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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Redol revisitado

 

 

 

Os cínicos pós-modernos, detractores blasés da utopia, lançar-me-iam um olhar desdenhoso. Mas os devotos das elucubrações estilísticas dos novos tempos – aqueles para quem esta literatura só tem cabimento numa versão laica do Index Librorum Prohibitorum – não me poderiam excomungar da confraria dos neo-barrocos. Não sou, com efeito, um fiel. E, se uso o condicional, é porque é escassa ou nula a probabilidade de me lerem.

        

Vale a pena ler (e reler) Avieiros (1942). Por muito datado que seja. Por muito que o sociolecto nos proponha uma constante ida ao dicionário. É que ali há vida para além da literatura, que não se esgota na busca incessante de novos cultismos e conceptismos. Vida que transpira de cada página. E é uma lição de vida embarcar com o Tóino da Vala e a Olinda Carramilo, ciganos do Tejo como tantos outros, no seu saveiro – simultaneamente ferramenta de trabalho e lar –, e com eles lançar as redes ao rio, na faina do sável. São vítimas da fome, granjeando cada dia o sustento de mais um dia, na caminhada de todos os explorados em direcção a uma terra sem amos. Porque, se os tempos mudaram, a fome, essa, aí está, imposta pelos amos da terra, aqueles a quem nada convém que a literatura deixe a sua torre de marfim para pôr na nossa alma “sabor ferruginoso e fogo frio”, para nos levantar “até à altura insigne dos homens comuns”, como diria Neruda.

A detenção de Strauss-Kahn

Anda este tipo, há anos,  a tramar (para evitar o plebeísmo) milhões de homens e mulheres pelo mundo inteiro e não só não o prendem como o incensam. De repente,  insinua-se nu perante a empregada da limpeza do hotel – cai o Carmo, a Trindade e ainda incorre numa pena de vinte anos de prisão. Não minimizando a indignidade do alegado comportamento, não deixa de ser curiosa tal discrepância de avaliações. E, já agora, que dizer dos 2000€ por cada noite passada na suite do hotel de luxo em NY? Não será um atentado ao pudor dos que pagam a crise e os juros da dívida?

Mais depressa se apanha a NATO do que um coxo

Leio a notícia de que “72 imigrantes africanos foram deixados no mar Mediterrâneo para morrer (...)” (“Sol” e sapo.pt de hoje) e digo para comigo que a NATO não vai deixar passar impune mais este atentado ao mais fundamental de todos os direitos humanos. Que ponham as barbas de molho os autores da infâmia. A Aliança – que não é Santa, mas que a Congregação para a Doutrina da Fé não deixará, no mínimo, de beatificar, logo que a situação do João Paulo esteja solidificada – não deixará de honrar o seu lema GNérrico à escala global (pela lei e pela grei, pois claro), exercendo mais uma vez o direito de ingerência humanitária. E nós veremos, para nosso consolo de almas bem formadas, erguer-se de novo nos céus ímpios de uma qualquer grei de infiéis o gládio inclemente dos benfeitores da humanidade. Talvez haja que aguardar com paciência pelo derrube do grão-tinhoso que ainda se pavoneia por Tripoli, mas o dia virá em que a infâmia será vingada.

Ai, não. Leio o resto do primeiro parágrafo e pasmo de surpresa: “(...) depois de a guarda costeira italiana e a NATO terem ignorado os seus pedidos de ajuda”. Assim se esvai, enquanto o diabo esfrega um olho, a confiança inabalável (até então) de um honesto cidadão nas instituições que zelam pela paz e segurança do mundo livre.

Para que não se julgue ser o texto supra mera ficção, segue a transcrição da notícia na íntegra:

 

 

Imigrantes africanos deixados para morrer no mar pela NATO

9 de Maio 2011

 

 

72 imigrantes africanos foram deixados no mar Mediterrâneo para morrer depois da guarda costeira italiana e a NATO terem ignorado os seus pedidos de ajuda.

O britânico The Guardian avança numa peça exclusiva que no final de Março, o barco que transportava mulheres, crianças e refugiados políticos, terá ficado sem gasóleo depois de ter deixado Tripoli rumo à ilha italiana de Lampedusa.

Dos 72 passageiros que se encontravam no barco, 11 morreram de sede e fome ainda antes do barco ter começado a andar à deriva no mar alto por 16 dias.

