A rebelião actualmente em curso na África do Norte, motivo de satisfação para quantos se reclamam dos valores da liberdade e da democracia (refiro-me aos conceitos substantivos, que não ao placebo que a ditadura da burguesia nos impinge – com êxito, há que reconhecê-lo) é, ao mesmo tempo, geradora de múltiplas interrogações e de alguma perplexidade.
Tunisinos e egípcios, para já (iemenitas e argelinos, na próxima etapa?), dão mostras de que os povos amordaçados, sujeitos à opressão e a condições de vida precárias acabam sempre por derrubar os responsáveis directos por esse estado de coisas e, mais cedo ou mais tarde (numa perspectiva de longo prazo), acabam mesmo por extirpar as raízes do mal (ainda que mal soe esta expressão com ressonância ao famigerado eixo do mal do não menos famigerado Bush).
Impressiona a facilidade com que estes regimes ditatoriais vacilam e caem sob a pressão dos levantamentos populares. São verdadeiros ídolos com pés de barro. Porém, ao mesmo tempo, choca sabermos que estes levantamentos, nomeadamente no Egipto, são convocados ou conduzidos ou infiltrados por indivíduos e organizações cuja ligação aos EUA está documentada.
A este respeito, incomoda constatar o deslumbramento daqueles que acreditam piamente nas virtudes das novas tecnologias e na inocência dos seus utilizadores. É realmente animador o pensamento de que algumas dezenas ou centenas de pessoas, munidas de um telemóvel ou de um computador ligado à internet são o suficiente para pôr multidões em pé de guerra contra um regime e a sua máquina repressiva. Contudo, como dizia Pacheco Pereira no seu artigo de sábado passado no Público, “usar o Facebook e os SMS num processo de agitação social e político por si só não significa nada sobre o conteúdo do movimento, nem classifica o movimento de per si como democrático”. E menos entusiasmante ainda é o conhecimento dos cordelinhos que se movem por detrás da aparente espontaneidade dessas comunicações. Saber, por exemplo, que os activistas do movimento Kifaya (Basta) do Egipto, que organizou os protestos nas redes sociais dos sítios web do Facebook e Twitter, juntamente com o Movimento da Juventude 6 de Abril, são apoiados pelo International Center for Non-Violent Conflict com sede nos EUA. Este International Center, que tem estado envolvido na promoção e treino do Facebook e de blogs Twitter no Médio Oriente e África do Norte, está ligado à Freedom House, que, por sua vez, tem ligações ao Congresso dos EUA, ao Council on Foreign Relations, ao establishment de negócios e à CIA.
E que mal tem isso, se o objectivo é derrubar uma ditadura? – perguntarão aqueles que acreditam na bondade da democracia americana. Não teria nenhum – responderei –, não foram as forças armadas egípcias o maior beneficiário da ajuda militar dos EUA. Ora as forças armadas egípcias são o sustentáculo do regime de Mubarak. Quando o carismático presidente Obama declara, no vídeo de 28 de Janeiro difundido no Youtube, "O governo /de Mubarak/ não deveria recorrer à violência", não haverá razões para se duvidar da sua boa-fé?
Quanto às condições de vida de tunisinos e egípcios, é sempre bom saber que o que levou ao empobrecimento de ambos os povos e à desestabilização das suas economias foram os programas do FMI aplicados – há mais de 20 anos, no caso da Tunísia; em 1991, no Egipto, por ocasião da Guerra do Golfo. Ainda no caso do Egipto, aliás, em troca da anulação da sua dívida militar para com os EUA e da sua participação na guerra.
É por tudo isto que as rebeliões em causa deixam um travo de inquietação. Os processos de libertação dos povos nunca são lineares; para além de avanços e recuos, a caminhada da humanidade para a justiça social ainda conhece os falsos avanços, que – quantas vezes! – são prolongados recuos semeadores de grandes ilusões. O que nos reconduz às raízes do mal: no caso do Egipto e da Tunísia, o derrube dos fantoches Mubarak e Ben Ali levará provavelmente ao surgimento de novos fantoches, cuja dinastia só se extinguirá quando estes e os outros povos oprimidos se levantarem contra os mestres dos fantoches. Mas este passo decisivo não acontece por obra e graça de qualquer espontaneidade milagrosamente impelida no sentido da justiça; ele carece de uma organização revolucionária que lhe dê coesão e coerência, o que não se verifica no momento presente.
