via indutiva, não se crê porque dados da observação ou dados históricos objectivos mantêm entre eles nexos lógicos que fundamentam determinada convicção. Acredita-se porque o objecto da crença nos foi revelado, isto é, infuso. Acredita-se porque se acredita – ponto.
 
Há, claro, implicações psicológicas na questão em apreço e, deste ponto de vista, é relevante o conforto que propicia a crença em Deus e na vida eterna.
 
 Logo em miúdo, ouvi falar do livro O Drama do Ateísmo, nas aulas de Religião e Moral, que fui obrigado a ter no tempo do fascismo. Mas foi um outro drama que o meu pai me deu a ler – o Drama de Jean Barois, de Roger Martin du Gard. Nunca li o primeiro, mas li apaixonadamente o segundo. Do qual guardei a imagem triste de um ateu que, em agonia, contrariando as expectativas de quem o acompanhara no ateísmo, exprime uma aflição pungente, se agarra desesperadamente ao crucifixo e reclama a conversão. A família vem a descobrir pouco depois um testamento do falecido. Suspeitando que, ao aproximar-se a hora da morte, a doença lhe pudesse retirar a lucidez que tanto prezava e provocar tal reviravolta, o protagonista declara que o que deve prevalecer é a sua convicção ateísta, defendida enquanto se manteve são e lúcido.
 
O existencialismo diz-nos que estamos irremediavelmente sós no universo, que estamos entregues a nós mesmos e que somos irremediavelmente livres. E a liberdade assusta. Não é coisa que se assuma de ânimo leve. Daí a angústia existencial. Mas o drama do ateísmo não é senão a condição humana.
Estas considerações parecem ter a religião por tema, mas, na realidade, é a questão do poder que mais me importa – poder espiritual, neste caso, que leva os homens a porem de lado a sua racionalidade e a amputarem seriamente o seu campo visual, passando a ver apenas parte da realidade.
 
Vejamos o que se passa com o poder político.
 
São muitos os eleitores que se queixam dos partidos políticos, responsabilizando-os por todas as desgraças individuais e nacionais. Não distinguem, aliás, os que estão ou estiveram no poder, daqueles que nunca lá estiveram ou estiveram há muito tempo, durante pouco tempo, e num tempo muito excepcional. Dizem que são todos iguais. No entanto, quando as eleições chegam, vão votar nos mesmíssimos partidos que responsabilizam por todas as desgraças. É como se fossem capazes de exercer o seu espírito crítico, mas ficassem inibidos de lhe dar a natural consequência (um voto diferente) quando se encontram na posição de exercer esse direito. Porquê?
 
Talvez porque a ideia do poder – ali, espiritual e sobrenatural; aqui, político, mas não menos super-natural (porque acima das possibilidades naturais do comum dos cidadãos) – se impõe. Talvez porque esses partidos SÃO o poder, e com o poder não se brinca, porque o poder é poderoso e é exercido por pessoas poderosos. O poder e os poderosos infundem o medo, mesmo se esse medo é mais ou menos difuso e inconsciente, e actuam sobre os míseros humanos como um sortilégio – afinal, se os poderosos o são, se exercem o poder, se podem decidir dos nossos destinos, só pode ser porque são de alguma maneira superiores a quem não detém o poder. E essa superioridade há-de vir-lhes de algures ou de alguém – quem sabe se do próprio Deus. No fundo, no fundo, estamos bem próximos de Luís XVI e dos soberanos de direito divino – a Revolução não foi assim há tanto tempo…
 
P.S. 1 - Depois de escrever este post, encontrei por acaso uma referência à homilia em que o Cardeal Patriarca classifica o ateísmo como o maior drama da humanidade. Já me tinha esquecido da polémica que esta classificação gerou, num tempo em que tantos milhões de criaturas (…), crentes ou não, se debatem com os flagelos do desemprego, da fome, da doença, da guerra, dos terramotos e tsunamis…
 
 2- Não há mais pachorra para se ouvir a história do piloto da TAP e da filha Carolina que, com apenas seis anos, é tão boazinha que prescindiu duma boneca e a mandou para uma menina do Haiti. Haja Deus!
 

