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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Um ascensor na manhã submersa

É um dos episódios mais engraçados da minha carreira e recordo-o sempre com carinho. Naquele tempo, ainda as escolas secundárias tinham o 3.º ciclo, isto é, o 7.º, 8.º e 9.º anos de escolaridade e aquela era talvez uma turma de 7.º ano – já não me recordo exactamente – e, portanto, seria constituída por miúdos com treze, catorze anos.
 
Dentre eles, o Nuno, sempre sentado ao fundo, distinguia-se por ser o mais reguila. No extremo oposto, o Filipe, filho de um arquitecto e de uma professora, sempre sentado na primeira fila, distinguia-se pelo ar compenetrado e pela delicadeza do trato.
 
Ora eu tinha-lhes dado um teste com um excerto da Manhã Submersa de Vergílio Ferreira. Mais exactamente, uma montagem de passos do capítulo 15, aquele em que se narram as brincadeiras dos jovens seminaristas, numa bela tarde de Verão, e particularmente o episódio da troça em que é envolvido o Tavares, “um seminarista perfeito, um técnico da correcção”. A chacota foi tal que, à noite, durante o Exame Geral de Consciência, o narrador não consegue reprimir o riso que o assalta. “E de súbito, no instante mais tenso da luta, por cima do silêncio maciço, ressoou claro e inesperado, ó Deus, desde cima até baixo – um traque absoluto. Por mais que eu não quisesse acreditar, era realmente um traque, um traque verdadeiro e firme, desde o cimo da Capela até ao fundo.”
                      
Reconheço que, na escolha deste texto, havia da minha parte uma intenção provocatória e desmistificadora. Tratava-se de revelar um lado menos sisudo da literatura e também de mostrar que um episódio caricato como aquele podia perfeitamente ser objecto de um exercício pedagógico no espaço da escola.
 
Os primeiros minutos decorreram em total silêncio. Porém, ao fim de uns cinco ou seis, o Filipe levantou o braço receoso e disse brandamente:
 
- Ó senhor professor, há uma palavra no texto que eu não sei o que significa…
 
- Diz lá que palavra é, Filipe.
 
- “Traque”.
 
Apanhado de surpresa, fiquei interdito, enquanto uma vontade de rir quase tão irreprimível como a do jovem seminarista do texto me assaltava.
 
- O quê?! Não sabes o que é um traque, Filipe?!
 
- …
 
- Ó diabo, como é que eu te vou explicar isso?!
 
E estava eu, realmente, um pouco embaraçado com a situação, querendo sobretudo evitar a vulgaridade, quando o Nuno, lá do fundo, sai em meu socorro:
 
- Um traque é um arroto que perdeu o ascensor!
 
Providencial.
 
Ri-me. Alguns miúdos riram-se. O Filipe limitou-se a esboçar um gesto indicativo de que percebera.
 
Foto:
https://farm4.static.flickr.com/1092/647606242_ae2e304cf3_m.jpg
 

Admirável escola nova (Reportagem pós-moderna)

(Quando, em Outubro de 2000, publiquei este texto, ironicamente classificado como "reportagem pós-moderna", na revista Intervir do Sindicato dos Professores da Zona Sul, ainda a Parque Escolar, EPE não existia, mas já sopravam ventos de privatização das escolas. Quase dez anos volvidos, ainda não se trata, com todo o rigor,  de privatização, mas a distância a que as escolas dela se encontram encurtou-se significativamente.  E as notícias recentemente vindas a lume sobre a falta de transparência na adjudicação (directa) de projectos de arquitectura e especialidades das obras de requalificação das escolas parecem inequívocas quanto ao caminho por que se está a enveredar. Como acontece cada vez mais frequentemente, o negócio está a correr bem. Mas só para alguns. E não se vê o que é que as escolas, o ensino público e o país possam lucrar com ele. Por outro lado, ao reler certos passos deste texto, fico com amarga impressão de que se torna cada vez mais indistinta a fronteira entre a realidade e a ficção. O admirável mundo que o neoliberalismo triunfante (até agora) tem estado a construir está a perder a capacidade de nos surpreender de tanto nos ter feito regredir.)