(Nota: os 4.º, 5.º e 6.º parágrafos deste post contêm informação colhida no artigo “O movimento de protesto no Egipto: Ditadores não ditam, obedecem a ordens, de Michel Chossudovsky, publicado no sítio http://resistir.info, em 29 de Janeiro de 2011. A imagem, do mesmo sítio, tem o seguinte endereço URL: http://resistir.info/africa/imagens/cairo_28jan11_c_60pc.jpg)
De Simão Bolívar eu tinha guardado memórias vagas dos tempos do Liceu, que mo identificavam como um dos libertadores da América do Sul do domínio colonial espanhol, facto este que explica a filiação bolivariana da revolução conduzida por Hugo Chávez na Venezuela. Mas não passava disso. Como tantas outras personalidades históricas que conhecemos dos compêndios de história, Bolívar era para mim uma personagem plana, o tipo do herói revolucionário do romântico alvorecer do século XIX.
De García Márquez, conhecia os enormes romances que são Cem Anos de Solidão, Crónica de Uma Morte Anunciada e, noutro registo, A Aventura de Miguel Littín, Clandestino no Chile. Fiquei agora a conhecer O General no Seu Labirinto, muito diferente dos dois primeiros, por não se filiar no realismo mágico, e do terceiro, que é uma espécie de reportagem.
Ficção histórica, O General no Seu Labirinto narra os acontecimentos dos últimos dias da vida de Simón Bolívar, nomeadamente a viagem que empreendeu de Bogotá para Santa Marta, seguindo o curso do rio Magdalena. Mas, como o Autor nos diz num texto final de “Agradecimentos”, “os fundamentos históricos preocupavam-/no/ pouco, pois a última viagem pelo rio é o tempo menos documentado da vida de Bolívar. Só escreveu então três ou quatro cartas - um homem que deve ter ditado mais de dez mil - e nenhum dos seus acompanhantes deixou memória escrita daqueles catorze dias desafortunados.” (p. 187)
A ideia (vaga) que eu tinha de Bolívar ganhou consistência; a personagem histórica adquiriu, como sempre acontece quando lemos uma obra desta envergadura, as formas, as cores, os sentimentos, emoções, fraquezas e paixões do ser humano igual a qualquer um de nós, mas também distinto – neste caso, pela sua excepcional determinação e força de vontade inquebrantável, maugrado a debilidade física e a decrepitude precoce (Bolívar morreu com quarenta e sete anos, mas aparentava mais de sessenta).
Pela razoável actualidade que me parece manter nos dias de hoje, nomeadamente quando se verberam os povos africanos que acederam à independência após a Segunda Guerra Mundial e, no caso do colonialismo português, após o 25 de Abril de 1974, transcrevo o delicioso passo referente a uma viva troca de opiniões entre Bolívar e um francês desejoso de exibir a sua erudição e demasiado imbuído da superioridade histórica dos Europeus:
“- Os argumentos de Constant contra a tirania são muito lúcidos - disse o francês.
- O senhor Constant, corno bom francês, é um fanático dos interesses absolutos - disse o general. - Em contrapartida, o abade Pradt disse a única coisa lúcida dessa polémica, quando indicou que a política depende de donde se faz e quando se faz. Durante a guerra de morte eu próprio dei a ordem para executar oitocentos prisioneiros espanhóis num só dia, inclusive os doentes no hospital de La Guayra. Hoje, em circunstâncias iguais, não me tremeria a voz para voltar a dá-la, e os europeus não teriam autoridade moral para mo reprovarem, pois se há uma história alagada de sangue, de indignidades, de injustiças, essa é a história da Europa.
À medida que se embrenhava na análise ia atiçando a sua própria fúria, no grande silêncio que pareceu ocupar o povo inteiro. O francês, esmagado, procurou interrompê-lo, mas ele imobilizou-o com um gesto da mão. O general evocou as matanças horrorosas da história europeia. Na Noite de São Bartolomeu o número de mortos passou de dois mil em dez horas. No esplendor do Renascimento doze mil mercenários a soldo dos exércitos imperiais saquearam e devastaram Roma e mataram à faca oito mil dos seus habitantes. E a apoteose: Ivan IV, o czar de todas as Rússias, bem chamado O Terrível, exterminou todas as populações das cidades intermédias entre Moscovo e Novgorod, e nesta mandou massacrar num só assalto os seus vinte mil habitantes, pela simples suspeita de que havia uma conjura contra ele.
- Por isso, não nos façam mais o favor de nos dizerem o que devemos fazer - concluiu. - Não procurem ensinar-nos como devemos ser, não procurem que sejamos iguais a vocês, não pretendam que façamos bem em vinte anos o que vocês fizeram tão mal em dois mil.
