Se bem entendi, Gordon Brown, que supunha não estar a ser ouvido por mais ninguém, queixou-se ao assessor. Tinha sido um erro porem-no a falar com uma eleitora do Partido Trabalhista que, grosso modo, achava mal a Grã-Bretanha dar acolhimento a imigrantes de Leste. Isto porque, se bem entendi, os imigrantes são um fardo para o país. Preconceituosa – foi o epíteto que o primeiro-ministro inglês lhe pespegou, julgando não ser ouvido.
Vítima desta escuta inconveniente, Brown desfez-se em desculpas junto da senhora. Óbvio disparate. Quem deveria desculpar-se era ela – primeiro, porque revelara a crassa ignorância de ter os imigrantes (do Leste ou de qualquer outro quadrante) por um fardo, quando sem eles as economias ocidentais se afundariam; segundo, porque, sendo apresentada como apoiante dos trabalhistas, ao reproduzir um lugar-comum do discurso de extrema-direita, associava aos trabalhistas o labéu da xenofobia.
Não fosse a preocupação com a gestão eleitoralista da sua imagem, Brown deveria ter dito à senhora, frontalmente e sem rodeios, que estava errada e que a banalidade que proferira não passava de um preconceito. Só por não o ter feito se justificava um pedido de desculpas – à senhora e aos apoiantes do Partido Trabalhista.
Já a notícia do Público de ontem tem o seguinte curioso título: “Gordon Brown insulta viúva em gaffe de campanha”. Ao chamar “preconceituoso” a alguém, estou a dizer-lhe: o que pensas a esse respeito não resiste ao confronto com a realidade, ou seja, não tem fundamento. Será isto insultar? Por outro lado, a que propósito vem a invocação da viuvez da senhora numa notícia em que o defunto marido não mete prego nem estopa?
Eu, se fosse o Público, pedia desculpa aos leitores.
Li O Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdão, há mais de quarenta anos e não o retomei. Como acontece com a maior parte das leituras que fiz, pouco recordo do conteúdo concreto do livro, mas não me esqueci nem da verve com que Erasmo satirizava os teólogos e profligava o obscurantismo religioso nem do gozo que a leitura me proporcionou.
Nesse tempo, o meu círculo de amigos era constituído maioritariamente por jovens imbuídos de ideais humanistas para quem cultura, progresso, solidariedade e justiça social se resumiam numa palavra – antifascismo. Do subgrupo mais activo politicamente, eu era o mais jovem e inexperiente. Assim, foram eles que me deram a conhecer a “Seara Nova”, o “Avante” (em papel bíblia, como as obras de Eça na edição da Lello), os romances de Jorge Amado (Os subterrâneos da Liberdade, entre outros), de Pasolini (Uma Vida Violenta), o Cine-clube do Porto (lembro-me bem de ter visto “Rocco e Seus Irmãos”, de Visconti, no Batalha), os ensaios de Josué de Castro (Geopolítica da Fome, Sete Palmos de Terra e Um Caixão), a UNICEPE, cooperativa livreira de estudantes do Porto, e sei lá que mais… Para eles, logo para mim, a crítica desassombrada de Erasmo, a denúncia neo-realista das injustiças sociais, a imprensa clandestina, as tertúlias em minha casa e na do Mário e o envolvimento militante (distribuição clandestina de panfletos) eram o alimento espiritual que fazia viver e crescer.
Erasmo empolgou-me porque atacava um poder retrógrado, corrupto e ditatorial – o poder da Igreja no Renascimento. E porque fertilizava a aridez dos compêndios de História (os do Mattoso), nomeadamente no capítulo da Reforma protestante. Com Erasmo, fiquei a compreender muito melhor o que motivara Lutero a publicar as suas célebres teses de Wittenberg, em 1517, e a problemática das indulgências. Todavia, mais de quarenta anos mais tarde, e de novo através da IG, que me enviou o texto por email, afinei tal compreensão, lendo a “Taxa Camarae”, promulgada em 1517 (também) por Leão X e que transcrevo no fim.