 

Le goupillon et le sabre, por J&S., flickr.com

 

A “ajuda” americana ao Haiti

 

O terramoto que provocou dezenas de milhares de vítimas no Haiti sensibilizou-nos a todos. E ninguém pôde deixar de se congratular com a rapidez da ajuda internacional, ainda que circunstâncias várias estejam a dificultar a entrega de víveres e medicamentos àqueles que deles necessitam.
Somos, provavelmente, também muitos a ter estranhado o aparato militar que, oficialmente a propósito da operação humanitária, está a transformar o Haiti numa espécie de novo Iraque ou Afeganistão, com milhares de soldados norte-americanos, navios de guerra, porta-aviões, etc. Segundo Michel Chossudovsky (ver artigo “A militarização da ajuda de emergência ao Haiti: Trata-se de uma operação humanitária ou de uma invasão?”, in http://resistir.info), são os seguintes os
 
Activos militares dos EUA a serem enviados ao Haiti (de acordo com anúncios oficiais)

O
navio de assalto anfíbio USS Bataan (LHD 5) e os navios anfíbios dock landing USS Fort McHenry (LSD 43) e USS Carter Hall (LSD 50).

Uma Unidade Anfíbia dos Marines com 2000 membros da
22ª Unidade Expedicionária da Marinha e soldados da 82ª divisão aerotransportada do exército . Novecentos soldados estão destinados a chegar ao Haiti em 15 de Janeiro.

O porta-aviões USS Carl Vison e os navios complementares de apoio (chegados a Port au Prince em 15/Janeiro/2010):
USS Carl Vinson CVN 70

O
navio hospital USNS Comfort

Várias embarcações e helicópteros da Guarda Costeira dos EUA.

Os três navios anfíbios unir-se-ão ao porta-aviões USS Carl Vinson, ao cruzador com mísseis guiados
USS Normandy e à fragata com mísseis guiados USS Underwood .
 
Para cúmulo, a imprensa começa a fazer-se eco do descontentamento de muita gente empenhada na operação humanitária. O Público de hoje, 18, refere o caso dos Médicos Sem Fronteiras, cujo hospital cirúrgico insuflável transportado por avião não pôde ser descarregado no sábado passado. Mas também os casos da Cruz Vermelha, do Brasil, da Itália e da França. O ministro francês dos Negócios Estrangeiros já apresentou um protesto junto do Departamento de Estado (norte-americano, evidentemente). E o embaixador francês diz, preto no branco, ainda segundo o Público, que o aeroporto se transformou “num anexo de Washington, não num aeroporto para a comunidade internacional”.
Ora esta estranheza de uns e descontentamento de outros talvez não sejam de todo despropositados, se tivermos em conta as ingerências estado-unidenses na América latina, de que o mapa seguinte (www.monde-diplomatique.fr) dá uma ideia.
Philippe Rekacewicz — janvier 1995
 
É que Cuba está ali, mesmo ao pé. Cuba e as Honduras (de Zelaya) e a Nicarágua (dos sandinistas) e El Salvador (de Somoza) e, um pouco mais longe, a Venezuela (de Chávez), a Colômbia (de Uribe), a Bolívia (de Morales), o Equador (de Correa), o Chile (de Pinochet). Como é óbvio, neste conjunto de parêntesis há que distinguir o subgrupo democrático de Pinochet, Somoza e Uribe do subgrupo de terríveis ditadores todos eles mais ou menos integrantes do “eixo do mal” ou com ele aparentados, quais sejam Chávez, Morales, etc. A grande democracia americana nunca se engana, nisto das filiações democráticas.
Termino com mais uma citação de Chossudovsky e do artigo já mencionado:
“Intervenções militares recentes dos EUA no Haiti

Houve várias intervenções militares patrocinadas pelos EUA na história recente. Em 1994, a seguir a três anos de domínio militar, uma força de 20 mil tropas de ocupação e de "manutenção da paz" foi enviada ao Haiti. A intervenção militar estado-unidense de 1994 "não se destinava a restaurar a democracia". Muito pelo contrário: foi executada para impedir uma insurreição militar contra a Junta militar e as suas coortes neoliberais". (Michel Chossudovsky,
The Destabilization of Haiti, Global Research, February 29, 2004)

As tropas dos EUA e dos seus aliados permaneceram no país até 1999. As forças armadas haitianas foram desmanteladas e o Departamento de Estado dos EUA contratou uma companhia de mercenários, a DynCorp, para proporcionar "conselho técnico" na reestruturação da Polícia Nacional do Haiti. (Ibid).

