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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A manifestação

Não sei se éramos 130 mil, 150 mil ou mais de 300 mil. Sei que éramos, se não centenas, no mínimo, muitas dezenas de milhar. E que, por cada descontente que sai à rua, há dez ou vinte que o não fazem. Um porque está doente, outro porque tem de cuidar dos filhos, outro ainda porque não tem transporte, ou porque não pode, ou porque não gosta, ou porque não o deixam, ou porque.

 

Nestas circunstâncias, era de esperar que a imprensa de referência se fizesse eco do clamor popular, sobretudo numa altura em que as últimas medidas ditas de austeridade e de combate à crise impõem enormes sacrifícios aos mesmos de sempre.

 

Ora o Público de ontem trazia, com efeito, uma enorme fotografia na primeira página. Uma fotografia que ocupa mais de metade da primeira página – a metade esquerda. Depois, ao lado, outra fotografia, bem mais pequena. Esta última mostra frondosas copas de árvores que encimam um grupo de algumas dezenas de pessoas, empunhando bandeirolas e cartazes; a fotografia grande representa a metade direita de um rosto sorridente e tem inscritas estas palavras: “Entrevista exclusiva. Cristiano Ronaldo promete marcar golos e quer chegar às meias-finais. Págs. 2 a 4”

 

Nas páginas interiores, o Público traz mais algumas fotografias da manifestação de sábado. Os manifestantes que nelas se vislumbram, todos somados, pouco ultrapassarão a meia centena, parecendo ter sido preocupação do fotógrafo captar, para além das copas luxuriantes da Avenida da Liberdade, o céu azul e branco do Marquês de Pombal e alguns prédios mais altos.

 

Estando os critérios editoriais do Público acima de qualquer suspeita, ficar-me-ia mal ver neste tratamento jornalístico algo mais do que a preocupação de não mostrar pessoas vestidas sem grande cuidado, bastas vezes despenteadas e algumas esbaforidas, que o dia esteve quente. Admito também que o jornal de referência – movido pela patriótica intenção de ocultar perante as agências de rating que, afinal, em vez de trabalharmos para debelar a crise, andamos a desfilar pelas avenidas de Lisboa – terá preferido mostrar apenas pequenos grupos, de modo nenhum representativos de grandes massas de trabalhadores, que, esses, não estão para desbaratar o seu empenhado esforço de recuperação nacional em acções estéreis de protesto. A corroborar esta minha convicção aí está, de resto, o texto da reportagem, que se espraia em ponderações e cômputos de observadores e especialistas independentes em contagens, para reconduzir o exagero do número avançado por Carvalho da Silva (mais de 300 mil) a cifras muito mais decentes, quais seriam as de 110, 130, talvez – máximo dos máximos – 150 mil.

 

Como já duas ou três vezes me aconteceu, apetecia-me enviar este texto ao Público, como sinal de reconhecimento pela seriedade do seu trabalho informativo. Infelizmente, sem que eu consiga compreender porquê, dessas duas ou três vezes, os meus textos não tiveram o acolhimento do senhor director e da actual senhora directora. Admito que por excesso de trabalho. E, como não os quero sobrecarregar ainda mais, desta vez nem sequer lhes envio este texto, para além do mais algo extenso e com referências disparatadas a copas de árvores, prédios altos e sacrifícios impostos aos mesmos de sempre.

 

Não me dispenso, contudo, de pespegar aqui umas quantas fotografias que eu próprio tirei com o telemóvel, que – vá-se lá saber porquê! – conseguiu captar bastante mais gente do que a câmara fotográfica profissional do repórter do meu jornal de referência.

 

Disse.

 

Carta aberta ao Primeiro-Ministro

 

Exmo. Senhor Primeiro-Ministro,

 

Entendeu V.ª Ex.ª, e provavelmente entendeu bem, conceder tolerância de ponto aos funcionários públicos no passado dia 13 e mais dois meios-dias, exclusivamente para os de Lisboa e Porto, por ocasião da visita do papa a Portugal. Fê-lo, presumo, tendo em conta que Portugal é um país maioritariamente católico e porque se impunha conceder a Bento XVI uma recepção à altura da importância histórica da Igreja entre nós.

