Eu andava, desde há dias, amargurado. Primeiro, tinha sido a Ministra do Trabalho, ex-sindicalista da UGT, a referir-se às 18000 ofertas de trabalho por preencher nos Centros de Emprego quando, simultaneamente, temos para cima de meio milhão de desempregados (na realidade, mais de 700 mil). Depois, há dois ou três dias, uma reportagem de um canal de televisão mostrava donos de quintas - não me lembro onde - dispostos a empregar caseiros que aceitassem cultivar-lhes as propriedades, recebendo em troca habitação e boa parte das colheitas. Queixavam-se de que não aparecia ninguém interessado, apesar das dificuldades de que tanta gente se queixa.
A minha amargura ia já ao ponto de encarar a hipótese de aderir ao CDS - partido que sempre verbera a malandragem que ganha balúrdios em rendimento mínimo de inserção sem mexer numa palha - ou mesmo ao PS - partido que, segundo o Engenheiro Cravinho, recebe lições de esquerda do CDS e que, por conseguinte, me parece estar actualmente mais bem posicionado para congregar as vontades e os esforços de quantos se empenham na salvação da pátria das garras dos abutres que a levam à ruína, quais sejam os beneficiários do rendimento de inserção, do subsídio de desemprego e outros que tais.
Só que, quando a tristeza me invade, sentindo-me terminantemente incapaz de cantar o fado, opto por um motor de pesquisa de questões laborais, sociais e outras que tais, cujo se chama Avante! Ora o que o Avante! desta semana diz, citando a CGTP, é que "três quartos das ofertas existentes nos Centros de Emprego (75%) correspondem a trabalhos precários e em regime temporário», onde se incluem as tais «18 mil ofertas de trabalho», na sua maioria esmagadora publicadas por agências de trabalho temporário." E depois? - retorquir-se-á. Depois, acontece que a remuneração desses empregos é da ordem do salário mínimo (475€), quando o valor médio do subsídio de desemprego é de 520€, e, pior ainda, "são empregos precários (maioritariamente trabalhos temporários ou a termo certo, pelo que aceitá-los e perdê-los de seguida é ficar no desemprego e sem subsídio) e acarretam o «preço da reincidência», ou seja, ao aceitar-se um emprego de valor inferior ao anterior, isso terá consequências na situação de desemprego seguinte, que passa a ser subsidiada com uma percentagem menor, calculada sobre o último salário."
Resumindo: um desempregado que aceite uma destas irrecusáveis ofertas de trabalho, não morrendo do mal - apesar de tudo -, pode muito bem vir a morrer da cura. O que, aliás, parece ser o objectivo da desregulamentação (mais uma) que o Governo da Dr.ª André quer, neste domínio, promover através do PEC.
Ah! Quanto à reportagem das quintas, devo acrescentar, em abono da verdade, que, logo a seguir, o Presidente da Junta - creio - explicava que era necessário prever a atribuição de uma verba a quem se dispusesse a ir trabalhar para as tais quintas, uma vez que as colheitas não ocorrem no dia seguinte ao da sementeira e, entretanto, o caseiro e família teriam de comer.
A minha amargura lá se desvaneceu. E lá perdeu o CDS um potencial militante.
Esta, também adaptada para o blogue, é sobre um aspecto ainda hoje controverso da escrita de Saramago.
A dada altura do Manual de Pintura e Caligrafia, o escritor transcreve uma página do Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, esclarecendo de seguida: "Outras vezes tenho copiado textos desde que comecei a escrever, e por diferentes razões, para apoiar um dito meu, para opor, ou porque não seria capaz de dizer melhor. Agora o fiz para adestrar a mão, como se estivesse a copiar um quadro. Transcrevendo, copiando, aprendo a contar uma vida, de mais na primeira pessoa, e tento compreender, desta maneira, a arte de romper o véu que são as palavras e de dispor as luzes que as palavras são."
Sugestões ao leitor (virtual e improvável) com propensão para a criação literária:
1. Experimente copiar e imitar Saramago. É provável que esse treino o conduza rapidamente ao fascínio de uma escrita surpreendentemente produtiva.
2. Antes disso, porém, leia o excerto seguinte do seu romance Ensaio sobre a Cegueira e a "correcção" que foi feita à pontuação característica do escritor.