Ignoro se é um texto apócrifo (sei que se discute a sua autenticidade) e concedo que é difícil acreditar que possa ser genuíno. Contudo, o mais inverosímil não é tanto que a Igreja pudesse perdoar aqueles “pecados” (crimes abomináveis, alguns), a troco de umas quantas libras, uns quantos soldos. Sabe-se o que foi o papado na baixa Idade Média e no Renascimento… Inverosímil é que o redactor do tarifário tenha descodificado a este ponto, com este pormenor de inventário, o conteúdo do “pecado”. Como diria o outro, não havia necessidade…
A Taxa Camarae do papa Leão X
A Taxa Camarae é um tarifário promulgado, em 1517, pelo papa Leão X (1513-1521) destinado a vender indulgências, ou seja, o perdão dos pecados, a todos quantos pudessem pagar umas boas libras ao pontífice. Como veremos na transcrição que se segue, não havia delito, por mais horrível que fosse, que não pudesse ser perdoado a troco de dinheiro. Leão X declarou aberto o céu para todos aqueles, fossem clérigos ou leigos, que tivessem violado crianças e adultos, assassinado uma ou várias pessoas, abortado... desde que se manifestassem generosos com os cofres papais.
Vejamos o seus trinta e cinco artigos:
1. O eclesiástico que cometa o pecado da carne, seja com freiras, seja com primas, sobrinhas ou afilhadas suas, seja, por fim, com outra mulher qualquer, será absolvido, mediante o pagamento de 67 libras, 12 soldos.
2. Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação, quiser ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade, deve pagar 219 libras, 15 soldos. Mas se tiver apenas cometido pecado contra a natureza com meninos ou com animais e não com mulheres, somente pagará 131 libras, 15 soldos.
3. O sacerdote que desflorar uma virgem, pagará 2 libras, 8 soldos.
4. A religiosa que quiser alcançar a dignidade de abadessa depois de se ter entregue a um ou mais homens simultânea ou sucessivamente, quer dentro, quer fora do seu convento, pagará 131 libras, 15 soldos.
5. Os sacerdotes que quiserem viver maritalmente com parentes, pagarão 76 libras e 1 soldo.
6. Para todos os pecados de luxúria cometido por um leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo; no caso de incesto, acrescentar-se-ão em consciência 4 libras.
7. A mulher adúltera que queira ser absolvida para estar livre de todo e qualquer processo e obter uma ampla dispensa para prosseguir as suas relações ilícitas, pagará ao Papa 87 libras e 3 soldos. Em idêntica situação, o marido pagará a mesma soma; se tiverem cometido incesto com os seus filhos acrescentarão em consciência 6 libras.
8. A absolvição e a certeza de não serem perseguidos por crimes de rapina, roubo ou incêndio, custará aos culpados 131 libras e 7 soldos.
9. A absolvição de um simples assassínio cometido na pessoa de um leigo é fixada em 15 libras, 4 soldos e 3 dinheiros.
10. Se o assassino tiver morto a dois ou mais homens no mesmo dia, pagará como se tivesse apenas assassinado um.
11. O marido que tiver dado maus tratos à sua mulher, pagará aos cofres da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a tiver morto, pagará 17 libras, 15 soldos; se o tiver feito com a intenção de casar com outra, pagará um suplemento de 32 libras e 9 soldos. Se o marido tiver tido ajuda para cometer o crime, cada um dos seus ajudantes será absolvido mediante o pagamento de 2 libras.
12. Quem afogar o seu próprio filho pagará 17 libras e 15 soldos [ou seja, mais duas libras do que por matar um desconhecido (observação do autor do livro)]; caso matem o próprio filho, por mútuo consentimento, o pai e a mãe pagarão 27 libras e 1 soldo pela absolvição.
13. A mulher que destruir o filho que traz nas entranhas, assim como o pai que tiver contribuído para a perpetração do crime, pagarão cada um 17 libras e 15 soldos. Quem facilitar o aborto de uma criatura que não seja seu filho pagará menos 1 libra.
14. Pelo assassinato de um irmão, de uma irmã, de uma mãe ou de um pai, pagar-se-á 17 libras e 5 soldos.
15. Quem matar um bispo ou um prelado de hierarquia superior terá de pagar 131 libras, 14 soldos e y6 dinheiros.
16. O assassino que tiver morto mais de um sacerdote, sem ser de uma só vez, pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro, e metade pelos restantes.
17. O bispo ou abade que cometa homicídio põe emboscada, por acidente ou por necessidade, terá de pagar, para obter a absolvição, 179 libras e 14 soldos.
18. Quem quiser comprar antecipadamente a absolvição, por todo e qualquer homicídio acidental que venha a cometer no futuro, terá de pagar 168 libras, 15 soldos.