 

Algumas vozes se fizeram ouvir na ocasião, lembrando a V.ª Ex.ª que somos um Estado laico e que a crise e as dificuldades económicas do país têm sido repetidamente evocadas para convocar os portugueses a trabalharem sempre mais e melhor. V.ª Ex.ª, porém, não lhes deu ouvidos e reiterou a estrita necessidade de receber condignamente o chefe da Igreja Católica, que acumula tal qualidade com as de chefe de Estado e de intelectual insigne.

 

Se eu tivesse dúvidas quanto à solidez das premissas em que V.ª Ex.ª escorou a sua decisão, nomeadamente no particular da devoção dos portugueses, tê-las-ia perdido ao presenciar o espectáculo mediático do acolhimento ao Sumo Pontífice, quer em Lisboa, quer em Fátima, quer no Porto. Vivemos, com efeito, num país de católicos fervorosos, de tal modo incensadores não “de mil deidades”, como o poeta, mas do papa, que com mais propriedade se deveria talvez falar de idolatria – o que, aliás, convoca mais uma vez o tópico erasmista das manifestações exteriores de religiosidade, por oposição à religião vivida no foro íntimo de cada um. Mas isto são contas de outro rosário, e quem sou eu – ateu, por acréscimo – para me pôr a dissertar sobre a fé e a maneira como cada qual a vive?

 

Não entrarei por esse caminho. O meu intuito é outro, e bem diverso. O ponto é este: a vida está difícil para o povo, em geral, e, em particular, para muitos daqueles que, não tendo dotes excepcionais, não lograram ainda, e provavelmente jamais lograrão, alcandorar-se a lugares de administração de grandes empresas públicas, privadas e mistas. Ora as medidas tomadas recentemente pelo governo a que V.ª Ex.ª preside, patriótica e elegantemente coadjuvado pelo seu vice-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, vão torná-la ainda mais difícil.  Não querendo – até por uma questão de respeito para com V.ª Ex.ª e restantes membros do governo – discutir a bondade de medidas como o aumento do IVA e do IRS, o certo é que tomei conhecimento de que, respondendo ao apelo da CGTP, milhares de trabalhadores vão manifestar o seu descontentamento no próximo dia 29 e é expectável que façam greve mais tarde.

 

V.ª Ex.ª é provavelmente agnóstico – condição que o aproxima de mim, ateu confesso, mas o afasta da esmagadora maioria dos nossos concidadãos. O agnosticismo, porém, não o impediu de receber com todo o respeito o papa. Também é de supor que, em matéria sindical, os seus sentimentos se pautem mais pelo cepticismo do que por uma adesão convicta – excepto, claro, no tocante às virtudes do sindicalismo livre e independente da UGT. Não obstante, é um democrata. Nessa condição, há-de admitir que, para além de maioritariamente católico, Portugal é um país maioritariamente de trabalhadores. Poderíamos até dizer: maioritariamente de trabalhadores católicos. Mas que se manifestam, por vezes. E estas manifestações gigantescas (há não muito tempo, eram cerca de duzentos mil), se não radicam na fé católica ou numa qualquer busca do transcendente, não deixam de ter um carácter religioso – no sentido etimológico da ligação. Não se trata da ligação (vertical) ao divino, mas, de facto, elas nascem do sentimento da ligação (horizontal) com os outros – todos aqueles que partilham dificuldades crónicas no trânsito deste mundo – e potenciam esse sentimento. Ora o sentimento da comunhão com o outro não está, garantidamente, mais presente no coração e na mente do crente que se prostra à passagem do papa do que no coração e mente do manifestante que ergue o punho e entoa “a luta continua” ao passar no Largo do Rato.

 

Aqui chegados, V.ª Ex.ª já terá decerto percebido o intuito da minha démarche. É isso mesmo: decorrendo a manifestação do próximo dia 29 num sábado, prescindimos da tolerância de ponto. Mas, da próxima vez que uma manifestação coincida com um dia “útil”, Senhor Primeiro-Ministro, seja tão judicioso como o foi aquando da visita papal e conceda tolerância de ponto aos portugueses.