O golpe de Estado de Fevereiro de 2004

Nos meses que antecederam o golpe de Estado de 2004, forças especiais dos EUA e da CIA estiveram a treinar esquadrões da morte compostos pelos antigos tonton macoute da era Duvalier. O exército paramilitar rebelde cruzou a fronteira da República Dominicana no princípio de Fevereiro de 2004. "Era uma unidade paramilitar bem armada, treinada e equipada integrada pelos antigos membros de Le Front pour l'avancement et le progrès d'Haiti (FRAPH), os esquadrões da morte "à paisana", envolvidos em matanças em massa de civis e assassínios políticos durante o golpe militar de 1991 patrocinado pela CIA, o qual levou ao derrube do governo democraticamente eleito do presidente Jean Bertrand Aristide". (ver Michel Chossudovsky,
The Destabilization of Haiti: Global Research. February 29, 2004 )

Foram enviadas tropas estrangeiras para o Haiti. O MINUSTAH foi estabelecido na véspera do golpe de Estado de Fevereiro de 2004 patrocinado pela CIA e do sequestro e deportação do presidente democraticamente eleito Jean Bertrand Aristide. O golpe foi instigado pelos EUA com o apoio da França e do Canadá.”

A luta contra a pobreza

Futebol de rua
por
kathião, flickr.com

 

“A UE vai investir 17 milhões de euros na luta contra a pobreza, tanto quanto gastaram em Dezembro Sporting e Benfica em novas contratações.”
Manuel António Pina, Jornal de Notícias, 8 de Janeiro de 2010
É por estas e por outras que eu não sou sportinguista.
Nem benfiquista.
Nem europeísta.

 

Cuba e Bento XVI

Foi há pouco mais de um mês, a 10 de Dezembro, que Bento XVI recebeu em audiência o Embaixador de Cuba junto à Santa Sé – Eduardo Delgado Bermúdez – por ocasião da apresentação da Carta Credencial.
 
Transcrevo três passos do discurso que o Papa pronunciou na ocasião e que se pode ler, no original, no sítio web do Vaticano
(http://212.77.1.245/news_services/bulletin/news/24790.php?index=24790&lang=sp)
ou em
http://resistir.info/
 
Claro que os protocolos impõem, nestas ocasiões, um conjunto de fórmulas de cortesia estereotipadas que soam sempre a falso. Mas há aqui, nos parágrafos 2 e 3, algo mais do que convenção.
 
“Senhor Embaixador:
1. Com muito gosto recebo-o neste acto solene no qual apresenta as Cartas que o acreditam como Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da República de Cuba perante a Santa Sé, iniciando assim a importante missão que o seu Governo lhe confiou. Agradeço-lhe as suas atentas palavras e a saudação que me transmitiu da parte do Excelentíssimo Senhor Raúl Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros, a que correspondo com os meus melhores desejos para a sua alta responsabilidade.

2. […] Cuba, que continua a oferecer a numerosos países sua colaboração em áreas vitais como a alfabetização e a saúde, favorece assim a cooperação e solidariedade internacionais, sem que estas estejam subordinadas a mais interesses que a própria ajuda às populações necessitadas.
 
3. Tal como outros muitos países, a sua Pátria sofre também as consequências da grave crise mundial que, somada aos devastadores efeitos dos desastres naturais e do embargo económico, golpeia de maneira especial às pessoas e famílias mais pobres. Nesta complexa situação geral, aprecia-se cada vez mais a urgente necessidade de uma economia que, edificada sobre sólidas bases éticas, ponha às pessoas e seus direitos, seu bem material e espiritual, no centro de seus interesses. Com efeito, o primeiro capital que se há de salvaguardar e salvar é o homem, a pessoa na sua integridade (cf. Caritas in veritate, 25).”
 
