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Admirável escola nova
(Reportagem pós-moderna)
2014, Setembro, 20.
Com o seu primeiro contrato de autonomia assinado em 200I, ano de generalização da antepenúltima revisão curricular do ensino secundário, a Escola Secundária Eng. Belmiro de Azevedo é pioneira na anunciada privatização do ensino básico e secundário em Portugal (1).
Com efeito, na sequência da OPA (oferta pública de aquisição) lançada há algum tempo, acaba de ser vendida ao grupo presidido pelo conhecido empresário humanista do Norte, que nos últimos anos presidira já à Assembleia de Escola, na qualidade de representante das forças empresariais da região, antes de se tornar Presidente do seu Conselho de Gerência (órgão anteriormente designado Direcção Executiva), na sequência das alterações ao velho Decreto-Lei n0115-A/98, verificadas há 4 anos. À época, sobraçava a pasta da Educação do GovAerno do Partido Sócio-Demo-Popular (PSDP) o Professor Joseph Herrman Saraiva, secundado, na Secretaria de Estado da Educação para a Cidadania pelo Dr. James Nogueira Pinth, posteriormente, como é do conhecimento público, afastado em virtude das posições consideradas esquerdistas e incoadunáveis com a filosofia progressista do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) que tomou no desempenho das suas funções.
A privatização destes graus de ensino, demoradamente ponderada ao longo de mais de trinta anos, tem antecedentes numerosos, quer no próprio sistema - com a já consolidada empresariação (vide Dicionário da Oporto Editora, 50a edição) da educação Pré-Escolar e do ensino superior - quer fora dele - com a entrega dos transportes, das telecomunicações, do sector energético, dos hospitais, do estacionamento urbano, do notariado, da magistratura, da meteorologia, do Ministério da Economia e das Finanças e de algumas Secretarias de Estado à iniciativa privada. Outrossim, a entrega de escolas profissionais públicas bem sucedidas a entidades privadas, nomeadamente cooperativas em que membros do Governo detinham interesses accionistas visou sempre a prossecução dos superiores interesses da educação, através da optimização de recursos para a qual a iniciativa privada sempre esteve mais vocacionada.
Quanto à Escola Secundária Belmiro de Azevedo, ela distinguiu-se no panorama educativo português por ter sido também pioneira na implementação de práticas que vinham dando frutos em alguns países da Federação Europeia, muito particularmente na Grã-Bretanha, desde a reforma implementada pelo Senhor Chris Woodhead, Inspector-Chefe das escolas inglesas, nos últimos anos da governação Blair (2) . Assim, dispunha já de um Conselho de Gerência constituído por 7 Encarregados de Educação (esta expressão recobre actualmente, como se sabe, uma realidade díspar da do século XX, a saber: homens bons do concelho, ou do país, empresários de sucesso, que, com o seu exemplo, edificam as almas do povo simples). Estes EE, os maiores accionistas da região, impulsionaram resolutamente a Escola Belmiro de Azevedo no sentido da economia de mercado, promovendo o arrendamento dos seus equipamentos e instalações, a venda dos trabalhos produzidos por professores e alunos, a captação dos cérebros dos melhores alunos pelas maiores empresas da região (as suas, por via de regra), a cobrança de uma taxa moderadora aos encarregados de educação traditio sensu que pretendiam uma educação de primeira qualidade e a criação de uma SAD (sociedade anónima desportiva), que muito ficou a dever a Vale e Azevedo, uma vez que este conhecido filantropo e actual Presidente do Conselho de Gerência do ISEEF, S.A. (Instituto Superior Empresarial de Educação Física, SA), ao assumir a titularidade de 60% do capital da empresa, deu a todos os investidores um sinal claro da sua confiança na viabilidade da mesma. Todas estas medidas se enquadraram no âmbito do desenvolvimento de um projecto educativo sui generis, com o lema Time is money, education too. Docentes excepcionalmente dedicados a este projecto educativo motivador não se inibiram de prescindir da família, de amigos, de hobbies, de convicções - tudo em proveito desta Escola de elevado potencial. Abalançaram-se, com quanta energia possuíam no recesso da sua consciência profissional, à preparação porfiada dos futuros agentes de produção e quadros técnicos das empresas pertencentes aos membros do Conselho de Gerência da sua escola. Quase todos os jovens alunos destes docentes exemplares foram classificados como Alfas pelo CSMN (Conselho Superior do Magistério Nacional) e louvados pela OPEP (Organização Popular dos Educadores e Professores). Além disso, lograram sair vencedores de concursos herdeiros dos velhos "Quem quer ser milionário?”, “A pirâmide dos milhões", "Vamos ser todos ricos", "A roda dos milhões", “A febre do dinheiro”, “Dinheiro à vista”, "Dos pobres não reza a história", “Tic-tac milionário, etc., etc., etc., e revelaram-se excelentes investidores na Bolsa de Valores de Lisboa (BVL). Apenas uma ínfima parcela soçobrou aquando do crash virtual de 2008, provocado pelo vírus “I love Caldeira”. Mesmo assim, estudos realizados pela equipa da IGEN (Inspecção-Geral de Educação Nova) mostraram que as vítimas tinham sido alunos de docentes rebeldes à implementação da política educativa do Governo do PSDP, entre os quais alguns que persistiam em promover nas suas aulas os valores deletérios da partilha e da solidariedade.
