“Há em Portugal quatro partidos: o Partido Histórico, o Regenerador, o Reformista e o Constituinte. Há ainda outros, mas anónimos, conhecidos apenas de algumas famílias. […]” Eça de Queiroz, Uma Campanha Alegre, II, Maio de 1871
Há em Portugal dois partidos maioritários: o Partido Socialista e o Partido Social-Democrata. Os dois partidos maioritários vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo ardentemente um contra o outro de dentro dos seus debates quinzenais no parlamento. Tem-se tentado avistar algo que os una. Impossível! Eles só possuem de comum a elegância dos seus líderes e a cúpula do salão nobre que a todos cobre. Quais são as irritadas divergências de princípios que os separam? Vejamos:
O Partido Socialista é democrático, liberal, intimamente liberal, e lembra no seu programa a necessidade da economia de mercado.
O Partido Social-Democrata é democrático, imensamente liberal e doidinho pela economia de mercado.
Ambos têm o mesmo afecto à iniciativa privada;
Ambos tecem louvores à integração europeia;
Ambos almejam o aumento da produtividade e citam o PEC;
Ambos propugnam a diminuição do peso do Estado na economia;
Quais são então as desinteligências? – profundas! Assim, por exemplo, a ideia do pagamento das SCUTs entendem-na de diversos modos.
O Partido Socialista diz gravemente que é um acto de justiça cobrar portagens nas SCUTs e que o chip é um instrumento patriótico de combate à crise. O Partido Social-Democrata nega, nega numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que é preciso é – um dispositivo electrónico de matrícula.
A conflagração é manifesta!
Na acção governamental as dissensões são perpétuas. Assim o Partido Socialista propõe a concretização da rede ferroviária de alta velocidade prevista em Resolução de Conselho de Ministros do governo social-democrata, cinco anos antes. Porque é necessário assegurar a ligação ao resto da Europa, não cair no isolamento, seguir ao ritmo dos nossos parceiros da União Europeia… Propõe a concretização da rede de alta velocidade.
Mas então o Partido Social-Democrata, agora na oposição, brame de desespero, reúne o seu conclave. As faces luzem de suor, os cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho ou o decote na atitude de quem vê desmoronar-se a pátria!
- Como assim! – exclamam todos. – Uma rede de alta velocidade!? Com o país afundado na crise!?
- Vossas excelências diziam-no afundado na tanga quando o propuseram há seis anos!
- …
E então contra a rede de alta velocidade jura-se que a tanga e a crise são entidades distintas e que qualquer semelhança entre as duas só pode ser tida por coincidência fortuita. Logo se garatujam artigos, medram estudos, tramam-se votações!
Não, não! Com divergências tão profundas é impossível vislumbrar a mais ínfima semelhança entre estes dois partidos.
O presente texto, suporte de uma intervenção em colóquio, constituiu o meu contributo para a homenagem que, em 10 de Dezembro de 1998, dia da entrega do prémio Nobel a Saramago, prestámos, na Escola Secundária João de Deus, ao escritor hoje falecido.
Quase doze anos depois, repito o agradecimento final.
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É conhecida a asserção dos marxistas segundo a qual, antes do marxismo, a filosofia procurava explicar o mundo, o marxismo, mais do que isso, empenha-se em transformá-lo. Da ficção de Saramago, poder-se-ia fazer idêntica afirmação. Com efeito, o realismo e o neo-rea1ismo explicavam o real (se bem que com uma diferença fundamental de perspectiva - o neo-realismo "vê a luz ao fundo do túnel" (dizia-o Alexandre Pinheiro Torres, em ensaio antigo), ou seja, não se limita a mostrar o pus ou a pústu1a, como diria o Alencar, em Os Maias, mas insinua o remédio que há-de curar os males do mundo. Ao introduzir na sua (e)fabulação o condimento da magia (aproximando-a, pois, daquilo a que se convencionou chamar realismo mágico), Saramago reinventa o mundo, e esta reinvenção toma foros de maiêutica - pelo acto da leitura, mediatizado pelo narrador, cada um de nós, leitor, dá à luz um mundo novo, admirável sem ironia (nisso se distinguindo do de Huxley), em que é possível uma passarola voar apenas com o alento, a vontade de Blimunda, de Baltasar, dos homens. A esta transformação do mundo, em sentido literal e na sua versão literária, se referem Javier Alfaya (1) e Maria Alzira Seixo (2), quando afirmam, respectivamente, que Saramago "ultrapassa a retórica oca dos ideólogos da pós-modernidade e continua a apostar numa literatura que ajude a mudar o mundo" e que ele "reinventa de facto o romance mas o seu romance, praticando sobre o passado, sobre o contemporâneo ou sobre projecções do futuro, de algum modo arrisca a própria reinvenção do mundo”.