 

Admirável escola nova

(Reportagem pós-moderna)

 

 

2014, Setembro, 20.

 

Com o seu primeiro contrato de autonomia assinado em 200I, ano de generalização da antepenúltima revisão curricular do ensino secundário, a Escola Secundária Eng. Belmiro de Azevedo é pioneira na anunciada privatização do ensino básico e secundário em Portugal (1).

 

Com efeito, na sequência da OPA (oferta pública de aquisição) lançada há algum tempo, acaba de ser vendida ao grupo presidido pelo conhecido empresário humanista do Norte, que nos últimos anos presidira já à Assembleia de Escola, na qualidade de representante das forças empresariais da região, antes de se tornar Presidente do seu Conselho de Gerência (órgão anteriormente designado Direcção Executiva), na sequência das alterações ao velho Decreto-Lei n0115-A/98, verificadas há 4 anos. À época, sobraçava a pasta da Educação do GovAerno do Partido Sócio-Demo-Popular (PSDP) o Professor Joseph Herrman Saraiva, secundado, na Secretaria de Estado da Educação para a Cidadania pelo Dr. James Nogueira Pinth, posteriormente, como é do conhecimento público, afastado em virtude das posições consideradas esquerdistas e incoadunáveis com a filosofia progressista do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) que tomou no desempenho das suas funções.

 

A privatização destes graus de ensino, demoradamente ponderada ao longo de mais de trinta anos, tem antecedentes numerosos, quer no próprio sistema - com a já consolidada empresariação (vide Dicionário da Oporto Editora, 50a edição) da educação Pré-Escolar e do ensino superior - quer fora dele - com a entrega dos transportes, das telecomu­nicações, do sector energético, dos hospitais, do estacionamento urbano, do notariado, da magistratura, da meteorologia, do Ministério da Economia e das Finanças e de algumas Secretarias de Estado à iniciativa privada. Outrossim, a entrega de escolas profissionais públicas bem sucedidas a entidades privadas, nomeadamente cooperativas em que membros do Governo detinham interesses accionistas visou sempre a prossecução dos superiores interesses da educação, através da optimização de recursos para a qual a iniciativa privada sempre esteve mais vocacionada.

 

Quanto à Escola Secundária Belmiro de Azevedo, ela distinguiu-se no panorama educativo português por ter sido também pioneira na implementação de práticas que vinham dando frutos em alguns países da Federação Europeia, muito particularmente na Grã-Bretanha, desde a reforma implementada pelo Senhor Chris Woodhead, Inspector-Chefe das escolas inglesas, nos últimos anos da governação Blair (2) . Assim, dispunha já de um Conselho de Gerência constituído por 7 Encarregados de Educação (esta expressão recobre actualmente, como se sabe, uma realidade díspar da do século XX, a saber: homens bons do concelho, ou do país, empresários de sucesso, que, com o seu exemplo, edificam as almas do povo simples). Estes EE, os maiores accionistas da região, impulsionaram resolutamente a Escola Belmiro de Azevedo no sentido da economia de mercado, promovendo o arrendamento dos seus equipamentos e instalações, a venda dos trabalhos produzidos por professores e alunos, a captação dos cérebros dos melhores alunos pelas maiores empresas da região (as suas, por via de regra), a cobrança de uma taxa moderadora aos encarregados de educação traditio sensu que pretendiam uma educação de primeira qualidade e a criação de uma SAD (sociedade anónima desportiva), que muito ficou a dever a Vale e Azevedo, uma vez que este conhecido filantropo e actual Presidente do Conselho de Gerência do ISEEF, S.A. (Instituto Superior Empresarial de Educação Física, SA), ao assumir a titularidade de 60% do capital da empresa, deu a todos os investidores um sinal claro da sua confiança na viabilidade da mesma. Todas estas medidas se enquadraram no âmbito do desenvolvimento de um projecto educativo sui generis, com o lema Time is money, education too. Docentes excepcionalmente dedicados a este projecto educativo motivador não se inibiram de prescindir da família, de amigos, de hobbies, de convicções - tudo em proveito desta Escola de elevado potencial. Abalançaram-se, com quanta energia possuíam no recesso da sua consciência profissional, à preparação porfiada dos futuros agentes de produção e quadros técnicos das empresas pertencentes aos membros do Conselho de Gerência da sua escola. Quase todos os jovens alunos destes docentes exemplares foram classificados como Alfas pelo CSMN (Conselho Superior do Magistério Nacional) e louvados pela OPEP (Organização Popular dos Educadores e Professores). Além disso, lograram sair vencedores de concursos herdeiros dos velhos "Quem quer ser milionário?”, “A pirâmide dos milhões", "Vamos ser todos ricos", "A roda dos milhões", “A febre do dinheiro”, “Dinheiro à vista”, "Dos pobres não reza a história", “Tic-tac milionário, etc., etc., etc., e revelaram-se excelentes investidores na Bolsa de Valores de Lisboa (BVL). Apenas uma ínfima parcela soçobrou aquando do crash virtual de 2008, provocado pelo vírus “I love Caldeira”. Mesmo assim, estudos realizados pela equipa da IGEN (Inspecção-Geral de Educação Nova) mostraram que as vítimas tinham sido alunos de docentes rebeldes à implementação da política educativa do Governo do PSDP, entre os quais alguns que persistiam em promover nas suas aulas os valores deletérios da partilha e da solidariedade.