Aproveitando o ensejo da privatização a que nos vimos referindo, fomos indagar das condições de trabalho dos docentes na actualidade. Foi o patrono e Presidente do Conselho de Gerência da escola, em pessoa, que nos recebeu, na sua dependência da 5 de Outubro, que, aliás, tem como anexo, voltado para as traseiras, o gabinete do Ministro.
-"Os enormes progressos verificados no domínio da medicina hormonal, da engenharia genética e das tecnologias, prolongou, como sabe, a vida do homem para além dos cento e vinte anos e hoje perspectiva-se a imortalidade a prazo. Isso permitiu a generalização da semana de 72 horas, ou seja, da jornada de 8 horas, tendo em conta o alargamento da semana para 10 dias (o 10° é de descanso, conforme preceitua o texto da Vulgata Latina, revisitada e corrigida pelos teólogos da Terceira Via). O ECD (Estatuto da Carreira Docente), na sua versão aprovada em 2009, preceitua, por seu turno, a partição do horário destes profissionais segundo quatro componentes – a lectiva, a pré-lectiva, cumprida obrigatoriamente na escola em actividades de aquecimento, a delectiva, cumprida também obrigatoriamente na escola em actividades de meditação transcendental e de adoração das Medidas do Poder, e a pós-lectiva, cumprida obrigatoriamente na residência do docente, após as 20h, no exercício sagrado da sua indefectível da sua autonomia pessoal, social e profissional. À primeira destas componentes, o ECD consagra uma parcela de 40 horas, em homenagem aos operários mortos em Chicago. As restantes 32 repartem-se equitativamente pelas demais. Acresce que a última, da responsabilidade do docente, sofre encurtamentos sucessivos de 1 hora, até ao limite de 7 horas, de 15 em 15 anos, à medida que o docente completar, cumulativamente, 75 anos de idade e 50 de serviço, 90 de idade e 65 de serviço, 105 anos de idade e 80 de serviço. Esta redução da componente pós-lectiva da responsabilidade do docente, nos termos do art.º 79º do ECD, revisão de 2009, “não deve ser encarada como uma penalização mas antes como um regime específico que decorre do exercício do múnus pedagógico, reconhecendo-se a experiência acumulada e não partilhada pelo docente, que assim procura proteger a sua intimidade, restringindo-a ao estrito indispensável.” (3)
-“E a aposentação?”, quisemos saber.
-“Desperdício inqualificável antes dos 120 anos de idade, replicou Belmiro de Azevedo com aquele seu sorriso evanescente. Só é requerível voluntariamente nos casos de pública e notória defecção dos ideais da Escola Nova”, acrescentou com gravidade.
Muitas outras inovações fazem, contudo, da carreira docente uma das mais aliciantes do nosso tempo. Veja-se, v.g., o caso do recrutamento e da remuneração. Nos estabelecimentos privados, desde há anos desregulamentados e flexibilizados, segundo os cânones do BM e do FMI, empregabilidade e retribuição obedecem exclusivamente às leis do mercado. A título de exemplo, centenas de jovens professoras discordantes da IVG (itinerância voluntária e gratuita) têm sido declaradas inaptas para o sistema e substituídas por homens, neste particular sem nenhuma contra-indicação. Outrossim, os docentes demasiado exigentes em matéria salarial (normalmente conotados com organizações ultraconservadoras oriundas do movimento operário do século XIX) são ipso facto preteridos a favor de outros de mentalidade pós-moderna, permanentemente ajustáveis, reestruturáveis e descartáveis. Quanto aos estabelecimentos públicos de ensino, circulares e despachos sucessivos, nomeadamente internos, vieram ao longo dos anos esclarecer e dar eficácia a um ECD geralmente considerado pelas autoridades e pelos contribuintes demasiado securizante, em termos socioprofissionais. Articulados como o seguinte: “O concurso é o processo de recrutamento e selecção normal e obrigatório do pessoal docente, sem prejuízo do disposto em legislação especial” foram justamente apodados de paternalistas e reaccionários, quando não de sindicais. Felizmente, os despachos já referidos vieram corrigir os seus malefícios evidentes, introduzindo no sistema as normas da recondução (vulgo: fixação de docentes envolvidos em projectos) e da cooptação, esta última tendo como critério a cor dos olhos.