19. O herege que se converta pagará pela sua absolvição 269 libras. O filho de um herege queimado, enforcado ou de qualquer outro modo justiçado, só poderá reabilitar-se mediante o pagamento de 218 libras, 16 soldos, 9 dinheiros.
20. O eclesiástico que, não podendo saldar as suas dívidas, não quiser ver-se processado pelos seus credores, entregará ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 dinheiros, e a dívida ser-lhe-á perdoada.
21. A licença para instalar pontos de venda de vários géneros, sob o pórtico das igrejas, será concedida mediante o pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 dinheiros.
22. O delito de contrabando e as fraudes relativas aos direitos do príncipe contarão 87 libras e 3 dinheiros.
23. A cidade que quiser obter para os seus habitantes ou para os seus sacerdotes, frades ou monjas autorização de comer carne e lacticínios nas épocas em que está vedado fazê-lo, pagará 781 libras e 10 soldos.
24. O convento que quiser mudar de regra e viver com menos abstinência do que a que estava prescrita, pagará 146 libras e 5 soldos.
25. O frade que para sua maior conveniência, ou gosto, quiser passar a vida numa ermida com uma mulher, entregará ao tesouro pontifício 45 libras e 19 soldos.
26. O apóstata vagabundo que quiser viver sem travas pagará o mesmo montante pela absolvição.
27. O mesmo montante terá de pagar o religioso, regular ou secular, que pretenda viajar vestido de leigo.
28. O filho bastardo de um prior que queira herdar a cura de seu pai, terá de pagar 27 libras e 1 soldo.
29. O bastardo que pretenda receber ordens sacras e usufruir de benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 dinheiros.
30. O filho de pais incógnitos que pretenda entrar nas ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.
31. Os leigos com defeitos físicos ou disformes, que pretendam receber ordens sacras e usufruir de benefícios pagarão à chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.
32. Igual soma pagará o cego da vista direita, mas o cego da vista esquerda pagará ao Papa 10 libras e 7 soldos. Os vesgos pagarão 45 libras e 3 soldos.
33. Os eunucos que quiserem entrar nas ordens, pagarão a quantia de 310 libras e 15 soldos.
34. Quem por simonia quiser adquirir um ou mais benefícios deve dirigir-se aos tesoureiros do Papa que lhos venderão por um preço moderado.
35. Quem por ter quebrado um juramento quiser evitar qualquer perseguição e ver-se livre de qualquer marca de infâmia, pagará ao Papa 131 librase15 soldos. Pagará ainda por cada um dos seus fiadores a quantia de 3 libras.
No entanto, para a historiografia católica, o Papa Leão X, autor de um exemplo de corrupção tão grande como o que acabamos de ler, passa por ser o protagonista da «história do pontificado mais brilhante e talvez o mais perigoso da história da Igreja». (Fonte: Rodríguez, Pepe (1997). Mentiras fundamentais da Igreja católica. Terramar - Editores, Distribuidores e Livreiros - (1.ª edição portuguesa, Terramar, Outubro de 2001 - Anexo, pp. 345-348)
Aí estão eles - Sócrates e Passos Coelho. Como dois irmãos gémeos. Unidos e determinados. Juntos, não duvidemos, vão salvar a pátria. Propugnam medidas tendentes a dinamizar a economia?, a reduzir o leque salarial?, a melhorar as condições de vida dos mais desfavorecidos?, a combater as remunerações milionárias dos gestores?, a taxar as grandes fortunas?, a combater o enriquecimento ilícito e a corrupção?, a cobrar a taxa legal de IRC aos bancos - alguns dos quais levaram centenas de milhões aos contribuintes? Parece que não. Pouco ambiciosos que são, ficar-se-ão por duas simples medidas: poupar no subsídio de desemprego e nas prestações sociais. É que isto de alimentar subsidiodependentes e privilegiados que não querem trabalhar não é próprio de um Estado moderno. Viva a Santa Aliança!
A minha amiga IG, uma vez por outra, envia-me um email provocador que me deixa estarrecido. As mais das vezes, porém, são coisas deliciosas - como este texto da revista Exame, que não resisto a publicar. Obrigado, I.
A morte da executiva bem-sucedida
Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou. Deu um gemido e apagou-se. Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso Portal.
Ainda meio tonta, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas. Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando despreocupadas. Sem entender bem o que estava a acontecer, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes:
- Enfermeiro, eu preciso voltar com urgência para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque o meu seguro de saúde é Platina, e isto aqui está a parecer-me mais a urgência dum Hospital público. Onde é que nós estamos?
