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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O retrato, em Chuva e outras novelas, de Somerset Maugham

 

            A preocupação de Somerset Maugham com o retrato está bem patente no prefácio às “Seis novelas escritas na primeira pessoa do singular” – prefácio e novelas que constam do volume Chuva e Outras Novelas, edição “Livros do Brasil”. Nesse texto, depois de uma esclarecedora explanação didáctica sobre o ponto de vista ou foco narrativo, Maugham debruça-se sobre a questão do retrato:

 

            “(...) fui acusado várias vezes de retratar certas pessoas com tanta exactidão que não se podia deixar de as reconhecer.” (58)

 

            Algumas linhas mais abaixo, acrescenta:

 

            “Creio mesmo que a maioria dos romancistas, e, sem dúvida alguma, os melhores dentre eles, trabalhou sobre modelos vivos. Mas, embora tivessem em mente uma pessoa determinada, isto não equivale a dizer que a houvessem copiado ou que a personagem deva ser tomada como um retrato. Antes de mais nada, eles viram-na através do seu temperamento e, se são escritores originais, isto quer dizer que o que viram difere um tanto da realidade. Aproveitavam da pessoa real apenas aquilo de que necessitavam. Usavam-na como um cómodo cabide em que penduravam as suas fantasias.” (58,59)

 

            Claro que, se estas considerações abarcam o retrato físico, elas contemplam sobretudo o retrato psicológico. Há, contudo, um passo significativo de uma das seis novelas em que o escritor se refere explicitamente ao retrato físico. Passo a transcrevê-lo:

 

            “Comecei a pensar na dificuldade de descrever a aparência das pessoas de tal maneira que as façamos ver ao leitor tal como nós próprios as vemos. Para mim, esse foi sempre um dos aspectos mais difíceis da ficção. Qual é, na realidade, a impressão deixada ao leitor pela descrição de um rosto, traço por traço? Quer-me parecer que é nula. E, no entanto, o método adoptado por certos escritores – tomar alguma característica saliente, um sorriso de viés ou uns olhos fugidios, e acentuá-la –, esse método, embora eficaz, contorna o problema, em vez de o resolver. Olhei em torno de mim para ver como descreveria as pessoas que me cercavam. Tinha à minha frente um homem sozinho; escolhi-o. Era um tipo alto e magro, desses que é costume chamar desengonçados. Vestia dinner-jacket e camisa de peitilho engomado. Tinha um rosto um tanto comprido e olhos de cor clara, o cabelo alourado e ondulado começava a rarear e as entradas nas têmporas davam-lhe certa nobreza à fronte [suprimo oito linhas de descrição] (...). Mas do que eu não fazia a menor ideia era de como descrevê-lo em algumas pinceladas que formassem um quadro interessante, vivo e exacto. Talvez fosse preferível largar de mão tudo o mais, para me demorar naquele ar de distinção fatigada que era, em suma, a impressão mais definida que se tinha dele.” (130, 131)

 

            Esta hesitação relativamente ao método a adoptar não impede que, mais à frente, na mesma novela, Maugham reincida no retrato físico:

 

            “Estava vestida de branco. Tinha os braços, o rosto e o pescoço fortemente bronzeados pelo Sol; os seus olhos pareceram-lhe mais azuis e a alvura dos seus dentes era extraordinária. Tinha um ar de saúde exuberante. Vestia com muito bom gosto, trazia o cabelo ondulado e as unhas bem tratadas.” (149)

 

            Ora as personagens assim retratadas são as protagonistas da novela “O elemento humano”, que passo a resumir:

 

            O diplomata Humphrey Carruthers, do Foreing Office, aspira à mão da bela, truculenta e aristocrática Elizabeth, filha do duque de St. Erth, que todavia se casa com outro homem, por sinal insignficante. Após o falecimento deste, Humphrey volta a requestar Betty, que vive em Rodes, mas esta mostra-se avessa a uma nova união e dá mostras de se sentir bem na sua mansão, rodeada de criados e de Albert, o motorista. Uma noite, durante uma sua estada em Rodes, a convite de Betty, Humphrey descobre que, afinal, Betty é amante de Albert. Apesar disso, Humphrey pede-a em casamento, mas Betty mantém a recusa.

 

            O “ar de saúde exuberante” de Elizabeth dificilmente se casaria com o “ar de distinção fatigada” de Humphrey...

 

***

 

            Em “Chuva”, os Davidson, casal de missionários muito estritos no capítulo dos costumes, viajam no Pacífico com destino a Ápia (Samoa) e são obrigados a permanecer algum tempo em Paga-paga, devido a um surto de sarampo. Rapidamente, ele descobre que uma jovem companheira de viagem, miss Sadie Thompson, é uma prostituta do bas-fond de Honolulu. Empreende então a tarefa de a reconduzir ao caminho da rectidão, perseguindo-a incansavelmente. Parece tê-lo conseguido, quando o seu suicídio vem revelar que, afinal, sob a capa do rigorismo moral, o senhor Davidson sucumbira à lascívia.”