Só faltou ao Papa dizer que Fidel bem mereceu a nomeação como Herói Mundial da Solidariedade pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Tirem-me daqui!

 Excerto do artigo de José Pacheco Pereira publicado no Público de 9-1-2010 e transcrito no ABRUPTO, em 10-1-2010
 
A ilusão de que o acesso ao casamento quebra uma barreira simbólica que ajuda a terminar com a homofobia efectivamente existente, o argumento mais hábil de Vale de Almeida, repousa numa ambiguidade e numa hipocrisia. Porque Vale de Almeida sabe perfeitamente que ele e muitos outros a última coisa que pretendem é casar-se, ou sequer imaginam no casamento qualquer virtude especial. Eles sabem bem que o casamento é algo dos "outros", não por causa da lei que os exclui, mas porque o que vem virtualmente no pacote do casamento, a instituição familiar convencional, os "deveres conjugais", não correspondem ao mesmo mundo cultural e emocional do seu entendimento da "causa" dos homossexuais e lésbicas. Para eles o que conta é a "causa", não o mérito da instituição a cujas portas pretendem aceder e por isso a questão é outra, bem longe da luta por um direito, é um ataque a uma determinada forma de viver em sociedade, que abominam e desprezam e tem pouco a ver com a sua cultura e a sua mundovisão. Sabem que ao romper na lei a relação do casamento com a família nuclear, que implica possibilidade real da procriação, erodem para outros um valor que não desejam.

É por isso que se trata de uma "luta", não por direitos, mas contra uma determinada forma de sociedade.

Casamento gay e adopção

 
 

crianças
por
Sangroncito, flickr.com

 
Foi ontem, 8 de Janeiro, aprovada a proposta de lei do Governo que alarga o instituto do casamento aos casais homossexuais. Apesar das minhas reservas em relação à questão de fundo do casamento, fiquei satisfeito. Porque esta aprovação constituiu uma vitória da abertura de espírito, da tolerância, da modernidade – da esquerda –, sobre a direita retrógrada. Claro que o Partido Socialista, que não é de direita nem de esquerda, antes pelo contrário, e que, em questões de índole económica, como é sabido, se comporta normalmente como qualquer partido de direita, comportou-se nesta circunstância como um partido de esquerda.
 
Dito isto, subsiste a questão da adopção, que vai provavelmente dar azo a que o Presidente da República vete a lei. E é a esta questão, deixada em aberto no meu post de 18 de Dezembro, que quero voltar, para mais algumas breves considerações.
 
A adopção de crianças por casais homossexuais – como, aliás, inúmeros outros aspectos da vida social –, pode ter dois enfoques: um, objectivo, assente nas circunstâncias reais do presente; outro, a que chamarei prospectivo, desinserido do hic et nunc, apontando para um futuro que, extrapolando e cortando com as tendências actuais em matéria de costumes, presumo mais tolerante.
 
Se nos colocarmos na primeira perspectiva, a ideia de adopção parecer-nos-á inaceitável. Qual é o pai, a mãe, o educador que, no seu perfeito juízo, aceita com placidez a ideia de uma criança que os colegas, na escola, apontam a dedo porque não tem, como todos os outros, um pai e uma mãe, mas dois pais ou duas mães. Dois pais ou duas mães a quem os pais e mães dos outros meninos chamam maricas e fufas – para não dizer pior? Este enfoque, estático, parado no tempo, sobrevaloriza as condicionantes da nossa vida em sociedade, amplifica-as como lente, absolutiza-as. Induz inevitavelmente o fantasma de uma geração de seres andróginos – particularmente de rapazes pouco másculos, efeminados, capazes de facilmente se comoverem e de chorarem, impróprios para o serviço militar e para a guerra.
 