 

Aproveitando o ensejo da privatização a que nos vimos referindo, fomos indagar das condições de trabalho dos docentes na actualidade. Foi o patrono e Presidente do Conselho de Gerência da escola, em pessoa, que nos recebeu, na sua dependência da 5 de Outubro, que, aliás, tem como anexo, voltado para as traseiras, o gabinete do Ministro.

 

-"Os enormes progressos verificados no domínio da medicina hormonal, da engenharia genética e das tecnologias, prolongou, como sabe, a vida do homem para além dos cento e vinte anos e hoje perspectiva-se a imortalidade a prazo. Isso permitiu a generalização da semana de 72 horas, ou seja, da jornada de 8 horas, tendo em conta o alargamento da semana para 10 dias (o 10° é de descanso, conforme preceitua o texto da Vulgata Latina, revisitada e corrigida pelos teólogos da Terceira Via). O ECD (Estatuto da Carreira Docente), na sua versão aprovada em 2009, preceitua, por seu turno, a partição do horário destes profissionais segundo quatro componentes – a lectiva, a pré-lectiva, cumprida obrigatoriamente na escola em actividades de aquecimento, a delectiva, cumprida também obrigatoriamente na escola em actividades de meditação transcendental e de adoração das Medidas do Poder, e a pós-lectiva, cumprida obrigatoriamente na residência do docente, após as 20h, no exercício sagrado da sua indefectível da sua autonomia pessoal, social e profissional. À primeira destas componentes, o ECD consagra uma parcela de 40 horas, em homenagem aos operários mortos em Chicago. As restantes 32 repartem-se equitativamente pelas demais. Acresce que a última, da responsabilidade do docente, sofre encurtamentos sucessivos de 1 hora, até ao limite de 7 horas, de 15 em 15 anos, à medida que o docente completar, cumulativamente, 75 anos de idade e 50 de serviço, 90 de idade e 65 de serviço, 105 anos de idade e 80 de serviço. Esta redução da componente pós-lectiva da responsabilidade do docente, nos termos do art.º 79º do ECD, revisão de 2009, “não deve ser encarada como uma penalização mas antes como um regime específico que decorre do exercício do múnus pedagógico, reconhecendo-se a experiência acumulada e não partilhada pelo docente, que assim procura proteger a sua intimidade, restringindo-a ao estrito indispensável.” (3)

 

-“E a aposentação?”, quisemos saber.