Cruzou os talheres sobre o prato e pela primeira vez fixou no francês os seus olhos em chamas:
- Por favor, caramba, deixem-nos fazer tranquilos a nossa Idade Média!” (p. 92)
Não foi só o romance propriamente dito, contudo, que me marcou. O texto de “Agradecimentos” de que já atrás transcrevi uma curta passagem tem alusões interessantíssimas ao método de investigação histórica em que García Márquez foi paulatinamente sendo iniciado, ele que tinha “absoluta falta de experiência e de método na investigação histórica” (p. 187). Atente-se nas seguintes gaffes cometidas pelo Autor e oportunamente corrigidas graças aos esclarecimentos de amigos historiadores:
“A ele / historiador bolivariano Vinicio Romero Martínez / devo a advertência providencial de que Bolívar não pode ter comido mangas com o deleite infantil que eu lhe atribuíra, pela simples razão de que ainda faltavam vários anos para que a manga chegasse às Américas. (...)”
“O meu velho amigo Aníbal Noguera Mendoza (...), na primeira versão dos originais, descobriu meia dúzia de falácias mortais e anacronismos suicidas que teriam lançado dúvidas sobre o rigor deste romance. (...)”
“Por último, Antonio Bolívar Goyanes - parente oblíquo do protagonista e quiçá o último tipógrafo à boa maneira antiga dos que vão ficando no México - teve a bondade de rever comigo os originais, numa caçada milimétrica de contra-sensos, repetições, inconsequências, erros e erratas, e num escrutínio encarniçado da linguagem e da ortografia, até esgotar sete versões. Foi assim que surpreendemos com a mão na massa um militar que ganhava batalhas antes de nascer, uma viúva que foi para a Europa com o seu amado esposo, e um almoço íntimo de Bolívar e Sucre em Bogotá, enquanto um se encontrava em Caracas e o outro em Quito. No entanto, não estou muito certo de que deva agradecer estas duas ajudas finais, pois parece-me que tais disparates teriam introduzido umas gotas de humor involuntário - e talvez desejável - no horror deste livro.” (p. 188)
Uma nota negativa para esta edição (2.ª) da Dom Quixote prende-se com o anormalmente elevado número de gralhas (em alguns casos, prováveis erros de ortografia), de que anotarei alguns exemplos mais abaixo, e a tradução de Cristina Rodriguez. Não conheço o texto original em castelhano, mas a frase “Assim que surgiu divertido da banheira” (p. 45), pelo seu contexto, parece-me ser a tradução de “Así que ...”, o que daria em português “Foi por isso que ...” ou “Foi assim que ...”. Outra ocorrência desta tradução na p. 116 (“Assim que a culpa é sua”)
Gralhas:
Acorrer por ocorrer, na p. 32; grangeara por granjeara, na p. 37; desteis-me por destes-me, na p. 84; curadoura por curadora, na p. 111; magestático por majestático, na p. 121; paralizados por paralisados, na p. 154, entre várias noutras.
Que votem em Cavaco os grandes proprietários, os donos e os administradores das grandes empresas, os latifundiários (que ainda os há) e, em geral, todos aqueles que põem o seu património, ou a ambição de rapidamente vir a ter um, à frente do bem comum, ou ainda aqueles que não logram desembaraçar-se das teias de aranha de que os breviários inculcados durante quarenta e oito anos, e mais alguns depois desses, lhes povoaram as cabeças – eu não acho bem nem mal; acho que é o comportamento expectável da burguesia e dos seus serventuários.
Que votem, desde já, em Manuel Alegre ou em Defensor de Moura os parentes menos afortunados dos grandes proprietários, dos donos e administradores das grandes empresas, dos latifundiários e, em geral, todos aqueles que prezam a vida cómoda que levam e até vislumbram poder um dia alcançar pecúlios equivalentes aos dos seus parentes mais bafejados pela graça de Deus, do Espírito Santo e da Sociedade Lusa de Negócios, mesmo sabendo que só se lá chega deixando para trás uma multidão de famintos – eu não acho bem nem mal; acho que é o comportamento típico de franjas da burguesia que deste modo tranquilizam a consciência incomodada pelo espectáculo do desemprego e da miséria.
Que votem em Fernando Nobre os que, depois de Salazar e Mussolini, ainda acreditam em homens providenciais, os que não lobrigam, por detrás da fachada humanitária, o edifício da arrogância enfatuada, os que se deixam ir em discursos de embalar, leves e tão ocos que ao menor sopro de vento se desvanecem, e enfim os que não percebem que a apregoada independência ruiria, acaso chegasse onde, alegadamente, o destino pessoal o quer alcandorar, sob a investida das pressões dos mais fortes – eu não acho bem nem mal; acho que é o que se pode esperar de quem acredita no Pai Natal.