Já o outro enfoque, dinâmico, cortando as amarras ao tempo presente, alijando toda a “tralha” que herdámos da nossa educação tradicional, dá-nos uma visão não só aceitável como talvez aliciante da adopção de crianças por casais homossexuais. É que a ideia de uma geração imensamente mais tolerante e sensível (porque educada num ambiente em que a discriminação e os seus malefícios seriam sentidos pelas crianças como uma injustiça de que os seus adoptantes seriam vítimas) não pode deixar de agradar àqueles para quem, descontada a problemática da reprodução (o dimorfismo sexual), os sexos não têm fatalmente que ser contrastantes em tudo, como propugnava o fascismo e a sua Mocidade Portuguesa.
 
Como se vê, é o interesse da criança, sempre invocado no debate sobre a adopção, que aqui se equaciona. E, mais uma vez, surpreende-me a posição da Igreja e da direita. Pois se uma e outra, geralmente de mãos dadas, idealizam, sublimam a natureza humana como obra divina e, consequentemente, desvalorizam a dimensão material da humanidade, como entender que, neste particular, se dê tanta ênfase à carne, em detrimento do espírito? Como é que a Igreja só pode vislumbrar a relação carnal numa união em que a comunhão espiritual é inquestionavelmente tão importante quanto a relação física? Como pode ela anatematizar duas criaturas (etimologicamente, obras de Deus) que se amam e que pretendem amar e educar uma terceira? Há que admitir que a ontologia se verga aqui aos interesses circunstanciais.
 
Sabemos que a misoginia é um legado cultural judaico-cristão. Contudo, na questão deste casamento e desta adopção, a Igreja alarga o âmbito do seu ódio: já não é só Eva que dele é alvo, ou não tivesse ela feito Adão cair em tentação… Agora, é também Adão que tenta Adão. E, com isso, a misoginia faz-se quase misantropia.
 

Avaliar os professores é avaliar o quê?

 

  

 

 