 

A bem da Nação.

 

Imagem: 

https://farm4.static.flickr.com/3563/3364960037_e1a8b6ce3a.jpg

Pesadelo algébrico

 

Esta noite tive um pesadelo. Sonhei que ia dar uma aula sobre inequações. Simplesmente (e desgraçadamente) não sabia sequer (ignorância que se prolongou até há uns minutos) o que é uma inequação. A angústia era grande, sufocante. Como iria desenvencilhar-me perante uma turma expectante e atenta ao menor sinal de insegurança do professor, quando chegasse a altura de começar a exposição? Como iriam reagir os colegas a uma tão ostensiva manifestação de incompetência científica? Pior ainda: que diriam as pessoas, em geral, da escola e da classe docente, já tão mal vistas, sobretudo desde que Sócrates e Lurdes Rodrigues tanto se esforçaram por dar da primeira a ideia de um feudo dos privilegiados que integram a segunda?

 

Felizmente, para além da parte expositiva, a aula continha um segundo momento mais prático – tratava-se de pôr os alunos a modificar umas caixas bizarras, algo semelhante a assentos de cadeiras de palhinha. Se o objectivo pedagógico das inequações é inequívoco, já o trabalho de marcenaria numa aula de álgebra é mistério insondável. Porém, na circunstância onírica, as caixas entravam em cena como verdadeiro deus ex machina – enquanto eles se desincumbissem da tarefa, folgavam as minhas costas, maneira de dizer a minha angústia.

 

Devo ter acordado pouco depois, porque a angústia cessou. Pena foi ter ficado sem saber como tudo acabou – as caixas, a exposição sobre inequações e o mais que certo fiasco pedagógico. Outra coisa que me parece provável é que, sendo a linguagem dos sonhos tantas vezes metafórica, mais do que pesadelo, tive uma alegoria – a alegoria da função docente nos tempos que correm.

O senhor do ódio

Carta enviada à Directora do Público para publicação

 

 

O vosso jornal publica hoje, 3 de Maio, a pp. 30, uma carta de Rui Baptista, leitor de Coimbra, com o título “O senhor da guerra”. Trata-se de uma catilinária (género que creio ser do agrado do autor da carta) contra o dirigente da FENPROF Mário Nogueira – alvo dilecto de quem, neste país, não digere facilmente a combatividade, a coerência e a coragem de homens e mulheres que se entregam de alma e coração a um sindicalismo que não verga a espinha perante as arremetidas do poder.

 

Curiosamente, a página ímpar contígua (e ainda se diz que não há coincidências!...) contém a “resposta” do visado – Mário Nogueira (como se adivinhasse) intitula o seu artigo publicado nesta mesma edição do Público “Esta FENPROF incomoda que se farta!”. Admito ser legítimo, invertendo os termos da equação, pensar que a carta de Rui Baptista é a “resposta” ao artigo de Mário Nogueira – a redacção do Público, melhor do que ninguém, o saberá. Porém, a confirmar-se esta hipótese, tratar-se-ia de resposta fraquita.

 

Está, pois, no essencial, desmontada e respondida a carta de Rui Baptista. Esta FENPROF incomoda, ponto.

 

Não tenho procuração do meu colega e amigo Mário Nogueira para o defender e há, seguramente, outros muito mais habilitados do que eu para rebater as insinuações e acusações de Rui Baptista. Contudo, eu mesmo fui dirigente de um sindicato que integra a FENPROF. Nessa qualidade, sinto-me atingido pelas atoardas de Rui Baptista, pelo que gostaria de lhe dizer duas ou três palavras.

