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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Salvemos a pátria - II

 

O país soltou um suspiro de alívio, quando o Dr. Catroga exibiu o seu telemóvel perante os jornalistas para lhes mostrar a fotografia histórica da assinatura do acordo. Em sua casa. Sim, é que o ministro das Finanças trocou o Parlamento pela casa do antigo ministro do Dr. Cavaco. Parece que é mais aconchegada. Já combinaram que, nas rondas negociais dos PEC 4 e 5, se reunirão, respectivamente, na garagem do Dr. Pinto Balsemão (onde está a bateria) e na cave do Dr. Maldonado Gonelha (guitarra acústica).

 

O Dr. Catroga tartamudeou que era uma pena haver só aquela fotografia tirada com um telemóvel, mas enfim, que era histórica e ia directamente para um álbum qualquer que tem lá em casa.

 

Parece também que o Dr. dos Santos terá dito ou mandado dizer ao Dr. Catroga que não podia ficar insensível perante o grito lancinante do Dr. Cavaco, cujo – seguramente lembrado dos esforços insanos dos banqueiros Ricardo Salgado, Fernando Ulrich, etc., e mais lembrado ainda de ser o arrimo sem o qual a pátria estaria seguramente a atravessar uma crise gravíssima – não se conformava com a hipótese de não haver acordo, e vai daí convocou um conselho de Estado para ouvir toda a gente dizer: “Queremos que haja acordo já! E quem não salta é contra o acordo!”

 

Com franqueza! Não há pachorra!

 

Até há bem pouco tempo, tínhamos políticos que mentiam com todos os dentes, mas que o faziam com o ar mais sério deste mundo. Por assim dizer, mentiam com dignidade. Por vezes, faziam solenes comunicações televisivas ao país para dizer: “Estão a ver? Tanto me caluniaram e o processo foi arquivado!”. Ou então: “Eu não sabia, se bem que soubesse, mas não sabia oficialmente, logo não sabia, ainda que por outro lado tivesse conhecimento informal, o que é notoriamente distinto do conhecimento formal e institucional”. Todos sabíamos das manigâncias graças às quais o processo fora arquivado e percebíamos que o conhecimento tem vários níveis de concretização, mas – prontos!, como diz o outro – eles falavam convictamente, sem se rir nem corar, e isso era garantia de que conservavam um mínimo de decoro e de aparência de respeito por quem os ouvia. Porquê termos evoluído agora para este despropósito que consiste em misturar a gravidade dos assuntos de Estado com a banalidade do desabafo feito em família?

 

 Os imperadores romanos calavam o povo esfomeado e descontente com pão e circo. Aos nossos políticos do arco do poder, basta-lhes, pelos vistos, a segunda parte da receita, seguros que estão da sua total impunidade. Mas a farsa em que a vida política doméstica (e demais) está a cair sugere, cada vez mais, que a mudança de repertório e de actores não pode estar muito longe.

 

Imagem: https://farm4.static.flickr.com/1211/901117280_dc289fda79_t.jpg

Salvemos a pátria!

 

Como é do conhecimento geral, o país está mergulhado numa crise gravíssima e os responsáveis políticos, quer governamentais quer do maior partido da oposição, não poupam esforços para chegar a um acordo responsável e patriótico que nos permita ultrapassar este angustioso passo da nossa vida colectiva. Lamentável e profundamente entristecedor para qualquer português que se preze é o facto de nem toda a oposição seguir este exemplo de dignidade e de abnegação perante os superiores interesses da nação, dando mostras de compreensão das dificuldades por que o país passa nem dê um contributo válido para a sua superação, o que passaria necessariamente por ter de adoptar uma atitude construtiva em relação às inevitáveis medidas de austeridade que estão a ser implementadas.