 

            Como nos descreve Maugham este anjo cuja rigidez de princípios não obsta a uma fragorosa queda? Assim:

 

            “O missionário era uma criatura silenciosa e taciturna. Sentia-se que a sua afabilidade era um dever que a ele próprio se impunha, como bom cristão; era um reservado, por natureza, e mesmo áspero. Tinha um aspecto singular. Muito alto e magro, as suas pernas eram longas e de articulações fracas; as faces escavadas e de zigomas curiosamente salientes. Tinha um ar de tal modo cadavérico que todos ficavam surpreendidos ao ver naquele rosto uns lábios tão grossos e sensuais. Davidson usava a cabeleira muito longa. Tinha olhos escuros, metidos em órbitas fundas, grandes e trágicos; e as mãos, de dedos grandes e longos, finamente modeladas, davam-lhe um aspecto de grande força. Mas o que havia de mais notável naquele homem era a sensação que ele dava de fogo abafado. Era uma coisa impressionante e vagamente perturbadora. Ali estava uma pessoa com quem a intimidade era impossível.” (12)

 

            Afinal, a intimidade foi possível, como o indiciariam os lábios grossos e sensuais, a desmentirem o ar cadavérico, ou a sensação de fogo abafado, metáfora transparente da libido recalcada.

 

***

           

            Charlie Bishop e Margery Hobson formam um casal muito unido, na novela “A virtude”. A felicidade que exibem é tal que ninguém julgaria possível aquele casamento poder um dia acabar. Porém, esse dia chega quando Margery, que não quer enganar Charlie, lhe anuncia a sua decisão de ir viver com o jovem Gerry Morton, por quem se apaixonara. Charlie, que até então seguira com irónico interesse e distância o envolvimento ambíguo da mulher com aquele jovem, suicida-se e Margery não logra juntar-se a Morton, que entretanto voltara a Bornéu, colónia onde estava radicado. Para o narrador, Margery teria sido mais “virtuosa” fazendo-se amante de Morton e deixando Charlie na ignorância do facto, o que lhe teria permitido continuar vivo e feliz.

 

            A cumplicidade do narrador (e, neste caso, com grande probabilidade, do autor) para com a personagem Margery transparece em descrições como estas:

 

            “Margery não era bonita, mas a sua bondade, o seu ar saudável davam, se não a ilusão de que o era, pelo menos a impressão de que isso não tinha nenhuma importância” (74, 75).

 

            “Nunca fora bonita e não mudara muito com os anos. Ainda tinha aqueles belos olhos escuros e era pasmoso notar a completa ausência de rugas no seu rosto. Estava vestida com muita simplicidade e, se tinha posto alguma pintura, fizera-o com tal habilidade que nada percebi. Ainda possuía o mesmo encanto, composto de uma naturalidade perfeita e de uma índole bondosa” (87).

 

            À cumplicidade do narrador para com a sua personagem há que juntar, contudo, as características da própria personagem, que não era bonita, fisicamente, mas cuja simplicidade, naturalidade e autenticidade lhe conferem a virtude da beleza interior – qualidade esta que estará na origem do desfecho trágico da novela.

 

***

 

                        Em “Para completar a dúzia”, Eleanor Porchester é uma recatada donzela de cinquenta e quatro anos que desistira do casamento em jovem, por o noivo a ter traído. Vive desde então qual adolescente na estreita dependência dos tios, senhor e senhora St. Clair, extremamente formais e conservadores. Estão agora de férias em Elsom, praia do Sul da Inglaterra, onde também se encontra Mortimer Ellis. Já condenado e detido por bigamia (casara-se onze vezes), este “conhecido bígamo” perfaz uma dúzia de casamentos ao seduzir Eleanor Porchester.