3. Verifique que a pontuação de Saramago faz com que o texto original se leia de forma mais fluente, mais corredia, e até mais rápida.
4. Se dispuser de um texto seu, de preferência dialogado, tente pontuá-lo à maneira de José Saramago.
5. Repita a experiência logo que se sinta inspirado para escrever. Verá que a sua escrita será mais produtiva.
Excerto de Ensaio sobre a Cegueira
Contra o costume, os corredores estavam desimpedidos, em geral não era assim, quando se saía das camaratas não se fazia mais que tropeçar, esbarrar e cair, os agredidos praguejavam, largavam palavrões grosseiros, os agressores respondiam no mesmo tom, porém ninguém dava importância, uma pessoa tem de desabafar de qualquer maneira, mormente se está cego. À frente deles havia um rumor de passos e de vozes, deviam de ser os emissários doutra camarata que iam à mesma obrigação. Que situação a nossa, senhor doutor, disse o primeiro cego, já não nos bastava estarmos cegos, viemos cair nas garras de uns cegos ladrões, até parece sina minha, primeiro foi o do carro, agora estes que roubam a comida, e ainda por cima de pistola, A diferença é essa, a arma, Mas os cartuchos não duram sempre, Nada dura sempre, contudo, neste caso, talvez fosse de desejar que sim, Porquê, Se os cartuchos vierem a acabar, será porque alguém os disparou, e nós já temos mortos de sobra, Estamos numa situação insustentável, É insustentável desde que aqui entrámos, e apesar disso vamo-nos aguentando, O senhor doutor é optimista, Optimista não sou, mas não posso imaginar nada pior do que o que estamos a viver, Pois eu estou desconfiado de que não há limites para o mau, para o mal, Talvez tenha razão, disse o médico, e depois, como se estivesse a falar consigo mesmo, Alguma coisa vai ter de suceder aqui, conclusão esta que comporta uma certa contradição, ou há afinal algo pior do que isto, ou daqui para diante tudo vai melhorar, ainda que pela amostra o não pareça.
Ensaio Sobre a Cegueira, p.144
Excerto "corrigido"
Contra o costume, os corredores estavam desimpedidos. Em geral, não era assim. Quando se saía das camaratas, não se fazia mais que tropeçar, esbarrar e cair. Os agredidos praguejavam, largavam palavrões grosseiros; os agressores respondiam no mesmo tom. Porém, ninguém dava importância. Uma pessoa tem de desabafar de qualquer maneira, mormente se está cego. À frente deles, havia um rumor de passos e de vozes. Deviam de ser os emissários doutra camarata, que iam à mesma obrigação.
- Que situação a nossa, senhor doutor, disse. o primeiro cego. Já não nos bastava estarmos cegos, viemos cair nas garras de uns cegos ladrões. Até parece sina minha. Primeiro, foi o do carro, agora, estes, que roubam a comida, e ainda por cima de pistola.
- A diferença é essa, a arma.
- Mas os cartuchos não duram sempre.
- Nada dura sempre. Contudo, neste caso, talvez fosse de desejar que sim.
- Porquê? - Se os cartuchos vierem a acabar, será porque alguém os disparou, e nós já temos mortos de sobra.
- Estamos numa situação insustentável!
- É insustentável desde que aqui entrámos, e apesar disso vamo-nos aguentando.
- O senhor doutor é optimista...
- Optimista não sou, mas não posso imaginar nada pior do que o que estamos a viver.
- Pois eu estou desconfiado de que não há limites para o mau, para o mal.
- Talvez tenha razão, disse o médico.
E depois, como se estivesse a falar consigo mesmo:
«Alguma coisa vai ter de suceder aqui», conclusão esta que comporta uma certa contradição - ou há afinal algo pior do que isto, ou daqui para diante tudo vai melhorar, ainda que pela amostra o não pareça.
Foi no Jornal das 13 da SIC. Hoje. Era no Japão, onde, segundo o pivot, só um em cada 5 licenciados consegue emprego. Uma caterva de jovens com o canudo, vestidos a rigor, entra numa grande sala onde se vai desenrolar a cerimónia. No púlpito, está o director, que discursa. A dada altura, os jovens que acabam de ser recrutados juram fidelidade à empresa e cantam o hino (o hino da empresa – que não o hino nacional japonês). Depois, para amenizar, fazem uns exercícios de relaxamento e sorriem. Sorriem muito. Devem mostrar-se gratos e felizes. Neste admirável mundo novo, ter um emprego é uma dádiva desses seres maravilhosos que são os chefes das grandes empresas.