 

O antagonista de Mário Nogueira e da FENPROF confessa “dificuldade em compreender como sindicalistas ao serviço de partidos políticos se arrogam o direito de discutir assuntos de avaliação sem a vivência diária dos problemas dos professores”. É velha a insinuação da “correia de transmissão”, mas o senhor Rui Baptista não sente dificuldade em compreender como cem mil professores respondem, repetidamente, à chamada destes sindicalistas espúrios? Se calhar, estão todos eles “ao serviço de partidos políticos”. E, quanto a discutir “assuntos de avaliação sem a vivência diária dos problemas dos professores”, algumas perguntas: terá o senhor alguma ideia do que são as sedes e as delegações dos sindicatos de professores e da quantidade de professores que por lá passam todos os dias? Terá uma noção aproximada do número de deslocações que os sindicalistas fazem às escolas? Saberá, por acaso, que a esmagadora maioria dos dirigentes da FENPROF e dos seus sindicatos membros está nas escolas, a leccionar, e que só uma ínfima minoria tem dispensa de serviço, aliás indispensável para o desempenho cabal de algumas responsabilidades? Ou preferiria o senhor Rui Baptista que Mário Nogueira deixasse de comparecer na sua escola de cada vez que tivesse uma reunião no Ministério da Educação? E a senhora ministra da Educação – esta e a sua predecessora – estará desligada de qualquer partido político? E, arrogando-se (ou ela não “se arroga”?) o direito de discutir assuntos de avaliação”, devemos presumir que preenche a condição da “vivência diária dos problemas dos professores”? Em que escola leccionava Lurdes Rodrigues? Isabel Alçada lecciona?

 

Visivelmente, de Ortega y Gasset, Rui Baptista reteve o ”ódio aos melhores”, que a sua carta ressuma. Mas não guardou lembrança do respeito pela opinião alheia.

 

 

O senhor da guerra

 

A crónica de Helena Matos, publicada neste jornal (22/4), intitulada "O admirável mundo dos sindicatos", refere as ameaças bélicas de Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof, contra a actual ministra da Educação, Isabel Alçada: "Se o Governo quer guerra, é guerra que vai ter (Abril 2010)". Aliás, declaração de guerra já feita em termos idênticos à sua antecessora, Maria de Lurdes Rodrigues, em 2008.

 

Saiu-se bem Mário Nogueira, com o apoio de retaguarda das hostes da chamada plataforma sindical, na campanha contra Maria de Lurdes Rodrigues, que foi empurrada, em boa hora, do último piso da 5 de Outubro para fora com a bandeira branca da rendição. E quando tudo parecia correr numa relação perfeita entre ele e a novel ministra da Educação, Isabel Alçada, por ela ter um passado de dirigente da Fenprof, de um momento para o outro foram ocupadas trincheiras diferentes por a actual titular da Educação não ceder terreno às ameaças do secretário-geral da Fenprof, que tem vindo a perder crédito por dar uma no cravo e outra na ferradura, com o evidente desagrado de muitos docentes.

 

As desavenças entre ambos começaram quando Isabel Alçada afirmou "estar empenhada na criação de um sistema de avaliação de professores que recompense o esforço e a qualidade" (Diário Económico, 26/11/2009). Aliás, tenho dificuldade em compreender como sindicalistas ao serviço de partidos políticos se arrogam ao direito de discutir assuntos de avaliação sem a vivência diária dos problemas dos professores (...).

 

O principal pomo de discórdia parece ser a avaliação dos professores, que, quando discutida à mesa de várias negociações, ficou prejudicada pela ameaça de Mário Nogueira de se retirar de imediato se não fossem satisfeitas as suas condições prévias de um diálogo entre si e os seus botões. Bem mais pacífico foi, porventura, o sistema de avaliação dos dinossauros do dirigismo sindical que chegaram ao topo da carreira docente afastados das escolas onde seria presuntivo estarem a dar aulas se não se tivessem tornado profissionais do sindicalismo (...) Entretanto, professores bem mais credenciados academicamente e com experiência de vida docente invejável marcam passo por um acesso congelado a escalões mais altos da carreira docente porque aprisionados em teias de uma mediocridade que muito tem prejudicado um ensino em que só através de uma maior justiça do actual sistema de avaliação dos professores, separando o trigo do joio, se poderá pôr cobro à situação de Portugal se ter tornado num país de oportunistas, parafraseando Ortega y Gasset, com "ódio aos melhores".

Rui Baptista, Coimbra, in Público, 3-5-2010