 

-“Desperdício inqualificável antes dos 120 anos de idade, replicou Belmiro de Azevedo com aquele seu sorriso evanescente. Só é requerível voluntariamente nos casos de pública e notória defecção dos ideais da Escola Nova”, acrescentou com gravidade.

 

Muitas outras inovações fazem, contudo, da carreira docente uma das mais aliciantes do nosso tempo. Veja-se, v.g., o caso do recrutamento e da remuneração. Nos estabelecimentos privados, desde há anos desregulamentados e flexibilizados, segundo os cânones do BM e do FMI, empregabilidade e retribuição obedecem exclusivamente às leis do mercado. A título de exemplo, centenas de jovens professoras discordantes da IVG (itinerância voluntária e gratuita) têm sido declaradas inaptas para o sistema e substituídas por homens, neste particular sem nenhuma contra-indicação. Outrossim, os docentes demasiado exigentes em matéria salarial (normalmente conotados com organizações ultraconservadoras oriundas do movimento operário do século XIX) são ipso facto preteridos a favor de outros de mentalidade pós-moderna, permanentemente ajustáveis, reestruturáveis e descartáveis. Quanto aos estabelecimentos públicos de ensino, circulares e despachos sucessivos, nomeadamente internos, vieram ao longo dos anos esclarecer e dar eficácia a um ECD geralmente considerado pelas autoridades e pelos contribuintes demasiado securizante, em termos socioprofissionais. Articulados como o seguinte: “O concurso é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório do pessoal docente, sem prejuízo do disposto em legislação especial” foram justamente apodados de paternalistas e reaccionários, quando não de sindicais. Felizmente, os despachos já referidos vieram corrigir os seus malefícios evidentes, introduzindo no sistema as normas da recondução (vulgo: fixação de docentes envolvidos em projectos) e da cooptação, esta última tendo como critério a cor dos olhos.

 

Mas também os quadros e a contratação sofreram alterações de monta. Aos tradicionais quadros de escola, destinados a satisfazer as necessidades permanentes dos estabelecimentos de educação ou de ensino, e quadros de zona pedagógica, destinados a assegurar a satisfação de necessidades não permanentes dos mesmos, vieram adicionar-se os quadros de parede, destinados a assegurar o prazer dos olhos; por outro lado, aos contratos administrativos de provimento sucederam os contratos rotativos de assenhoreamento, muito em voga com a mão-de-obra imigrante clandestina, destinados a satisfazer o priapismo dos empresários educativos (4), em regime de alternância. A estes docentes chama-se comummente alternadeiros e alternadeiras, pelo facto de transitarem de escola para escola, acompanhando as deslocações dos respectivos empresários. Repletos de tão abundante informação, bem à imagem da bem-aventurada sociedade em que vivemos, restava-nos inquirir Belmiro de Azevedo sobre os novos programas de ensino. Perante a dificuldade da resposta, o ilustre empresário disfarçou algum embaraço na baforada de fumo do cigarro displicente. Perorou:

 

-“O segredo da felicidade e da virtude está em gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o ensino: fazer com que as pessoas apreciem o destino social a que não podem escapar.” (5)

 

Ao sairmos, o crepúsculo mergulhava a avenida na cálida doçura do estio agonizante. As copas das acácias rumorejavam frondosas melopeias ao sabor da brisa. Debaixo delas, algumas dezenas de homens e mulheres sem idade exibiam, em silêncio, cartazes e bandeirolas. Pareceram-nos contratados desempregados, mas a PSP (Polícia Sócio-Popular) não nos permitiu aproximarmo-nos.