Mas também os quadros e a contratação sofreram alterações de monta. Aos tradicionais quadros de escola, destinados a satisfazer as necessidades permanentes dos estabelecimentos de educação ou de ensino, e quadros de zona pedagógica, destinados a assegurar a satisfação de necessidades não permanentes dos mesmos, vieram adicionar-se os quadros de parede, destinados a assegurar o prazer dos olhos; por outro lado, aos contratos administrativos de provimento sucederam os contratos rotativos de assenhoreamento, muito em voga com a mão-de-obra imigrante clandestina, destinados a satisfazer o priapismo dos empresários educativos (4), em regime de alternância. A estes docentes chama-se comummente alternadeiros e alternadeiras, pelo facto de transitarem de escola para escola, acompanhando as deslocações dos respectivos empresários. Repletos de tão abundante informação, bem à imagem da bem-aventurada sociedade em que vivemos, restava-nos inquirir Belmiro de Azevedo sobre os novos programas de ensino. Perante a dificuldade da resposta, o ilustre empresário disfarçou algum embaraço na baforada de fumo do cigarro displicente. Perorou:
-“O segredo da felicidade e da virtude está em gostar daquilo que se é obrigado a fazer. Tal é o fim de todo o ensino: fazer com que as pessoas apreciem o destino social a que não podem escapar.” (5)
Ao sairmos, o crepúsculo mergulhava a avenida na cálida doçura do estio agonizante. As copas das acácias rumorejavam frondosas melopeias ao sabor da brisa. Debaixo delas, algumas dezenas de homens e mulheres sem idade exibiam, em silêncio, cartazes e bandeirolas. Pareceram-nos contratados desempregados, mas a PSP (Polícia Sócio-Popular) não nos permitiu aproximarmo-nos.
NOTAS:
(1) Recorde-se que o acordo geral sobre os serviços, obtido em 2002, na sequência da Ronda do Milénio promovida pela Organização Mundial de Comércio, abriu à concorrência internacional todos os sectores dos serviços públicos: saúde, comunicações, cultura, educação, …
(2) Esta reforma caracterizou-se essencialmente pela “liquidação dos últimos resquícios de actividade trade-unionista docente no Reino Unido, anacronicamente corporativista, como consequência directa da modalidade “produtivista” de remuneração dos docentes em função do êxito escolar (vulgo: sucesso educativo) dos seus alunos. Confrontados com a tarefa magna e ingente de encontrar soluções pedagógicas para os medíocres resultados de milhões de crianças e de adolescentes oriundos de famílias de desempregados, sem qualquer fonte de recursos, os docentes, pagos com víveres de primeira necessidade, deixaram de dispor de tempo e de meios para se organizarem profissionalmente”. Neves, John César das, História da Obsolescência do Sindicalismo na Viragem do Milénio, Lx.ª, Pacheco e Pereira Editores, 2010, p. 30
(3) Lemows, J. ; Karvallo, L.G., Estatuto da Carreira Docente – Revisão de 2009, Lx.ª, Edições Theodore, p. 134
(4) Serviram de inspiração e de modelo a esta nova modalidade de contrato os dois empresários de Guadalajara que, no ano 2000, obrigaram um imigrante argelino “a assinar um contrato em que este aceitava a sua situação de escravo, trabalhando sem ganhar nada e podendo ser usado como os patrões bem entendessem – até para a flagelação, trabalhos forçados e sodomia.” Cf. Expresso Revista n.º 1448, 29 de Julho de 2000, p.11
(5) Huxley, Aldous, Admirável Mundo Novo, Unibolso, p. 30, adaptado.
Obs.: Este texto, publicado neste blog em 26 de Fevereiro e enigmaticamente apagado, só em 27/08/2010 foi republicado.
A Fechadura
por Alysson Estopa,
flickr