Um dos nove sobreviventes conta que: «Todas as manhãs acordávamos e encontrávamos mais corpos, que 24 horas depois éramos obrigados a mandar borda fora». O mesmo homem explica o tormento dos últimos dias, nos quais já mal se reconheciam uns aos outros, «enquanto uns rezavam outros morriam».

Apesar de ter sido estabelecido contacto com a guarda costeira italiana e com um helicóptero e navio de guerra da NATO, nenhuma tentativa de salvamento foi levada a cabo.

De acordo com a lei internacional é obrigatório a todos os navios, incluindo os militares, responderem chamadas de ajuda de barcos que devem auxiliar sempre que possível.

Os activistas dos direitos dos refugiados exigiram já que estas mortes sejam investigadas e a agência das Nações Unidas para os refugiados (UNHCR) pediu uma maior cooperação dos navios militares no Mediterrâneo e um esforço maior para salvar vidas.

Este ano os conflitos no norte de África provocaram um aumento da quantidade de pessoas a tentarem chegar à Europa por mar. Nos últimos quatro meses acredita-se que 30 mil emigrantes tenham feito essa viagem, sendo que desses cerca de 800 não terão completado a viagem.

SOL / sapo.pt

 

O inevitável é inviável: Manifesto dos 74 nascidos depois de 74

Eis um manifesto que eu subscreveria, se tivesse nascido depois de 74:

 

 
Somos cidadãos e cidadãs nascidos depois do 25 de Abril de 1974. Crescemos com aconsciência de que as conquistas democráticas e os mais básicos direitos de cidadania são filhos directos desse momento histórico. Soubemos resistir ao derrotismo cínico, mesmo quando os factos pareciam querer lutar contra nós: quando o então primeiro-ministro Cavaco Silva recusava uma pensão ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, e a concedia a torturadores da PIDE/DGS; quando um governo decidia comemorar Abril como uma «evolução», colocando o «R» no caixote de lixo da História; quando víamos figuras políticas e militares tomar a revolução do 25 de Abril como um património seu.Soubemos permanecer alinhados com a sabedoria da esperança, porque sem ela a democracia não tem alma nem futuro.
 
O momento crítico que o país atravessa tem vindo a ser aproveitado para promover uma erosão preocupante da herança material e simbólica construída em torno do 25 de Abril. Não o afirmamos por saudosismo bacoco ou por populismo de circunstância. Se não é de agora o ataque a algumas conquistas que fizeram de nós um país mais justo, mais livre e menos desigual, a ofensiva que se prepara – com a cobertura do Fundo Monetário Internacional e a acção diligente do «grande centro» ideológico – pode  significar um retrocesso sério, inédito e porventura irreversível. Entendemos, por isso, que é altura de erguermos a nossa voz. Amanhã pode ser tarde.
 
 
O primeiro eixo dessa ofensiva ocorre no campo do trabalho. A regressão dos direitos laborais tem caminhado a par com uma crescente precarização que invade todos os planos da vida: o emprego e o rendimento são incertos, tal como incerto se torna o local onde se reside, a possibilidade de constituir família, o futuro profissional. Como o sabem todos aqueles e aquelas que experienciam esta situação, a precariedade não rima com liberdade. Esta só existe se estiverem garantidas perspectivas mínimas de segurança laboral, um rendimento adequado, habitação condigna e a possibilidade de se acederem a dispositivos culturais e educativos. O desemprego, os falsos recibos verdes, o uso continuado e abusivo de contratos a prazo e as empresas de trabalho temporário são hoje as faces deste tempo em que o trabalho sem direitos se tornou a norma. Recentes declarações de agentes políticos e económicos já mostraram que a redução dos direitos e a retracção salarial é a rota pretendida. Em sentido inverso, estamos dispostos a lutar por um novo pacto social que trave este regresso a vínculos laborais típicos do século XIX.
 
O segundo eixo dessa ofensiva centra-se no enfraquecimento e desmantelamento do Estado social. A saúde e a educação são as duas grandes fatias do bolo público que o apetite privado busca capturar. Infelizmente, algum caminho já foi trilhado, ainda que na penumbra. Sabemos que não há igualdade de oportunidades sem uma rede pública estruturada e acessível de saúde e educação. Estamos convencidos de que não há democracia sem igualdade de oportunidades. Preocupa-nos, por isso, o desinvestimento no SNS, a inexistência de uma rede de creches acessível, os problemas que enfrenta a escola pública e as desistências de frequência do ensino superior por motivos económicos. Num país com fortes bolsas de pobreza e com endémicas desigualdades, corroer direitos sociais constitucionalmente consagrados é perverter a nossa coluna vertebral democrática, e o caldo perfeito para o populismo xenófobo. Com isso, não podemos pactuar. No nosso ponto de vista, esta é a linha de fronteira que separa uma sociedade preocupada com o equilíbrio e a justiça e uma sociedade baseada numa diferença substantiva entre as elites e a restante população.
 