 

NOTAS:

 

(1)            Recorde-se que o acordo geral sobre os serviços, obtido em 2002, na sequência da Ronda do Milénio promovida pela Organização Mundial de Comércio, abriu à concorrência internacional todos os sectores dos serviços públicos: saúde, comunicações, cultura, educação, …

 

(2)            Esta reforma caracterizou-se essencialmente pela “liquidação dos últimos resquícios de actividade trade-unionista docente no Reino Unido, anacronicamente corporativista, como consequência directa da modalidade “produtivista” de remuneração dos docentes em função do êxito escolar (vulgo: sucesso educativo) dos seus alunos. Confrontados com a tarefa magna e ingente de encontrar soluções pedagógicas para os medíocres resultados de milhões de crianças e de adolescentes oriundos de famílias de desempregados, sem qualquer fonte de recursos, os docentes, pagos com víveres de primeira necessidade, deixaram de dispor de tempo e de meios para se organizarem profissionalmente”. Neves, John César das, História da Obsolescência do Sindicalismo na Viragem do Milénio, Lx.ª, Pacheco e Pereira Editores, 2010, p. 30

 

(3)            Lemows, J. ; Karvallo, L.G., Estatuto da Carreira Docente – Revisão de 2009, Lx.ª, Edições Theodore, p. 134

 

(4)            Serviram de inspiração e de modelo a esta nova modalidade de contrato os dois empresários de Guadalajara que, no ano 2000, obrigaram um imigrante argelino “a assinar um contrato em que este aceitava a sua situação de escravo, trabalhando sem ganhar nada e podendo ser usado como os patrões bem entendessem – até para a flagelação, trabalhos forçados e sodomia.” Cf. Expresso Revista n.º 1448, 29 de Julho de 2000, p.11

 

(5)            Huxley, Aldous, Admirável Mundo Novo, Unibolso, p. 30, adaptado.

 

 

Obs.: Este texto, publicado neste blog em 26 de Fevereiro e enigmaticamente apagado, só em 27/08/2010 foi republicado.

O buraco da fechadura

 

 

 

A Fechadura
por
Alysson Estopa,

flickr

 
“As escutas telefónicas não podem servir para devassar conversas com terceiros que nada têm a ver com as suspeitas em investigação nem com qualquer outro facto criminalmente relevante.” Vital Moreira, Público, 16 de Fevereiro de 2010
Foi por um destes fins de tarde chuvosos, frios e açoitados pelo vento. Calcorreava eu, a passo estugado, a rua estreita e lúgubre, como o são, na baixa farense, todas aquelas que, desde há uns vinte e tal anos, começaram a ser colonizadas por estabelecimentos de diversão nocturna, quando, precisamente de dentro de um desses estabelecimentos, ainda  fechado àquela hora, irrompem gritos estridentes. Era uma altercação violentíssima entre um homem e uma mulher, como logo pude verificar, espreitando pelo buraco da fechadura. O homem, que aparentava ter pelo menos quarenta e três anos e possuir sólidos conhecimentos de direito penal, batia barbaramente numa mulher que aparentava não compreender cabalmente as causas primeiras da tradicional opressão do sexo feminino. Indignado com o que me era dado perscrutar pelo estreito orifício da fechadura, bati à porta. Em vão. A exaltação que reinava dentro era tal que nenhum deles ouviu. Logo a seguir, porém, ouvi um estampido e um impacto surdo que não enganariam ninguém. Um tiro tinha sido disparado e a mulher caíra aos pés do seu agressor. Sem vida.
Sem saber que fazer, sentindo faltar-me o ar, dirigi-me ao primeiro transeunte que passava naquele instante. Era um homem de estatura média e farta cabeleira branca que aparentava ser professor universitário. Para ser mais preciso, parecia-se imenso com o Professor Vital Moreira.
– Ajude-me! Não sei que fazer! Acabo de presenciar um homicídio no interior deste estabelecimento.
– No interior?! E como pôde testemunhá-lo se está no seu exterior?
 – Ia a passar ocasionalmente, quando uma tremenda gritaria me pareceu indiciar uma altercação no interior desta baiuca. Espreitei, vi a agressão tão bem quanto o estou a ver a si, se bem que através do estreito orifício da fechadura, e ouvi perfeitamente o tiro que matou a pobre mulher!
– Ó meu amigo, o seu comportamento não é compaginável com as normas estatuídas no Estado de direito democrático. O meu amigo acaba de cometer o que se chama uma violação da reserva de privacidade. Repare que a sua liberdade de observação e escuta não pode prevalecer sobre o direito ao bom-nome e reputação de um cidadão que, no aconchego de um estabelecimento de diversão (nocturna ou diurna é irrelevante para o caso), interage como muito bem entende com uma cidadã adulta. A sua observação, a sua escuta – são puramente ilegais. Dir-lhe-ei ainda que a sua alegação é seguramente fruto de uma imaginação criativa, e o senhor procurador-geral da República por certo a desautorizará, pois não verá nela nenhum indício do caviloso acto a que se referiu. A final, não lhe restará outra solução que não seja o arquivamento do processo, e ao senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça restará a tarefa de o mandar destruir. Fique-se com esta.
– Ah bom! – murmurei, desarmado, ao mesmo tempo que me autocensurava por não ter seguido Direito. Mas o sentimento de culpa que me esmagava cessou quando ouvi um som de violino familiar. Eram oito horas e o meu telemóvel despertava-me.
Obs. Algumas expressões (não assinaladas) pertencem ao artigo em epígrafe. 