Lembrei-me de quando entrei para a Berliet em Vénissieux-Lyon. Já lá vão mais de quarenta anos. No meu primeiro dia, se bem me lembro, não cheguei a trabalhar. Fui levado com outros recém-“embauchés” para um local da empresa onde nos mostraram diapositivos com imagens dos diversos serviços, secções, oficinas. Falaram-nos da história da empresa, da sua importância na região, no país, na economia francesa. Depois, foi uma visita de estudo às instalações.
Era visível a preocupação com a integração naquele grande colectivo (na altura, a Berliet teria cerca de 11 mil trabalhadores). E a fábrica, a “minha” fábrica, era realmente um mundo, com refeitórios, enfermarias, biblioteca e mediateca, com um Comité de Empresa, onde os trabalhadores tinham uma representação importante, com sindicatos extremamente activos e delegados sindicais que eram fiscais das condições de trabalho e advogados dos outros trabalhadores.
Hoje, segundo julgo saber, já nada é assim. Só não sei se lá, como no Japão, já é preciso jurar fidelidade ao patrão.
Há cerca de vinte anos, Mia Couto, grande escritor de língua portuguesa, estreou-se numa nova maneira de falar – ou "falinventar" – português, que continua a ser o seu ex-libris. O texto “Perguntas à língua portuguesa”, que publicou em 1997 e que transcrevo mais abaixo, dá algumas pistas quanto aos processos de subversão ou de reinvenção da nossa língua, ou seja, quanto ao “falinventar” do escritor moçambicano. No escassíssimo estudo que segue e que não passa da adaptação para o blogue de uma ficha de trabalho que usei há anos num atelier de escrita criativa, debruçar-me-ei apenas sobre alguns aspectos lexicais, deixando de lado a sintaxe, e, obviamente – atenta a escassez do corpus de análise (duas páginas de uma crónica) – sem nenhuma pretensão de exaustividade.
***
1. Atentemos nas seguintes frases e expressões retiradas da primeira crónica – “A carta” – do livro Cronicando (Caminho, 3.ª edição, 1991). *
a)“Amparava-se em poeiras, seria para se acostumar à cova, na subfície do mundo?” (9)
b)“Era a carta de seu filho, Ezequiel. Ele se longeara, de farda, cabelo no zero.” (9)
c)“Essas letras cheiram a pólvora, me rodilham o coração.” (9)
d)“A velha se imovia como se tivesse saudade da morte.” (10)
e)“E o Ezequiel, em minha imagináutica, ganhava os infindos modos de ser filho (…)” (10)
2. Reparemos nos processos de formação lexical usados pelo escritor.
a)subfície foi formada por analogia com superfície; se “à superfície” significa “à tona, por cima”, “na subfície” significará “por baixo”;
b)longear-se é um verbo resultante da derivação por sufixação do advérbio longe, com o significado de afastar-se, ir para longe;
c)rodilhar deriva por sufixação do substantivo rodilha e significa angustiar;
d)imover-se resulta da derivação por prefixação do verbo mover-se e é, obviamente, o seu antónimo;
e)imagináutica é o produto da aglutinação de imaginação com náutica (arte de navegar), significando divagação (navegação mental).
3. Na grelha seguinte, estão sistematizados estes casos de subversão linguística.
“Infracção” cometida
Na prefixação
Na sufixação
Na aglutinação
subfície
imover-se
longear(-se)
rodilhar
imagináutica
4. Este processo de inovação é rico de virtualidades semânticas, porque as novas palavras criadas não são meros sinónimos das que já existiam na língua. “Longear-se” não é exactamente o mesmo que “afastar-se”; é isso mais a sugestão intensificadora da distância, que lhe advém da vogal nasal. Do mesmo modo, “rodilhar” acrescenta ao banal “angustiar” a imagem da rodilha, peça de pano sem valor, usada em limpezas, que se torce para dela se espremer a água. Está-se a ver a distância que vai do seco “angustiar” ao sugestivo “rodilhar o coração”… E sempre, nestes como em todos os outros casos, a surpresa do leitor desvia-o momentaneamente do curso mais ou menos linear da leitura para um deambulação, que pode ser mais ou menos demorada. É como se, no decorrer de uma caminhada, parasse aqui e ali para contemplar um recanto da paisagem.