Por fim, o terceiro e mais inquietante eixo desta ofensiva anti-Abril assenta na imposição de uma ideia de inevitabilidade que transforma a política mais numa ratificação de escolhas já feitas do que numa disputa real em torno de projectos diferenciados. Este discurso ganhou terreno nos últimos tempos, acentuou-se bastante nas últimas semanas e tenderá a piorar com a transformação do país num protectorado do FMI. Um novo vocabulário instala-se, transformando em «credores» aqueles que lucram com a dívida, em «resgate financeiro» a imposição ainda mais acentuada de políticas de austeridade e em «consenso alargado» a vontade de ditar a priori as soluções governativas. Esta maquilhagem da língua ocupa de tal forma o terreno mediático que a própria capacidade de pensar e enunciar alternativas se encontra ofuscada.
 
Por isso dizemos: queremos contribuir para melhorar o país, mas recusamos ser parte de uma engrenagem de destruição de direitos e de erosão da esperançaSe nos roubarem Abril, dar-vos-emos Maio!
 
 
Alexandre de Sousa Carvalho – Relações Internacionais, investigador; Alexandre Isaac – antropólogo, dirigente associativo; Alfredo Campos – sociólogo, bolseiro de investigação; Ana Fernandes Ngom – animadora sociocultural; André Avelãs – artista; André Rosado Janeco – bolseiro de doutoramento; António Cambreiro – estudante; Artur Moniz Carreiro – desempregado; Bruno Cabral – realizador; Bruno Rocha – administrativo; Bruno Sena Martins – antropólogo; Carla Silva – médica, sindicalista; Catarina F. Rocha – estudante; Catarina Fernandes – animadora sociocultural, estagiária; Catarina Guerreiro – estudante; Catarina Lobo – estudante; Celina da Piedade – música; Chullage - sociólogo, músico; Cláudia Diogo – livreira; Cláudia Fernandes – desempregada; Cristina Andrade – psicóloga; Daniel Sousa – guitarrista, professor; Duarte Nuno - analista de sistemas; Ester Cortegano – tradutora; Fernando Ramalho – músico; Francisca Bagulho – produtora cultural; Francisco Costa – linguista; Gui Castro Felga – arquitecta; Helena Romão – música, musicóloga; Joana Albuquerque – estudante; Joana Ferreira – lojista; João Labrincha – Relações Internacionais, desempregado; Joana Manuel – actriz; João Pacheco – jornalista; João Ricardo Vasconcelos – politólogo, gestor de projectos; João Rodrigues – economista; José Luís Peixoto – escritor; José Neves – historiador, professor universitário; José Reis Santos – historiador; Lídia Fernandes – desempregada; Lúcia Marques – curadora, crítica de arte; Luís Bernardo – estudante de doutoramento; Maria Veloso – técnica administrativa; Mariana Avelãs – tradutora; Mariana Canotilho – assistente universitária; Mariana Vieira – estudante de doutoramento; Marta Lança – jornalista, editora; Marta Rebelo – jurista, assistente universitária; Miguel Cardina – historiador; Miguel Simplício David – engenheiro civil; Nuno Duarte – artista; Nuno Leal – estudante; Nuno Teles – economista; Paula Carvalho – aprendiz de costureira; Paula Gil – Relações Internacionais, estagiária; Pedro Miguel Santos – jornalista; Ricardo Araújo Pereira – humorista; Ricardo Lopes Lindim Ramos – engenheiro civil; Ricardo Noronha – historiador; Ricardo Sequeiros Coelho – bolseiro de investigação; Rita Correia – artesã; Rita Silva – animadora; Salomé Coelho – investigadora em Estudos Feministas, dirigente associativa; Sara Figueiredo Costa – jornalista; Sara Vidal – música; Sérgio Castro – engenheiro informático; Sérgio Pereira – militar; Tiago Augusto Baptista – médico, sindicalista; Tiago Brandão Rodrigues – bioquímico; Tiago Gillot – engenheiro agrónomo, encarregado de armazém; Tiago Ivo Cruz – programador cultural; Tiago Mota Saraiva – arquitecto; Tiago Ribeiro – sociólogo; Úrsula Martins – estudante