Que votem em José Manuel Coelho os que, mais do que tudo, apreciam o histriónico e, à tragédia da pobreza real ou à farsa da condolência cavaquista perante o sofrimento do povo, preferem a comédia de costumes e de carácter que o candidato da Madeira põe em cena cada dia – eu não acho bem nem mal; acho que é o que convém a quem prefere entreter-se com gravetos em vez de encarar de frente a floresta.
Que votem em Francisco Lopes aqueles que sabem de ciência certa que só uma mudança radical de rumo pode levar o país para a via do progresso sustentado e da justiça social – eu acho bem.
E é porque acho que é a candidatura de todos os que anseiam por um país decente que vou votar Francisco Lopes.
Andava eu pelos 17 anos e tinha dois grupos de amigos: um, mais antigo, constituído por colegas do Liceu e por um primo (todos sensivelmente da mesma idade), tinha por cimento aglutinador apenas a amizade resultante do convívio continuado e das celebrações próprias da adolescência – andanças pela cidade em busca do desconhecido e em particular do desconhecido estimulantemente revestido de formas femininas; outro, mais recente, constituído pelo Mário, pelo Fernando, pelo Morim e pelo Artur. Eram todos um pouco mais velhos do que eu (um ano ou dois, se bem me recordo), excepto o Fernando, que devia ter vinte e tal anos e, creio, era gráfico. Mais tarde, emigraríamos todos para França (ainda cheguei a encontrar-me com o Morim e o Artur, em Paris, em 1967), excepto o Mário. O Fernando e o Morim escreviam poesia. Lembro-me relativamente bem da do Morim, porque me enviou muitos poemas por correio, quando já ambos estávamos em França (eu em Lyon).
Por esta altura, reuníamo-nos frequentemente em minha casa ou na do Mário, na Rua de Cedofeita, para seleccionarmos textos, geralmente poéticos, que enviávamos para o República (Juvenil), ao cuidado do Mário Castrim. Mas esta actividade literária era apenas a ponta do iceberg, porque dela partíamos para as mais variadas conversas em torno dos escritores neo-realistas, de filmes como o “Rocco” (graças ao Cine-Clube do Porto, onde conheci o Egito Gonçalves), de poetas como Neruda e da filosofia marxista. Foi numa destas tertúlias que o Artur nos falou de um livro do Manuel Alegre que tinha oferecido à mãe. O texto de abertura do livro chamava-se “Rosas Vermelhas” e começava assim:
“Nasci em Maio, o Mês das rosas, diz-se. Talvez por isso, eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
“E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas, oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.”
E acabava deste modo:
“ (...) em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu estava no meu posto.
“No dia 12 não acordei com o beijo da minha mãe.
“Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas talvez – quem sabe? – às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha, duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.”
Este livro era, claro, a Praça da Canção, e o Artur falava-nos, com emoção, da emoção com que a mãe lera o texto introdutório.
Doze anos volvidos sobre este episódio, estávamos em 1977. Manuel Alegre, porta-voz do Governo, jura perante as câmaras de TV: “Como diz o nosso povo, ainda eu seja ceguinho se o PS se coligar com o CDS”. Pouco tempo depois, PS e CDS estão juntos no governo.
Ora, apesar de nunca ter sido socialista – na acepção de membro, apoiante ou simpatizante do Partido (que se diz) Socialista –, sempre, desde os tempos a que me referi atrás, tive grande simpatia, primeiro pelo autor da Praça da Canção, depois por uma das vozes que, nos tempos em que Cavaco Silva, segundo reza a sua ficha na PIDE, estava “integrado no actual regime político, não exercendo qualquer actividade política”, faziam chegar aos portugueses, através da rádio (neste caso, a “Voz da Liberdade”, emitindo de Argel), “notícias do meu país” (para citar um dos belíssimos versos da “Trova do vento que passa”), notícias da “pátria, lugar de exílio” (para citar Daniel Filipe, outro grande poeta da resistência ao fascismo). Senti-me atraiçoado, obviamente não pelo PS, mas pelo poeta da liberdade que o Artur me dera a conhecer e que tingira de vermelho os sonhos de liberdade dos meus dezassete anos.
Trinta e quatro anos volvidos, estamos em 2011. Manuel Alegre, por quem mantenho a simpatia literária, manteve-se fiel à rosa. Eu mantive-me fiel à cor das rosas que a mãe lhe levava pela manhã de cada 12 de Maio.