Livro de reclamações

Encontrei a D. Lourdes, que já não via há que tempos, e lá estivemos de conversa durante uma boa hora. Não sei se a língua da D. Lourdes é bífida, mas lá que é viperina é.
 
Fez-me queixas. Muitas. De tudo e de todos.
 
Dos médicos, que lhe deixaram morrer um parente (aliás – e para ser mais fiel ao relato que me fez – que lho mataram). Por falta de cuidados, ou de atenção, ou de interesse, ou de ciência – já não sei. Uns carniceiros…
 
Dos juízes, que a condenaram a pagar as custas num processo que intentara contra um inquilino. Uns corruptos…
 
Dos funcionários das repartições públicas, que passam a vida na conversa, na galhofa e a tomar café. Uns mandriões…
 
Dos professores, que andam sempre de costas ao alto e não ensinam nada de jeito. Uns incompetentes…
 
– E o seu neto, D. Lourdes? Que tal vai ele na escola?
 
– Ai, não queira saber! O rapaz farta-se de estudar e só tem negativas. É cada teste mais difícil! Não sei para que é tanta exigência, Santo Deus…
 
– Ah sim?! Então e que curso quer ele tirar?
 
– Ele ainda não sabe bem, mas nós gostávamos tanto que ele fosse para Medicina ou para Direito! O meu sonho era ter um neto médico, ou advogado. Quem sabe até se juiz! Mas se ele continuar assim, não sei, não sei… Olhe, ao menos que acabe o 12.º ano. O pai sempre lhe há-de arranjar alguma coisa, aí numa repartição qualquer.

Palin e o divino

 A inenarrável Sarah Palin (inenarrável porque não se sabe por que ponta se lhe pegar) discursou na convenção nacional do “Tea Party” – uma espécie de baile de máscaras de alguns dos mais lídimos representantes da intelligentsia americana – pela módica quantia de cem mil dólares.
 
A ilustre assistência, compreendia um pouco de tudo – desde os que reclamavam a substituição, nos tribunais, dos códigos legais pelos Dez Mandamentos, aos que denunciavam a “ameaça da imigração”. Houve mesmo quem defendesse a realização de testes de literacia e civismo pelos potenciais eleitores. Quem chumbasse, não poderia exercer o direito de voto. Supõe-se que a sugestão não foi sufragada pelos participantes na convenção, já que seria contraproducente. Quantos deles teriam êxito no exame?
 
Porém, são as declarações de Palin, seguramente, as mais inspiradoras desta ínclita geração de militantes políticos americanos. Ela considera que o Tea Party é “o futuro da política americana” e que “a América está pronta para outra revolução”. Acrescentou, muito aplaudida sempre, que “se formos espertos /os Norte-Americanos, claro/, voltamos a pedir a intervenção divina para podermos voltar a ser prósperos e seguros.”
 
Felizmente para todos nós /Norte-Americanos e restantes habitantes da Terra/, não são. Caso o fossem, lá teríamos uma revolução abençoada por Deus.
 
Apetece pedir que a em-Palen.