5. Mia Couto faz um uso tão frequente destes neologismos que eles acabam por ser um verdadeiro ex-libris da sua escrita. No entanto, outros escritores também recorrem a este processo de inovação. É o caso de Eça, com verbos como “cachimbar”, “cervejar” e “gouvarinhar” (do patrónimo Gouvarinho); de Urbano Tavares Rodrigues, que tem um volume de ensaios intitulado “Ensaios de escreviver”; de Luandino Vieira, que escreve, por exemplo, “desanoitecer” e “desconseguir” (De Rios Velhos e Guerrilheiros, O Livro dos Rios).
6. Como é evidente, não se consegue de um dia para o outro subverter e reinventar a língua com a facilidade que Mia Couto aparenta possuir. Essa familiaridade resulta de um convívio prolongado e muito atento com as palavras da língua, que o escritor transforma um pouco como o escultor esculpe.
Perguntas à Língua Portuguesa
Venho brincar aqui no Português, a língua. Não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente aquando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é idimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo-da-guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Nos falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo é a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica, fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento novo, um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
Estamos, sim, amando o indomesticável, aderindo ao invisível, procurando os outros tempos deste tempo. Precisamos, sim, de senso incomum. Pois, das leis da língua, alguém sabe as certezas delas? Ponho as minhas irreticências. Veja-se, num sumário exemplo, perguntas que se podem colocar à língua:
Se pode dizer de um careca que tenha couro cabeludo?
No caso de alguém dormir com homem de raça branca é então que se aplica a expressão: passar a noite em branco?
A diferença entre um ás no volante ou um asno volante é apenas de ordem fonética?
O mato desconhecido é que é o anonimato?
O pequeno viaduto é um abreviaduto?
Como é que o mecânico faz amor? Mecanicamente.
Quem vive numa encruzilhada é um encruzilhéu?
Se diz do brado de bicho que não dispõe de vértebras: o invertebrado?
Tristeza do boi vem de ele não se lembrar que bicho foi na última reencarnação. Pois se ele, em anterior vida, beneficiou de chifre o que está ocorrendo não é uma reencornação?
O elefante que nunca viu mar, sempre vivendo no rio: devia ter marfim ou riofim?
Onde se esgotou a água se deve dizer: "aquabou"?
Não tendo sucedido em Maio mas em Março o que ele teve foi um desmaio ou um desmarço?
Quando a paisagem é de admirar constrói-se um admiradouro?
Mulher desdentada pode usar fio dental?
A cascavel a quem saiu a casca fica só uma vel?
As reservas de dinheiro são sempre finas. Será daí que vem o nome: "finanças"?
Um tufão pequeno: um tufinho?
O cavalo duplamente linchado é aquele que relincha?
Em águas doces alguém se pode salpicar?
Adulto pratica adultério. E um menor: será que pratica minoritério?
Um viciado no jogo de bilhar pode contrair bilharziose?
Um gordo, tipo barril, é um barrilgudo?
Borboleta que insiste em ser ninfa: é ela a tal ninfomaníaca?
Brincadeiras, brincriações. E é coisa que não se termina. Lembro a camponesa da Zambézia. Eu falo português corta-mato, dizia. Sim, isso que ela fazia é, afinal, trabalho de todos nós. Colocámos essoutro português – o nosso português – na travessia dos matos, fizemos com que ele se descalçasse pelos atalhos da savana.
Nesse caminho lhe fomos somando colorações. Devolvemos cores que dela haviam sido desbotadas – o racionalismo trabalha que nem lixívia. Urge ainda adicionar-lhe músicas e enfeites, somar-lhe o volume da superstição e a graça da dança. É urgente recuperar brilhos antigos. Devolver a estrela ao planeta dormente.
11/04/1997
Mia Couto
in http://ciberduvidas.sapo.pt/antologia/miacouto.html
Eis algumas ideias mais.
Escreviler: a arte de escrever e ler.
Escrever (escre-ver) tem duas flexões: eu escrevo e eu escrevejo.
Acariciar-se e ciciar ao mesmo tempo: acariciciar-se.
O João namoraventurou-se com a Maria, isto é, aventurou-se a namorar com ela, lançou-se na aventura do namoro.