 

Duma publicação de que sou leitor habitual, respiguei alguns números que dão uma ideia aproximada da dimensão da crise a que me venho referindo. Passo a referi-los:

 

  • No primeiro semestre de 2010, as 23 maiores empresas portuguesas obtiveram 2.913.028.265 € de lucros;
  • O BES, o BCP, o BPI e o Totta, cujos administradores, numa atitude que só os honra e é bem demonstrativa do seu patriotismo, foram recentemente aconselhar Governo e PSD  a não comprometerem a estabilidade política, tiveram 893.930.000 de lucros no mesmo lapso de tempo;
  • A EDP, nesses mesmos seis meses, auferiu 639.400.000 € e anunciou que vai aumentar em 3,8% as nossas próximas facturas de electricidade, sem o que a viabilidade da empresa ficará em risco;
  • A Galp, cuja periclitante situação financeira é bem conhecida, viu os seus lucros aumentarem apenas 89%;
  • Por cada dia que passa, o capital arrecada 16.000.000€ de lucro;
  • A cada 30 segundos, os lucros dos grandes grupos e empresas nacionais totalizam mais do que um ano inteiro de Salário Mínimo Nacional;
  • O aumento do SMN para 500€ em 2011 - acordado na Concertação Social entre todos os parceiros sociais - poderá não se concretizar, pois, representando um aumento de 0,80€ por dia, constituiria um enorme factor de risco para o equilíbrio das contas públicas.

Perante o negrume deste cenário, não é necessário ser particularmente astuto para se compreender que as medidas já implementadas e as que se anunciam em vários Pactos de Estabilidade e Crescimento, bem como no Orçamento de Estado - objecto de aturadas negociações entre Governo e PSD, inclusive ao fim-de-semana - são inevitáveis, ainda que sejam também de cortar o coração do ministro da Finanças e de outros portugueses sensíveis.

 

Nestas circunstâncias, não posso deixar de deplorar que ainda haja partidos capazes de produzirem afirmações deste calibre: "Na sequência de sucessivos pacotes de medidas restritivas e anti-sociais, o último dos quais anunciado a 29 de Setembro, o Governo apresenta uma proposta de Orçamento de Estado para 2011 que confirma a natureza de classe da política que PS e PSD têm em curso, ao serviço dos grandes grupos económicos e do capital financeiro, com a cumplicidade do CDS-PP e o patrocínio do Presidente da República." (Comunicado do Comité Central do PCP, 17/10/2010)

 

Com declarações destas, mais não faz o PCP do que reproduzir a estafada cassette marxista a que nos habituou, mas sem lograr os seus intentos. É que, felizmente, o povo português faz-lhe orelhas moucas. Se o escutasse - ai de nós! -, as agências de rating não nos dariam tréguas, os mercados financeiros esmagar-nos-iam com elevadíssimas taxas de juro, os nossos aliados germânicos brandiriam na nossa direcção o fantasma do afastamento da zona euro, em suma, o país mergulharia numa crise gravíssima. Livra! Do que nós nos livrámos!

 

Imagem: https://farm4.static.flickr.com/147/347973893_fba5b56f39_t.jpg

LIVRO, de José Luís Peixoto

“O enredo é frouxo, invertebrado e, nos momentos esparsos em que consegue encaixar-se com interesse relativo, narra experiências banais, histórias que não se distanciam daquelas que poderiam pertencer ao vizinho ou, quando muito, ao vizinho do vizinho.”

 

O parágrafo anterior pertence à 2.ª parte do romance Livro, de José Luís Peixoto (página 224, Quetzal, Lisboa, 2010), onde, durante algumas páginas, a personagem Livro, produz um discurso crítico da primeira parte. Se faço esta citação, não é por partilhar tal opinião, mas, pelo contrário, por dela discordar e para a rebater. A urdidura da narrativa é, a meu ver, consistente, e quanto à banalidade das experiências narradas, “que poderiam pertencer ao vizinho”, o que se pode dizer é que nem só de histórias mágicas e extraordinárias se faz a ficção, além de que o vizinho, o nosso vizinho, pode muito bem ser uma personagem fascinante, como, aliás, cada um de nós, sendo que a dificuldade está em encontrarmos autor.

 

O Ilídio, o Galopim, o Cosme, o Constantino, a Adelaide, o Livro, encontraram-no e, ao encontrá-lo, saíram do anonimato para trajectos de vida que nos transportam de 1948, por paisagens de um Portugal rural, até 2010, passando pela França dos anos sessenta, com os seus bidonvilles e com a borrasca contestatária de Maio.