Singularidades de uma rapariga loira

A bem dizer, não são singularidades, que coisas destas estão sempre a acontecer e, portanto, com mais propriedade lhes chamaríamos pluralidades. Mas a senhora é loira e usa tranças. É primeira-ministra e democrata. Pró-ocidental – passe a redundância.

Segundo o director adjunto do Instituto Americano na Ucrânia, James George Jatras, personalidade que, sendo americana e director de um Instituto Americano, dificilmente poderá ser acusada de antipatia pró-ocidental, “mesmo quem prefere Timochenko a Ianukovich suspeita que ela se prepara para usar todos os meios ao seu alcance para produzir uma contagem de votos que a ponha a uma distância à justa do rival. Depois resta-lhe denunciar fraudes e instigar à sublevação popular”.

Como se vê, a receita não podia ser mais democrata: ela própria “produz uma contagem de votos”, depois “denuncia fraudes”, que só por má-fé lhe poderão ser imputadas – ou não será ela democrata e pró-ocidental? – e “instiga à sublevação popular”.

Já o muito menos democrata e pró-ocidental Ianukovich, “vilão das fraudes presidenciais de 2004”, e afastado do poder pela ‘Revolução Laranja’ – essa magnífica revolução acontecida num tempo em que tanta gente dava tal espécie como definitivamente extinta à superfície do planeta –“avisou de viva voz que se recusa a trabalhar com a rival e que porá em marcha”… – uma coluna militar? Não! – os seus apoiantes devidamente armados? Não! – “conversações para formar um novo executivo, assim que saia vencedor das presidenciais”.

Temos, assim, – recapitulando – uma senhora loira, de tranças, primeira-ministra, democrata e pró-ocidental, que instiga à sublevação popular porque os resultados eleitorais são favoráveis ao adversário, cujo, por sua vez, não é loiro, não usa tranças, não é democrata nem pró-ocidental, mas, em contrapartida, ameaça pôr em marcha… conversações, o que, como bem sabemos, é veneno letal e ácido corrosivo dos alicerces da democracia, já para não falarmos da civilização ocidental.

Resta-nos esperar por uma intervenção humanitária da NATO, que salve o Capuchinho Laranja das garras do Lobo Mau e reponha a legalidade democrática na terra mártir da Ucrânia.
 
 
Obs.: citações de passos do artigo “Iulia tem nas mãos o destino da Ucrânia”, Público de domingo, 7.

Ter a ilusão de ter opinião

 

Nos espaços públicos de discussão e debate das rádios (Antena Aberta da Antena 1, Fórum da TSF, …) ouve-se frequentemente, para além de toda a espécie de dislates, com queixas justificadas e proclamações inflamadas de teores diversos à mistura, a expressão de opiniões ditas pessoais, estribadas – naturalmente – naquilo que a imprensa de referência, as rádios e as televisões propalam.
 
Na Antena Aberta de hoje, 4.ª feira, 3, discutia-se a Lei das Finanças Regionais. Sobre o fundo da questão não me pronunciarei. Não tenho opinião pessoal. Pelo menos para já. Mas devo ser uma ave rara. Porque há imensa gente que a tem e não descansa enquanto a não torna pública. São precisamente estas opiniões pessoais que dão o mote ao post de hoje.
 
Dizia um ouvinte, entre vários, que a reivindicação financeira de Alberto João Jardim (essa personagem saída de um romance de cordel brasileiro, com coronéis e jagunços a semearem a lei e a ordem pelo sertão) era um desconchavo, tendo em conta o facto de o país estar em crise e sem cheta.
 