Alguém que perde a voz ao topar num muro fica emudecido ou emurecido?
E se, depois de se ter calado, voltar a falar, descala-se?
Se o despertador tocar e eu continuar a dormir, não acordo, logo desacordo?
Navegar devagar, com todo o vagar, não será navagar?
“Pois. Vivemos nesta apagada e vil tristeza a que nos condenaram os arautos do neoliberalismo; o pensamento único venceu, para já, a batalha ideológica; (quase) toda a gente pensa que não há volta a dar-lhe; admite-se sem tugir nem mugir que a História chegou ao fim; dá-se por certo que esta globalização é o supra-sumo da civilização; penaliza-se eleitoralmente o partido (de direita ou dito de esquerda) que acaba de nos lesar e vota-se alegremente no partido (dito de esquerda ou de direita) que nos lesou anteriormente (mas quem se lembra disso?!), enquanto aguardamos pela próxima oportunidade de votarmos naqueles que desta vez penalizámos. Entretanto, o PDE (Partido Dito de Esquerda) faz a mesma política que o PD (Partido de Direita), quando não ainda mais à direita, e os arautos do pensamento único vêm dizer-nos que a distinção entre direita e esquerda já não faz sentido hoje em dia. É um pouco como se os ladrões se fizessem apelidar de Homens Honestos e, na sequência disso, nos puséssemos a dizer que já não faz sentido distinguir a honestidade da desonestidade. No meio de toda esta balbúrdia promíscua a que se convencionou chamar Estado de direito democrático, que um ministro da justiça (minúscula) empregue a filha no ministério, ou que um (anterior) ministro dos Negócios Estrangeiros (convém que os negócios, nacionais ou estrangeiros, sejam sempre maiúsculos) negoceie a entrada da filha na Universidade, são minudências em que não devemos deter-nos. Aliás, são mesmo insignificâncias, quando muito indiciadoras de critérios morais discutíveis, pois os verdadeiros vícios do regime e do sistema, que fazem com que milhões sofram para que milhares gozem, são outros – estruturais –, e àqueles que os denunciam o pensamento único chama de utópicos (sinónimo de lunáticos, ou mesmo de parvos, no léxico dos cavalheiros). Até quando isto vai durar, ninguém sabe. Mas a História é useira e vezeira em surpreender-nos. Quando isso acontecer, os mais surpresos vão seguramente ser aqueles que a dizem chegada ao fim.”
Quando, em 22 de Maio de 2006, escrevi o que antecede, estávamos em plena maioria absoluta do Partido dito Socialista, ainda eu não tinha este blog(ue), e aquilo que ia acontecendo levava-me a crer que tínhamos batido no fundo. Ingenuidade! Aquilo que, desde então, tem vindo ao conhecimento público e, sobretudo, a certeza absoluta de que, apesar do tamanho que ostenta, tudo isto não passa da ponta do iceberg, dizem-me que não há limites para a descida aos infernos da infâmia.
Ele há coisas!... Andam os pregoeiros da comunicação social livre e independente – verdadeiro pilar e ex-líbris do Estado de direito e da sociedade democrática – a tentar convencer-nos (muitas e muitas vezes com inegável êxito, diga-se de passagem) de que a dita comunicação social é sumamente livre e inquestionavelmente independente, eis senão quando Miguel Pais do Amaral, ex-patrão da TVI, vem declarar, com frontalidade, limpidez e cristalinidade capazes de fazerem inveja a Ignacio Ramonet, para já não dizer ao Avante!, que “o accionista não decide quem se deve entrevistar, mas decide o posicionamento [editorial] e o jornalista tem de interpretar. Se não está contente, vai para outro sítio.” (Público de hoje). Mesmo para quem nunca foi na cantiga da comunicação social livre, independente e blablá, sabe bem ouvir, por uma vez, da boca de um patrão, que quem manda é o Capital – e o jornalista, se não obedece, vai para a rua.