Feita esta constatação de fundo, que vai ao âmago do significado da obra de Saramago, procuremos indagar dois aspectos mais técnicos, que intervêm no acto demiúrgico, a saber: que procedimentos usa o escritor / criador para actualizar a sua mensagem e de que modo esses procedimentos exteriores interferem na produção / recepção do discurso e na construção / apreensão da diegese? Move-nos, sobretudo, o objectivo de desmistificar a suposta inevitabilidade de cânones tradicionais, cujo poder absoluto é abalado por Saramago, mas não só.
Como Manuel Gusmão observa em artigo recente (3), "a obra de José Saramago é marcada por dois gestos verbais (...). Por um lado, trata-se de uma forma de frase e designadamente de uma pontuação que aparece como característica, e, por outro, daquilo que se pode descrever como uma apropriação activa da herança literária, cruzada com a invençao e a imitação de formas da coloquialidade mais comum.
Atendo-nos apenas ao primeiro destes "gestos", convirá observar que Saramago não é caso único, nem sequer na literatura portuguesa. Lídia Jorge, desde o seu primeiro romance - O Dia dos Prodígios, escrito em 1978 e publicado em 1980 - ensaia uma forma de frase e uma pontuação que lembram as que Saramago usará também a partir de 1980, com a publicação de Levantado do Chão, mas que não adoptara ainda três anos antes, aquando da publicação do Manual de Pintura e Caligrafia, se bem que se possa aí já descortinar a próxima abolição da utensilagem do discurso directo. Aliás, a autora-¬ professora não se fica por aqui; leva a sua ousadia inovadora até à disposição dos discursos em colunas gráficas paralelas, a sugerirem simultaneidade na elocução. A sugerirem, apenas, porque insusceptíveis de lograr a polifonia da música ou da simples oralidade, atento o particular modo de apreensão sequencial da linguagem escrita.
Mas já dez anos antes, em 1968, José Cardoso Pires dá, em O Delfim, a justa medida das limitações e do cansaço a que a convencional representação do discurso directo conduzira, acentuando até à exaustão a sua inelegância, através da repetida nomeação dos interlocutores.
E, já que se fala de parceiros de Saramago na inovação pontuadora, por que não citar um outro romancista que, à semelhança de Cardoso Pires, foi repetidamente dado como provável prémio Nobel - António Lobo Antunes? Curiosamente, em O Manual dos Inquisidores, a subversão do código da pontuação fica aquém das "performances" de Lídia como de Saramago, como se o autor receasse diminuir a legibilidade do discurso.
Mas se recuarmos até ao século XIX, verificamos que já Eça é um sério precursor de Saramago, com o uso intensivo do discurso indirecto livre. Esta modalidade de enunciação é, com toda a evidência, uma notável tentativa (conseguida) de incorporar as falas das personagens no discurso do narrador, conferindo-lhe fluência, naturalidade, e criando ambiguidades cada vez mais caras aos leitores modernos, que fazem da leitura um acto simultaneamente receptor e produtor de sentidos.