Sara e Dulce têm a mesma idade, com algumas semanas de diferença, o mesmo curso, classificações finais de licenciatura muito próximas e a mesma classificação profissional. Leccionam contudo em escolas distintas, distantes de algumas dezenas de quilómetros, se bem que implantadas em meios sociais idênticos.
Mas nem tudo são semelhanças entre elas. Sara é muito extrovertida. Já na primária fazia rir toda a gente – desde os pais aos amigos e à professora -, com a particular queda que desde os mais tenros anos revelara para a teatralização. De cada vez que a D. Arminda, a agora velha professora que a levou do 1.º ao 4.º ano do básico, a mandava ir ao quadro, ela não perdia a oportunidade de se deslocar em passo de dança, cantarolando e exibindo para todos, colegas e professora, um sorriso despregado num rosto que refulgia. Muito viva, alegre, espontânea, estava sempre pronta para a galhofa. De comum acordo, parentes, amigos e vizinhos consideravam-na uma força da natureza – indomável – e pagavam-lhe com juros de mimos, lembranças e elogios os bons momentos que ela lhes propiciava.
Dulce fora sempre a mais circunspecta, a mais sisuda das duas filhas que os pais tiveram. De índole pacífica, aos dois anos de idade brincava sem um grito, um choro ou uma birra com a irmã mais velha, e era igualmente capaz de brincar sozinha durante duas, três horas. Acatava sem um protesto ou mostra de irritação qualquer observação ou ordem da mãe. Mais tarde, na escola, seguia atentamente as explicações do professor, fazia os trabalhos de casa, estudava as lições. Saía-se sempre bem nos ditados, na aritmética, na gramática, nas ciências, na geografia. Só uma vez se irritou a sério com um colega. E quem não se irritaria? O malandro tirou-lhe um caderno da pasta – um caderno da Dulce era pouco menos do que uma obra de arte! – e deu-se ao trabalho de escrever no alto de cada página: “Eu gosto muito de ti! Assinado: Pedro”.
Sara e Dulce são ambas agora professoras. Das mesmas disciplinas, dos mesmos anos de escolaridade, em escolas diferentes. Ambas preparam conscienciosamente as suas aulas, diversificam os materiais didácticos e as metodologias. Ambas se empenham a fundo no sucesso dos seus alunos. Ambas se implicam na vida da escola, assumindo responsabilidades, fomentando iniciativas. Ambas obtêm resultados razoáveis no fim de cada ano.
Mas…
Os alunos de Sara, é como se estivessem em perpétua competição com a sua professora – qual de nós é mais divertido? E depois das aulas não é raro encontrarem-se no café da esquina. É então como que um prolongamento da aula – entre risadas e anedotas, esclarecem-se dúvidas, criam-se laços de amizade.
Os alunos de Dulce sabem que podem contar com ela na aula, na escola, enquanto ela por lá está, ou até no Messenger. Mas fazem-no com moderação, temendo quase, às vezes, ser importunos. A professora Dulce é muito circunspecta. Dialoga calmamente, conduz o diálogo de forma a ser o aluno a descobrir aquilo que a princípio estava envolto no nevoeiro do desconhecimento, mas não é pessoa que vá para o café rir-se com eles. Aceitam isso. Respeitam-na.
E chega a avaliação do desempenho. Quantas greves! Que manifestações! Nunca se tinha visto.
Com as semelhanças que as aproximam, seria de esperar que tivessem a mesma classificação. Errado. Sara tem Muito bom, Dulce tem Bom. Porquê?
Porque Sara é muito extrovertida. Já na primária, fazia rir toda a gente – desde os pais aos amigos e à professora -, com a particular queda que desde os mais tenros anos revelara para a teatralização, etc. Já Dulce – Dulce fora sempre a mais circunspecta, a mais sisuda das duas filhas que os pais tiveram, etc.
Foi o desempenho profissional que as distinguiu para efeitos de avaliação? Talvez. Mas só na estrita medida em que o temperamento e a personalidade de cada um se investem nesse desempenho.
Será justo premiar ou penalizar um(a) professor(a) por ser mais ou menos alegre, mais ou menos compincha? Por ir ou não ir ao café? Por contar anedotas ou se limitar a histórias sérias? A minha resposta é não. Uma escola invariavelmente divertida só faria sentido num mundo igualmente divertido. Não é o caso. O que o caracteriza é mais precisamente a diferença, a alegria ou a tristeza relativas e transitórias. Aliás, para a banalização da alegria, na sua versão mais bacoca, já temos as televisões – todas.
Serve esta história (mais ou menos) edificante para exprimir a minha discordância relativamente à avaliação dos professores (ou de qualquer outro profissional). A qualidade que julgo imprescindível no desempenho profissional é a honestidade. Todo aquele que, independentemente de resultados mais ou menos positivos, se põe inteiro no que faz, merece o reconhecimento dos seus concidadãos. Com mais ou menos sorrisos, o que verdadeiramente conta é a honestidade.[i]
Ora a honestidade de um(a) professor(a) está permanentemente a ser avaliada pelos seus alunos – directamente, já que o têm diante deles – e pelos respectivos pais – indirectamente, pois os filhos os informam dia a dia do desempenho dos professores. A escola e os serviços do Ministério da Educação, nomeadamente a sua Inspecção Geral, têm depois toda a latitude para indagarem de eventuais incumprimentos e levarem o/a eventual prevaricador(a) a corrigir-se.
Como, porém, não é, mais uma vez, o caso, continuaremos a eleger aqueles que decidem do nosso destino colectivo e a avaliar aqueles que formam os nossos filhos por parâmetros incontestavelmente científicos – a cor dos olhos, o timbre da voz e a amplitude dos sorrisos.


[i] Assim pudéssemos nós julgar e eleger os nossos políticos – não pelo brilhantismo dos seus discursos nem pelo espalhafato das campanhas eleitorais, mas sim pela rectidão e pela dedicação ao bem comum.
 
 FOTOS:
Terreiro do Paço: Mega-Manifestação de Professores
por
Miguel A. Lopes "Migufu", flickr .com                    
 

Sind. dos Professores da Zona Sul: Marcha da Indignação professores
por
raposavelha, flickr.com