 

O que, no meio de tudo isto, constitui um factor de perturbação é, como o próprio autor o reconhece em entrevistas, a natureza da 2.ª parte do romance, que quebra a unidade narrativa, desviando o discurso para um experimentalismo que destoa absolutamente da linearidade relativa da primeira parte (relativa, apenas, porque, como é comum na narrativa contemporânea, encaixe e alternância são procedimentos que Peixoto adopta sistematicamente).

 

A um outro nível, o da sintaxe frásica, a perturbação não se limita a uma ocorrência, antes irrompe com alguma frequência. É o caso da elipse, por exemplo, que pode revestir formas diferentes. Atente-se nesta frase: “Fechou a porta do quintal, pousou a chave sobre a mesa vazia, entrou no quarto, o som de abrir e fechar a gaveta vazia da banquinha, saiu do quarto, segurou na mala, deu três passos, toc, toc, toc, e abriu a porta.” (15). O membro de frase a negrito interrompe a sequência de proposições coordenadas assindéticas (“Fechou… + Pousou… + Entrou…), como se fosse uma indicação dada ao encenador encarregado de montar a cena no teatro. Algo semelhante acontece nestas outras: “Era uma noite de agosto, os grilos.” (p. 202), ou “Parei o carro, as cigarras.”, em que facilmente se subentende “ouviam-se”, ou ainda em “O meu carro, trinta quilómetros, e comprámos dois colchões novos.” (212-213), ou seja “Metemo-nos no meu carro, fizemos trinta quilómetros…”. Já em “Sentado na penumbra, e Portugal, o Ilídio chorava Portugal”, a elipse resulta apenas do facto de se pré-anunciar sucintamente uma ideia que reaparece na proposição seguinte.

 

Outro aspecto relevante na construção deste romance é a chamada autoreferencialidade: o livro que a mãe pousa nas mãos de Ilídio (primeira frase do romance), que este oferece a Adelaide, que esta lê nos intervalos do trabalho na biblioteca, em Paris, que é usado por Constantino para comunicar com Adelaide e que acaba sendo oferecido a Livro é este mesmo livro, onde, a páginas 224, podemos encontrar as palavras “gosto”, “de” e “ti” com os pequenos círculos a que se alude na página 145, em circunstâncias diferentes – preliminares do relacionamento futuro entre Constantino e Adelaide.

 

O que me causou alguma estranheza, sabendo que J. L. Peixoto é formado em Línguas e Literaturas Modernas e leccionou durante algum tempo (Inglês, é certo), foram as grafias incorrectas de algumas palavras francesas. Exemplos:

 

 “Comment s’appele o balcão das informações em francês, Libânia?” (245),

 “…le russe américain et le irlandais français”(246),

 « Où est-tu ? » (254),

 « La Dame au camélias » (256).

 

Resta-me dizer que gostei do romance de Peixoto, que, para além do mais, me encoraja a lançar-me na ficção. “Se esse despenteado que mijava atrás de sobreiros pode escrever e publicar um romance, eu também posso.” (228)

CONTESTAÇÃO ORGÂNICA – O QUE DISTINGUE A REVOLUÇÃO DA REVOLTA

Há alguns anos que uma preocupação de ordem político-social, mas também singelamente pessoal (egoísta), me começou a habitar: a de que a perda de influência dos sindicatos e dos partidos políticos de esquerda (quando digo esquerda, refiro-me mesmo à esquerda e não ao reformismo dos partidos ditos socialistas) a par do agravamento das condições de vida dos trabalhadores viesse, mais cedo ou mais tarde, a desembocar em situações de violência descontrolada e generalizada.

 

A questão não é, obviamente, nova, nem a correspondente preocupação me é exclusiva. Desde que surgiram, com a Revolução Francesa, os primeiros embriões de partidos políticos (então chamados clubes), seguramente a violência revolucionária e a sua utilização controlada, como motor de transformação político-social, estiveram sempre presentes no espírito, no discurso e na acção dos actores sociais.