Interrompamos esta incursão pelos pares de Saramago e interroguemo-nos sobre eventuais vantagens do seu particular modo de pontuar. Para tal, nada melhor do que experimentar. Peguemos num excerto de qualquer romance posterior ao Manual de Pintura e Caligrafia e transformemo-lo num texto pontuado segundo as regras da gramática. A primeira observação a fazer é óbvia e imediata: o texto reescrito ocupa mais espaço do que o original (com algum humor, poder-se-ia falar de escrita ecológica, em Saramago). De resto, o parágrafo de que este excerto faz parte ocupa mais de três páginas e são frequentíssimos os casos de parágrafos que se espraiam por 4, 5 ou mais páginas. O primeiro capítulo de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, por exemplo, é todo ele um só parágrafo de 7 páginas. Quanto à segunda observação, a saber, como interfere este particular modo de pontuar na percepção / produção do discurso e na apreensão / construção da diegese, a demonstração é notavelmente mais delicada, exigindo a experimentação. O que aqui se postula e submete à referida experimentação são as seguintes asserções:
1°, a pontuação original confere à apreensão do discurso pelo leitor uma fluidez que a pontuação convencional (eminentemente didáctica) diminui, compartimentando-o;
2°, a apreensão da situação (história, diegese) é feita em globo, de forma mais ou menos sincrética, à maneira das linguagens plásticas ou musicais (efeito criteriosamente dito de polifonia);
3°, a produção do discurso e a concomitante construção da diegese são facilitadas, estimuladas, pela liberdade de movimentos do escritor, que se liberta da canga da representação gráfica do discurso directo, estorvo do fluir natural da corrente de consciência (4). E já que se fala de estorvos da expressão, impostos habitualmente pela gramática normativa, apetece referir o que se passa em francês, com o passé composé - tempo usado na linguagem coloquial, mas que, aí como na escrita mais elaborada, se desincumbe cabalmente de todas as "tarefas" que lhe são cometidas - e o passé simple. O estatuto de privilégio de que goza o passé simple, de uso limitado à linguagem literária, nomeadamente no discurso histórico, leva alguns a cognominá-lo de tempo fascista. O seu poder autoritário e espartilhante tem algo de semelhante ao da pontuação tradicional do discurso directo. Deste modo, justificar-se-ia dizer que os "dois pontos, parágrafo, travessão" são uma pontuação fascista...
Seria temerário, da nossa parte, tentar provar que este procedimento influiu decisivamente na criação dos universos romanescos de Saramago, e contudo apetece afirmar que o Memorial, o Evangelho, o Ensaio seriam outros romances, diferentes, se Saramago os tivesse pontuado convencionalmente, tanto é verdade que forma e conteúdo se implicam mutuamente e se fundem numa unidade superior, portadora de sentido.
A dada altura do Manual de Pintura e Caligrafia (5), Saramago transcreve urna página do Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, esclarecendo de seguida: "Outras vezes tenho copiado textos desde que comecei a escrever, e por diferentes razões, para apoiar um dito meu, para opor, ou porque não seria capaz de dizer melhor. Agora o fiz para adestrar a mão, corno se estivesse a copiar um quadro. Transcrevendo, copiando, aprendo a contar uma vida, de mais na primeira pessoa, e tento compreender, desta maneira, a arte de romper o véu que são as palavras e de dispor as luzes que as palavras são." Sugiro que se experimente copiar e imitar Saramago. É provável que tal treino nos conduza rapidamente ao fascínio de urna escrita substantiva e sem peias, surpreendentemente produtiva.
(1) El Mundo, 24/5/93, citado em José Saramago. Prémio Nobel de Literatura 1998, texto do Ministério da Cultura / Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, distribuído pela Editorial Caminho.
(2) In Baptista-Bastos, “José Saramago: Aproximação a um retrato”, idem
(3) «Linguagem e História, segundo José Saramago», in Vida Mundial, n.º 10, NOV.98
(4) Ambiguidades, se as houver, o narrador ultrapassá-las-á airosamente, como o faz, por motivo algo diverso, neste passo: «O condutor cegou quando o presidente ia a entrar no edifício, pela porta principal, como gostava, ainda deu um grito, estamos a falar do condutor, mas ele, estamos a falar do presidente, já não o ouviu.» Ensaio, p.252