- No céu.
- No céu?...
- É.
- O céu, CÉU...?! Aquele com querubins, anjinhos e coisas assim?
- Exacto! Aqui vivemos todos em estado de graça permanente.
Apesar das óbvias evidências, ausência de poluição, toda a gente a sorrir, ninguém a usar telemóvel, a executiva bem-sucedida levou tempo a admitir que havia mesmo batido a bota.
Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável. Porque, ponderou, dali a uma semana iria receber o bónus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.
E foi aí que o interlocutor sugeriu:
- Talvez seja melhor a senhora conversar com Pedro, o coordenador.
- É?! E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?
- Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.
- Assim? (...)
- Quem me chama?
A executiva bem-sucedida quase desabava da nuvem. À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.
Mas, a executiva tinha feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu logo:
- Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e...
- Executiva... Que palavra estranha. De que século veio?
- Do XXI. O distinto vai dizer-me que não conhece o termo 'executiva'?
- Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.
Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização.
- Sabe, meu caro Pedro. Se me permite, gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para essa gente toda aí, só na palheta e andando a toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para dar um upgrade na produtividade sistémica.
- É mesmo?
- Pode acreditar, porque tenho PHD em reorganização. Por exemplo, não vejo ninguém usando identificação. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê?
- Ah, não sabemos.
- Percebeu? Sem controlo, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo isto aqui vai acabar em anarquia. Mas podemos resolver isso num instante implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance.
- Que interessante...
- É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização e um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver.
- !!!...???...!!!...???...!!!
- Aí, contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Accionista... Ele existe, certo?
- Sobre todas as coisas.
- Óptimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo, parece-me extremamente atractivo.
- Incrível!
- É óbvio que, para conseguir tudo isso, teremos de nomear um board de altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa assim de salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias da praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho a certeza de que vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar num Turnaround radical.
- Impressionante!
- Isso significa que podemos partir para a implementação?
- Não. Significa que a senhora terá um futuro brilhante... se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque acaba de descrever, exactamente, como funciona o Inferno...
Francisco Sarsfield Cabral publica no Público de hoje, 19, um artigo intitulado “A bomba-relógio do capitalismo”, onde, a propósito do regabofe de bónus e vencimentos milionários aos gestores de bancos, presidentes executivos de empresas, etc., se interroga sobre as consequências para a coesão social das desigualdades que o capitalismo está a engendrar. É verdade que, entre outras “insuficiências” de análise (em minha opinião), limita os “estragos” aos decénios mais recentes de desenvolvimento do capitalismo e particularmente aos factos que têm vindo a lume nos últimos tempos, mas não deixa de ser uma visão lúcida e, sobretudo, de inspiração ética, de um modelo político e social que tem as suas origens mais remotas no aparecimento da propriedade privada. O que me trouxe à memória uma leitura de há muitos anos de um dos nomes cimeiros da literatura francesa – Anatole France.
Em homenagem aos dois, transcrevo seguidamente três parágrafos do artigo de Sarsfield Cabral e um passo do romance A Ilha dos Pinguins de Anatole France.
A bomba-relógio do capitalismo
(…)
A subida vertiginosa dos ganhos dos gestores de topo é debatida há anos, sobretudo nos Estados Unidos. Peter Drucker, o grande mestre da gestão, considera razoável que um executivo de topo ganhasse 20 vezes o salário médio da sua empresa. Ora, em 2000 os executivos das cem maiores empresas britânicas ganharam 47 vezes o salário médio dos trabalhadores. Em 2008 ganharam 81 vezes. E nos Estados unidos, em 2008, ganharam 318 vezes o salário médio.
(…)
No caso dos gestores, a presente disparidade salarial retira legitimidade ao capitalismo. O que parece não preocupar os gestores milionários, convencidos de que, depois do colapso do comunismo, tudo lhes é permitido. Daí escândalos como o da Enron e as loucuras financeiras que levaram à crise (o banco Goldman Sachs é agora acusado de fraude). Ou a chocante falta de sensibilidade social de alguns banqueiros salvos da falência com o dinheiro dos contribuintes americanos e britânicos, e que não tiveram vergonha de vir depois embolsar bónus astronómicos.
Em Portugal os desequilíbrios de rendimentos são maiores do que na maioria dos outros países europeus, o que é razão adicional para nos preocuparmos com a autêntica bomba-relógio que as economias de mercado estão a fabricar. E há sobretudo uma razão ética para não aceitar estas desigualdades. Mas parece que a ética caiu em desuso em largas faixas das nossas sociedades.