Mais uma vez, não é sobre a questão das finanças regionais que vou opinar, mas sim sobre a opinião pessoal de estarmos em crise e sem um chavo. A crise, dou-a de barato, claro. Até aí, estamos todos de acordo, embora lhe possamos dar nomes diferentes. Eu chamar-lhe-ia crise cíclica. Há uns bons cento e cinquenta anos que umas quantas pessoas em cujas opiniões pessoais confio se debruçaram sobre as relações de produção em diferentes sociedades e em particular naquelas em que capital e trabalho mantêm entre si antagonismos só resolúveis por uma nova síntese revolucionária. Para essas pessoas, a superprodução e o concomitante empobrecimento de grandes massas de trabalhadores conduz fatalmente a tais crises. Já a referência à inexistência de dinheiro, é assunto em que as minhas dúvidas são avassaladoras. Confesso humildemente que não sei. Isto é, sei – e muito bem – que muita gente não tem. Por exemplo, e cito António Vilarigues no artigo “O novo avatar do neoliberalismo luso”, publicado no Público de 22 de Janeiro, “os dois milhões de portugueses que vivem abaixo do limiar da pobreza (o que significa que vivem com menos de 406 euros/mês); os 12% dos portugueses que têm emprego mas que estão também em risco de cair numa situação de pobreza; os 700 mil desempregados reais, mais de um terço dos quais sem direito a receber qualquer subsídio; os 450 mil que trabalham e recebem apenas o Salário Mínimo Nacional; os mais de 40% dos trabalhadores por conta de outrem com um rendimento inferior a 600 euros; os 35% dos portugueses que não têm rendimentos suficientes para manter um sistema de aquecimento em casa; os 64% que não conseguem pagar uma semana de férias fora de casa”.
 
Mas há excepções.
 
Exemplificando de novo, eis o que aprendi lendo um artigo intitulado “Banca enriquece com a crise”:
 
-“Só nos primeiros meses de 2009, os cinco maiores bancos a funcionar em Portugal – CGD, BCPMillenium, Santander Totta, BES e BPI – obtiveram lucros líquidos que atingiram 1447,9 milhões de euros”.
 
-“No período 2005-2009, a banca arrecadou cerca de 1468 milhões de euros de lucros apenas por não ter pago a taxa legal de IRC e de derrama” (27,5% até 2006; 26,5% a partir de 2007).
 
-Em vez disso, a banca pagou 11,7% em 2005, 19,4% em 2006 (“como consequência de uma forte denúncia feita na Assembleia da República”), 14,5% em 2007, 12,8% em 2008, e prevê-se que baixe para 9,9% em 2009.
 
-“Em 2005, as Despesas com Pessoal correspondiam a 32% do Produto Bancário. A partir dessa data esta percentagem tem diminuído de uma forma contínua atingindo, em 2008,apenas 27,5%, tendo subido para 28,6% do Produto Bancário no 1.º semestre de 2009, mas não é certo que o ano termine com esta percentagem”.
 
-“Em 2008, segundo o ‘Relatório anual sobre o governo das sociedades cotadas em Portugal”, divulgado pela CMVM em 2009, a remuneração média anual de cada administrador do sector financeiro foi de 698 081,3euros, atingindo 777 120,4 euros se o banco integrasse o PSI 20 (BCP, BES e BPI)”.
 
Convém frisar que este artigo, da autoria do economista Eugénio Rosa e publicado no Avante! de 21 de Janeiro, tem como fonte o Boletim Informativo da Associação Portuguesa de Bancos.
 
Perante este quadro risonho, só ocorre dizer que a opinião pessoal de que estamos em crise e de que não há dinheiro é capaz de ser uma opinião pouco pessoal, mas muito conveniente para aqueles que passam ao largo da crise, de bolsos cheios e estômagos aviados.
 
E como Vítor Constâncio admite como plausível o aumento do IVA – imposto indirecto que onera de igual modo banqueiros e desempregados – e o FMI sugere a redução dos salários, que Fernando Ulrich já tinha sugerido e cuja possibilidade não é descartada por Silva Lopes, não nos admiremos se, dentro de dias, inspiradas por estas sábias sugestões que a comunicação social de referência repete em cada noticiário, sem contraditório, começarem a surgir na Antena Aberta e no Fórum opiniões pessoalíssimas de ouvintes (muitas vezes tão bem intencionados quanto ingénuos) dispostos a aceitar que lhes reduzam o salário.
 
A bem da Nação. Ora pois!