O Público de hoje publica vários textos sobre Ricardo Salgado, a família Espírito Santo e o Banco do mesmo nome. Dois grandes infogramas acompanham estes textos. Creio que não haverá neste material nada de verdadeiramente novo para quem acompanha de perto a actualidade nacional. É contudo positivo que nos recordem alguns factos que o tempo vai obliterando. Por exemplo, que a intimidade entre esta grande família e o fascismo ia ao ponto de Ricardo Espírito Santo, avô de Ricardo Salgado, se encontrar com Salazar ao domingo à noite, para com ele conversar sobre temas económicos e empresariais, e que a família tinha “ligações” aos nazis. Mais interessante, talvez, e sobretudo mais actual é o conteúdo do infograma das páginas 4 e 5, cujo título é “Os amigos e ex-colaboradores do Grupo Espírito Santo com ligações à actividade política”. Aí aparecem, quais astros menores, em torno da estrela de primeira grandeza que é Ricardo Salgado – Ângelo Correia, Manuel Pinho, Nuno Vasconcellos, António Mexia, Durão Barroso e Freitas do Amaral. O infograma tem a vantagem didáctica de tornar ainda mais evidente a enorme permeabilidade das esferas dos poderes político e económico. Independentemente do partido a que pertencem (PSD, PS ou CDS), estas personagens transitam de um poder para outro e deste outro para o primeiro com a mesma facilidade com que um prestidigitador nos leva a ver apenas aquilo que ele quer que vejamos. E é também como ilusionistas que conseguem criar a ilusão de que os governos que integram, em alternância com os conselhos de administração das grandes empresas e dos bancos, são instâncias vocacionadas para a prossecução do bem comum. Como se eles não soubessem, ainda melhor do que Marx, que tais governos não passam de meros conselhos de administração dos interesses da burguesia.
O meu banco é muito meu amigo. Tão amigo que, há uns tempos, começou a tratar-me por dono. Passei a ser dono do meu banco – facto que devolveu ao possessivo sua inteira propriedade. É bem certo que nunca dei por nenhum aumento dos meus rendimentos mensais, nem passei a ser consultado no momento da tomada de decisões em operações financeiras. Também não beneficiei de nenhum desagravamento do spread que me é cobrado pelo crédito à habitação. Mas, pronto, passei da condição de simples cliente, igual a milhares de outros, a dono. O que não é despiciendo. No mundo em que vivemos, os estatutos sociais são, em grande medida, determinados pela gravata ou pelo título que os nossos concidadãos nos outorgam. Ora, passar de uma condição a outra – na ocorrência, a de banqueiro – de um dia para o outro, sem ao menos um curto tirocínio que me fosse paulatinamente induzindo a pensar e agir de acordo com a minha novel condição, causou-me aquilo a que comummente chamamos problemas de consciência. É que, reconhecendo a utilidade dos bancos para as operações mais comezinhas do dia-a-dia e a sua centralidade na nossa economia, nunca nutri particular simpatia pela actividade em apreço, que até tendia a identificar com a simples agiotagem, pelo menos desde que Gil Vicente me deu a conhecer a figura do onzeneiro, que o Mestre, sem apelo nem agravo, recambia para o inferno, juntamente com frades e fidalgos. Isto para já não falar de uma série de outras leituras posteriores ainda mais demolidoras do bom nome e honradez da banca do que as Barcas vicentinas. E, assim, sentia-me um ingrato. Porém, reconsiderei e cheguei à conclusão que encima este meu desabafo: o meu banco é muito meu amigo. Aliás, bastaria escrutinar a caderneta que contém todos os movimentos da minha conta para logo inferir, sem margem para dúvidas, que o meu banco é, ademais, o meu maior confidente. Ele sabe exactissimamente quanto eu arrecado e quanto eu desembolso (valores muito próximos entre si, como acontece com a grande maioria dos portugueses) todos os meses do ano. Mais do que isso, sabe, tintim por tintim, o destino que dou aos magros cabedais que me destinam: supermercados, carregamentos do telemóvel, abastecimentos de combustível, energia eléctrica, comunicações telefónicas, ADSL, farmácias, livrarias, seguros, próteses oftalmológicas, auto-estradas, etc., etc., etc. A caderneta é uma espécie de GPS que regista todas as minhas andanças. Poderá ser o meu álibi, se algum dia a Judiciária suspeitar de mim.
E, sendo assim, já sei ser escusado preocupar-me com a minha sobrevivência na lembrança dos meus concidadãos, quando a senhora da foice, pouco dada às intermitências que Saramago lhe quis endossar, decidir levar-me. O meu amigo e confidente banco não deixará de me escrever a biografia, recapitulando todos os movimentos que ao longo da minha vida terão sido lançados a crédito e sobretudo a débito da minha conta.