Francisco Sarsfield Cabral
A Ilha dos Pinguins
Naquele momento, o santo Maël, juntando as mãos, suspirou profundamente:
“Não vedes, meu filho, exclamou, aquele furioso que, com os dentes, corta o nariz do adversário aterrorizado, e aquele outro que esmaga a cabeça de uma mulher debaixo de uma pedra enorme ?
-Vejo-os, respondeu Bulloch. Estão a criar o direito ; a fundar a propriedade ; a definir os princípios da civilização, as bases da sociedade e os fundamentos do Estado.
-Como pode isso ser ? perguntou o ancião Maël.
-Delimitando os campos. É a origem de toda a civilização. Os vossos Pinguins, ó mestre, cumprem a mais respeitável das funções. A sua obra será consagrada através dos séculos pelos jurisconsultos, protegida e confirmada pelos magistrados.”
Enquanto o monge Bulloch pronunciava estas palavras, um Pinguim grande, branco de pele e ruivo descia para o vale com um tronco de árvore ao ombro. Ao aproximar-se de um Pinguim pequeno tisnado do sol, que regava as suas alfaces, gritou-lhe:
“O teu campo é meu!”
E, uma vez pronunciada esta frase poderosa, deu com a moca na cabeça do Pinguinzinho, que caiu morto na terra cultivada por suas mãos.
Perante aquele espectáculo, o santo Maël estremeceu e derramou lágrimas abundantes.
A história que a comunicação social escreve por estes dias não é nova. É velha de séculos. Patrícios, imperadores, senhores feudais e suseranos, aristocratas e príncipes da Igreja – todos se esmeraram em fazer suas as riquezas da natureza e os bens produzidos por aqueles que, de seu, apenas tinham a força de trabalho. Ora, numa altura em que todos os adjectivos disponíveis na língua (injusto, injustificável, inaceitável, escandaloso, imoral, obsceno, etc.) foram mobilizados para qualificar o regabofe das remunerações dos gestores e administradores de empresas participadas pelo Estado (em relação às privadas, os comentadores oficiais usam do maior recato e estão sempre dispostos a justificar o regabofe com o sacrossanto direito de propriedade), numa altura em que, por seu turno, os gestores, administradores e respectivos cúmplices na pilhagem da riqueza de todos nós se aprimoram na justificação do injustificável, com a lengalenga do cumprimento e ultrapassagem dos objectivos e outras de igual jaez, talvez não seja despiciendo recordar a urgência da utopia e suscitar a reflexão, tão mal-amada dos arautos do liberalismo (com ou sem “neo”), sobre a transformação da consciência e o homem novo.
Claro que, para todos aqueles que, directa ou indirectamente, lucram com este estado de coisas, este discurso só poderá ser apodado de irrealista, se não mesmo de saudosista e, já agora, reaccionário (!…). A História tem-nos mostrado, contudo, que há limites para a indecência, e quando esses limites são ultrapassados lá entra ela em erupção, como o vulcão islandês, toldando o céu invariavelmente azul dos senhores do mundo e cobrindo-os a eles mesmos com uma grossa camada de cinzas abrasivas. História providencial? Não. Mas a ideologia, essa, sim, quando se apodera das massas, transformando-se numa força material.
Quando milhões de seres humanos nossos irmãos vegetam na mais abjecta miséria, como é possível ignorá-lo e levar para casa somas fabulosas que bastariam para fazer viver dignamente centenas de homens e mulheres, se não fossem desviadas para a compra de mansões e iates, para o jogo do casino e sua variante bolsista, para o esbanjamento?
Desabafo de índole moralista? Desabafo de quem sabe que as consciências (à escala das nações e da Terra) não se transformarão sem que as condições materiais o determinem. De quem sabe que os adjectivos estão gastos, para qualificar os desmandos dos poderosos, mas que o povo dispõe sempre de um substantivo que não se gasta, até porque usa com parcimónia a realidade que ele nomeia. A última vez, entre nós, foi há quase trinta e seis anos.