P.S. - “É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse, sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?” – escreve ainda Manuel Alegre no mesmo texto. Pego nas palavras dele para justificar o meu próprio voto em Francisco Lopes.
Ele diz que a venda das acções do candidato Cavaco Silva com 140% de benefício é um assunto interno do banco. E diz que a insistência dos outros candidatos no caso BPN só serve para descredibilizar ainda mais a política e os políticos. E, ao mesmo tempo, diz que o BPN é um buraco sem fundo e que urge pôr-lhe um termo. E nós ouvimos e começamos por achar esta mãozinha dada ao candidato Cavaco Silva tão generosa que só é entendível no âmbito de uma campanha humanitária, ou não estivesse o mesmo a atravessar um duro transe por via das malfeitorias de alguns dos seus mais dilectos amigos, colaboradores e financiadores de campanhas. E depois constatamos que o candidato Fernando Nobre, apesar de detestar os ataques pessoais desferidos pelos demais, por descredibilizarem a política, não deixa de reclamar a urgente resolução do sorvedouro de recursos nacionais que é o BPN. E lembramo-nos de que, com os 5 mil milhões, fora o que está para vir, algumas das medidas de austeridade que mais penalizam os trabalhadores portugueses não seriam necessárias. E vem-nos à memória aquela frase batida de que foi por via de uma gestão fraudulenta e criminosa que o BPN chegou onde chegou. E ocorre-nos que essa gestão fraudulenta é da responsabilidade dos tais dilectos amigos, etc. E que, se a fraude é uma abstracção, os lucros chorudos obtidos em operações de compra e venda de acções são tão concretos e definidos como outra coisa qualquer. E, não duvidando de que teríamos de nascer pelo menos duas vezes para sermos mais honestos do que o candidato Cavaco Silva, também nos vem ao espírito que, para um afamado economista, lucros tão substanciais não podem deixar de suscitar algumas interrogações quanto ao modo como foram obtidos. E concluímos que, se somos nós que estamos a pagar os desmandos destes ilustres cavalheiros, talvez não seja demais pedir explicações cabais a quem deles, eventualmente, terá beneficiado, sem que isso seja imediatamente levado à conta de ataque pessoal. Quanto à descredibilização da política e dos políticos, assacá-la a um pedido de explicações é tão estranho como o seria acusar a vítima de uma agressão na via pública de estar, com os seus gritos, a perturbar a tranquilidade dos transeuntes.
Ou será que Fernando Nobre, que até viu uma criança a correr atrás de uma galinha para lhe tirar um pedaço de pão do bico, não vislumbra, nas fauces dos tubarões da alta finança, o pão que tiram da boca dos trabalhadores portugueses?
Fernando Nobre dizia, ontem, na entrevista com Judite de Sousa, que se tinha candidatado porque é esse o seu destino. Apesar de correr o risco de passar de bestial a besta, o seu destino - jura - é ser candidato a presidente da república.
- Porquê candidato a presidente da república e não a deputado ou a um qualquer órgão autárquico - pergunto agora eu. E ele, se me lesse, talvez respondesse:
- Porque não quero entrar neste pernicioso sistema partidário que pôs o país no estado em que está! É que, como dizia o meu pai, a política é uma porcaria. Mas eu estou acima dos partidos, sou completamente independente, e esta é uma oportunidade única que ofereço aos portugueses de votarem num candidato que nunca foi deputado, nem ministro, nem general...
- Ainda que, como ministro ou presidente de câmara, por exemplo, e com as competências executivas desses cargos, pudesse realmente implementar políticas inspiradas nos seus desígnios humanitários, o que está constitucionalmente vedado ao presidente da república? - replicaria eu.
- Na, na, não. Não vá por aí. O meu destino é ser médico humanitário e candidato a presidente da república.
Esta consciência avassaladora de um destino inelutável impõe-se-nos com a mesma carga terrífica da ananké das tragédias, e só por malvadez ou outros instintos igualmente detestáveis aspiraríamos a ver o candidato desafiar o poder dos deuses (da Providência, no caso vertente), passando a dedicar-se exclusivamente a causas humanitárias. Todavia, esta associação do candidato a uma instância superior e intangível que lhe teria traçado o rumo da candidatura presidencial aproxima-o perigosamente da figura messiânica. E embora o seu perfil não lhes seja comparável, ao vestir-lhes, de alguma forma, a pele, corre o risco de passar por mais um candidato... a salvador da pátria, como tantos outros que infestaram o século XX. Só que numa versão soft.