 

Entretanto, as sociedades desenvolveram-se, multiplicaram-se as relações de produção, na razão directa do incremento demográfico e da industrialização, as associações de natureza política e sindical proliferaram, como expressão da defesa de interesses de classes sociais e profissionais, e simultaneamente como instrumentos de consciencialização dos seus membros.

 

Em Maio de 1968, a dicotomia reforma / revolução era o leitmotiv dos grupúsculos esquerdistas, na sua denúncia permanente do Partido Comunista Francês e da CGT, e a componente anarquizante do movimento era bem visível sempre que estes mesmos grupúsculos acusavam o partido e a central sindical de retirarem acutilância ao movimento grevista e contestatário em geral, através do controlo e da moderação que lhe impunham.

 

Não vem agora ao caso discutir a justeza destas acusações, mas o certo é que, se tal controlo impediu que a revolução se cumprisse (como alguns supunham), também evitou que a revolta descambasse numa sucessão de actos de violência gratuita e que a violência da polícia e do exército afogasse a utopia num rio de sangue. O PCF e a CGT tinham força, tinham influência, outros sindicatos e partidos de esquerda também as tinham, e foi possível seguir em frente, com alguns ganhos significativos em matéria de mentalidades e de direitos, ainda que o poder da burguesia tenha permanecido intocado e a direita até tenha progredido nas eleições gerais que se seguiram ao movimento contestatário. Se os poderosos praticamente não recuaram, também os desfavorecidos não tiveram que chorar a morte dos seus.

 

Nos últimos anos, o panorama alterou-se a desfavor das forças progressistas. A imprensa tem-se feito eco (ainda que comedidamente e, por vezes, com episódios de censura óbvia) dos acontecimentos ocorridos na Grécia, em França, na Islândia e noutros países, a propósito das medidas de austeridade implementadas alegadamente para combater a crise (a crise produzida ciclicamente pelo sistema acarinhado por aqueles que implementam as medidas de austeridade para a combater). Entre nós, como garantidamente nos restantes países da união Europeia, para nos atermos à Europa), a crise afecta apenas os trabalhadores. Prova disso são os lucros fabulosos de grandes empresas, dos grupos económicos e dos bancos; os vencimentos inqualificáveis de gestores e administradores; as pensões de reforma acumuladas por indivíduos que, miseravelmente, vêm receitar a descida dos salários dos trabalhadores; as festas comemorativas e jantares oferecidos por departamentos do Estado e por autarquias.

 

A esta discrepância entre os sacrifícios impostos aos trabalhadores e as prebendas de que beneficia a burguesia – proprietária, gestora e administradora do Estado como dos bens que deveriam ser de todos – apetece-me chamar imoral, mas, mais do que moral, o problema é de natureza política. E tem solução. Ainda na semana passada, o Partido Comunista Português apresentou, nas suas Jornadas Parlamentares, um conjunto de propostas. É claro que são propostas que não agradam nem a gestores, nem a administradores, nem a banqueiros, nem a políticos da direita ou do centrão. E também é claro que, sendo propostas do PCP, são automaticamente desvalorizadas – não apenas pela imprensa de referência, mas pela esmagadora maioria da inteligência bem-pensante.

 

É também, cada vez mais, claro que as desigualdades e injustiças sociais já não suscitam apenas indignação – cada vez mais, suscitarão desespero. Não estranhei, por isso, que, ultimamente, alguns comentadores e até ex-presidentes da República tivessem vindo brandir a ameaça da revolta social. O General Ramalho Eanes referiu-se à contestação orgânica como forma não só legítima como desejável de libertação das tensões sociais e o Dr. Mário Soares, no seu discurso mais imagético, dizia que, enquanto as pessoas descerem a avenida a gritar slogans, ainda a coisa vai.

 

Realmente, enquanto a CGTP e o PCP mantiverem a capacidade de mobilizar e de canalizar o descontentamento popular, a coisa vai. Não vai até à revolução – historicamente, a única forma de instaurar uma nova ordem mais justa –, que as condições subjectivas e parte das objectivas não estão criadas, mas vai até ao limite possível da expressão do descontentamento e da reivindicação colectiva.

 

Quando assim não for, cairemos no caos da revolta, que imola justos e pecadores.