Pareceu-me ter ouvido, há pouco, no Jornal da 2, que o Governo decidiu dar tolerância de ponto a todos os funcionários públicos, no dia 13 de Maio, e ainda mais dois meios dias, creio que a 12 e 14, para que todos possam receber condignamente o Papa, aquando da sua próxima visita a Portugal. Tanta magnanimidade espanta, sobretudo se tivermos em conta as ladainhas permanentes sobre a falta de produtividade dos portugueses e a cantilena do desequilíbrio das contas públicas, conforme Carvalho da Silva já comentou.
Que seja este Governo a tomar tal iniciativa é que não espanta. É perfeitamente natural que um poder político serventuário do poder económico se prostre e roje aos pés do poder religioso – aliado de sempre do segundo na ordem de citação. Mas o que me deixou por assim dizer perplexo foi a notícia de que nesses mesmos dias serão distribuídos milhares de preservativos, como acontece no Brasil, por exemplo, por alturas do Carnaval. Põem-se-me algumas interrogações, verbo gratia:
1.ª, a tolerância de ponto visa propiciar a participação nas cerimónias de acolhimento ao Papa ou o coito desbragado de milhares de fiéis nesses dias dispensados de trabalhar?
2.ª, haverá alguma relação entre esta copiosa distribuição de preservativos e o escândalo sexual que assola a Igreja?
3.ª, se assim for, o Governo foi informado da orientação sexual do séquito papal?
4.ª, à semelhança do que acontece no sambódromo do Rio, será expectável um desfile de foliões em trajes menores – neste caso oriundos não de escolas de samba mas das ordens religiosas – no vasto adro do santuário de Fátima?
O acordo ortográfico tem, provavelmente, uma mais consistente motivação económico-política do que linguística, e podemos interrogar-nos, como o fazia Miguel Sousa Tavares (MST) ontem, em "Sinais de Fogo", quanto à sua utilidade, uma vez que se mantêm duplas grafias que contemplam as diferenças fonéticas existentes na língua, quer em termos nacionais, quer até individuais (há, em Portugal, duas pronúncias para a palavra "sector" - uns pronunciam o "c", outros não). O que estranho é que MST tenha consagrado a primeira peça do seu programa à questão do acordo e tenha tomado como exemplo a confusão resultante da supressão do "c" na palavra "facto", que passaria a ser homónima de "fato" (roupa), confusão essa inexistente no Brasil, onde se usa o nome “terno” para designar aquilo a que chamamos “fato”. Ora a palavra em questão faz parte da lista das que vão ter dupla grafia, e bastaria uma consulta à Wikipédia para esclarecer a questão.
Ainda por cá a procissão dos submarinos alemães vai no adro, já na Grécia outros submarinos, igualmente alemães, prometem dar que falar e continuar a alimentar a indignação dos gregos, a braços com um PEC ainda mais penalizador do que o nosso – se bem que, lá como cá, apenas para os mesmos de sempre.
Bem sabemos que os dirigentes políticos das nossas bem-aventuradas sociedades democráticas são hábeis na manipulação do discurso e mestres na arte de vender a sua imagem – sua deles, a título individual, ou sua delas, sociedades democráticas, quando o enxovalho da imagem individual é de tal ordem que já não há Tide ou Omo que lhe valha. Por isso, alguns partidos lá vão mudando de mosca, que é como quem diz de líder, maneira de dizer que o apeado é responsável por tudo o que correu mal – daí em diante, com o recém-eleito, tudo vai ser diferente e melhor.
E é por isso que, na Grécia de George Papandreou, como no Portugal de Sócrates, não faltarão argumentos consistentíssimos para justificar a compra dos submarinos. Cá, dois. Na Grécia – segundo dizem, em pior situação do que nós –, três. Com esta particularidade: um dos submarinos, o Papanikolis, fora recusado em 2006 pela Armada grega, por não corresponder ao prometido, e o contencioso entre Berlim e Atenas a este respeito arrastava-se há quatro anos.
Falta apenas acrescentar que o feliz desfecho da contenda e o fecho do negócio dos três submarinos ocorreu “nas vésperas da cimeira que definiu o acordo franco-alemão de apoio à Grécia”. Ah! E, já agora, que o parceiro francês também vai vender à Grécia – sem dúvida nenhuma para a ajudar a ultrapassar o défice orçamental e a dívida pública – seis fragatas, seis.
Até parece que é a Grécia que está a ajudar o consórcio franco-alemão. Mas não faltarão líderes políticos, comentadores e fazedores de opinião em geral para nos mostrarem que laboramos num terrível erro. Submarinos e fragatas, para além de aviões e carros de combate, são com certeza os mais valiosos instrumentos da felicidade dos povos.