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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Fernando Nobre e a criação de empregos

Quando, ontem, no primeiro debate televisivo entre candidatos presidenciais, Fernando Nobre se gabou de ter criado mais de trezentos empregos e desafiou Francisco Lopes a dizer se já tinha criado “um único emprego”, senti-me muito mal. É que, como Francisco Lopes, eu também nunca criei um único emprego e talvez por isso mereça ser tratado como um indivíduo pouco merecedor da consideração dos seus concidadãos. Acto contínuo, porém, meditei durante uns segundos sobre a indignidade da minha condição e dispus-me firmemente a emendar-me, naturalmente criando alguns empregos. Desgraçadamente, não logrei vislumbrar como. Porém, à guisa de compensação, ocorreu-me uma ideia infeliz, da qual antecipadamente me penitencio. Consiste ela em que, dos dez milhões de portugueses que somos, mais coisa menos coisa, deve haver muito para cima de nove milhões que nunca criaram um único emprego, sendo que muitos deles, inscritos ou não em centros de emprego, bem gostariam de encontrar um que lhes assegurasse a sobrevivência com um mínimo de dignidade. Tranquilizada a consciência, dei livre curso à meditação encetada segundos antes, perguntando-me se Fernando Nobre não teria confundido Francisco Lopes com van Zeller, Belmiro ou Amorim. Melhor dizendo, aliás – para citar aqueles que criam emprego sem o destruírem noutro lado –, com um qualquer micro-empresário da restauração ou da mecânica automóvel. Não obtive resposta.

 

Desbridada a meditação, ocorreu-me ainda que, se nunca criou um único emprego, Francisco Lopes é contudo um destacado dirigente dum partido que combate as políticas daqueles que têm destruído empregos – não aos trezentos mas aos milhares –, cujos são nomeadamente o PSD e o PS. Ora o antagonista de Francisco Lopes apoiou candidaturas desses predadores sociais em diferentes ocasiões. Por que misteriosa razão?

 

Ainda me aflorou ao espírito uma ideia estapafúrdia e particularmente perversa, a saber: Fernando Nobre granjeou o prestígio que tem graças a uma associação humanitária que só pode desenvolver a sua actividade com os contributos dos seus doadores, homens e mulheres de todas as condições e partidos, ou sem partido, movidos apenas pelo anelo da solidariedade activa. Há-os, com certeza, apoiantes de Cavaco, de Alegre, de Moura, dele mesmo, Nobre. E de Lopes, como é o meu caso. Como se sentirão eles a apoiar, ainda que indirectamente, um candidato que não apoiam politicamente?

O formal e o substantivo, ou os limites da justiça

 

Já por duas vezes aqui, em 25 de Novembro do ano passado e em 21 de Fevereiro deste ano, a propósito de escutas telefónicas e da putativa ingerência do primeiro-ministro na TVI, me pronunciei sobre as garantias legais que parecem forjadas para assegurarem a fuga dos poderosos à lei.

 

Agora, a propósito do caso WikiLeaks, ouvi a inenarrável Dr.ª Cândida Almeida, naquele seu habitual estilo de dona de casa na graça de Deus, garantir – e não duvido que com conhecimento de causa! – que os telegramas em que se denuncia a anuência do governo português quanto à escala, nas Lajes, de aviões americanos com prisioneiros destinados a Guántanamo só poderão dar origem a uma reabertura da investigação se tiverem sido obtidos legalmente. Caso contrário, o processo não tem pernas para andar – Dr.ª Cândida dixit.

 

Como é óbvio não duvido – quem sou eu?! – da competência técnico-jurídica da senhora. Como também não duvido de que há regras que se destinam a proteger a reserva de privacidade dos cidadãos, sejam eles quem forem, e que o seu desrespeito constitui um prejuízo sério para as suas vítimas e para o Estado de direito. Acontece que o que está em causa não é a necessidade de proteger a privacidade das comunicações entre cidadãos e – talvez maxime, porque de consequências incomparavelmente mais graves – entre representações diplomáticas e respectivos governos. Essa necessidade mantém-se, deve ser honrada, mas o facto é que há fugas de informação que, como aconteceu com a TVI e acontece agora com o Wikileaks, trazem ao conhecimento público factos graves, perante os quais os cidadãos legitimamente se questionam sobre a idoneidade daqueles a quem confiaram o governo do país. E, perante isto, que nos dizem as almeidas, os monteiros e os noronhas deste país? Que a legalidade não foi cumprida no acto de obtenção da prova. Ou seja, como eu presenciei o crime pelo buraco da fechadura, deixa-se ir o cidadão criminoso em paz e move-se-me um processo por devassa da privacidade do mesmo cidadão.

 

Este constrangimento a que a justiça se vê assim forçada e que lhe limita dramaticamente o alcance, longe de tranquilizar o cidadão comum quanto ao funcionamento da justiça e do regime, mais não faz do que arraigar a convicção de que vivemos num regime de arbitrariedade que garante a impunidade dos poderosos e trata os cidadãos comuns como títeres desmiolados.