 

            Eleanor é descrita nestes termos:

 

                        “A mulher mais nova estava de costas para mim e, a princípio, só pude reparar que ela possuía uma figura esbelta e juvenil. Os seus cabelos castanhos e abundantes pareciam dispostos num penteado complicado. Usava um vestido cor de cinza. Os três palravam, em voz baixa, e pouco depois ela voltou a cabeça, dando-me um ensejo de lhe ver o perfil. Era de uma beleza surpreendente, o nariz recto e delicado, o contorno da face modelado com perfeição. Notei então que ela penteava o cabelo à moda da rainha Alexandra. Por fim o jantar terminou e o grupo levantou-se. A velha senhora retirou-se majestosamente da sala, sem olhar para os lados, e a outra seguiu-a. Só então percebi, com um choque, que era velha. O seu vestido era bastante simples, a saia mais comprida do que se usava na ocasião, e havia no corte qualquer coisa de levemente démodé; creio que o talhe era acentuado de mais. Não deixava de ser, contudo, um vestido de jovem. Ela era alta, como uma heroína de Tennyson, delgada, de pernas longas e porte gracioso. Eu já tinha visto aquele nariz nas estátuas de deusas gregas. A boca era de pronunciada beleza e os olhos, grandes e azuis. A pele, naturalmente, esticava-se um pouco sobre os ossos e havia rugas na testa e em volta dos olhos, mas na mocidade devia ter sido maravilhosa” (103,104).

 

            Neste caso, o narrador arrasta demoradamente o seu pincel de pintor-descritor sobre a tela da narrativa, como que gozando antecipadamente o prazer perverso de entregar às garras do bígamo esta presa fácil e apetecível: Eleanor Porchester estava fadada para ser a décima-segunda esposa de Mortimer Ellis.

 

***

 

            Em “Jane”, quando a quinquagenária viúva Mrs. Jane Fowler, personagem algo grotesca, anuncia a Mrs. Tower, sua cunhada da mesma idade, a intenção de se casar novamente, esta imagina-lhe um noivo velho e barrigudo. Mas engana-se. Na verdade, Jane casa-se com o jovem arquitecto Gilbert Napier, vinte e sete anos mais novo. A cunhada censura-a asperamente e alerta-a para a evidência de ser o jovem um caçador de fortunas, o que Jane contraria com o argumento de que Gilbert recusara a sua oferta de uma renda anual de mil libras.

            Dois anos volvidos, o narrador, entretanto regressado do Extremo Oriente, fica a saber, por intermédio de Mrs. Tower, que o casamento é um êxito e pode avaliar, no decurso de um jantar, a surpreendente capacidade de Jane para encantar os convivas, com a sua simplicidade e os seus chistes (pouco menos do que anódinos).

            Um ano mais tarde, porém, Mrs. Tower dá a esperada notícia da separação ao narrador. Só que, contrariando todas as expectativas, não foi o jovem marido quem trocou a quinquagenária por uma moça, mas sim aquela que o trocou por um almirante – sir Reginald Frobisher. Isto porque “os jovens são muito falhos de assunto”.

 

            O carácter algo dúbio da personagem Jane, do ponto de vista da capacidade intelectual, impregna toda a narrativa e, mais uma vez, transparece na descrição do aspecto de Jane no dia do casamento com Gilbert:

 

            “Envergava um vestido muito rodado de veludo cinzento-prateado, em cujo corte reconheci a mão da modista de Liverpool (evidentemente uma viúva de moralidade irrepreensível), que havia tantos anos fazia os seus trajos; mas, em atenção ao carácter alegre da cerimónia , levava um chapéu preto de abas largas, coberto de penas azuis de avestruz, que os seus óculos de aros de ouro tornavam extraordinariamente grotesco” (178).

 

            Subsidiariamente, as penas de avestruz remetem para a ideia do voo, ainda que curto e desajeitado, no qual talvez não seja de todo forçado ver uma aproximação metafórica da guinada afectiva de Jane.

 

***

 

            Em “A semente exótica”, o jovem George Bland, primogénito de um casal da alta burguesia, recusa enveredar pela carreira das armas, como seria desejo dos pais. A muito custo e a pretexto de ir estudar alemão, George consegue viajar para Munique. Na realidade, é piano que estuda, o que enfurece o pai, a ponto de lhe retirar a mesada.

            A paixão de George pelo piano é tal que os pais são forçados a negociar com ele uma solução de compromisso: George permanecerá dois anos em Munique; findo esse prazo, regressará à casa paterna e será ouvido por uma pessoa competente; se for aprovado, seguirá a sua vocação; caso contrário, seguirá a carreira parlamentar.

            Infelizmente, o veredicto da pianista Lea Makart é muito pouco favorável e George suicida-se.

 

            Porque se está perante um naipe de personagens de sangue semita, algumas das quais se esforçam por ocultar essa condição, as descrições abundam. Três exemplos apenas:

 

“[Freddy] contava então cinquenta e poucos anos. Era um homem de maneiras tranquilas, polido, muito inteligente segundo suponho, mas um tanto reservado. Vestia com elegância refinada, mas não era uma elegância inglesa; tinha cabelos grisalhos, uma curta barba em ponta, também grisalha, belos olhos escuros e nariz aquilino. A sua estatura era pouco superior à média; não creio que o tivessem tomado por um judeu, mas antes por um diplomata estrangeiro de certa eminência” (204).

 

(...)

 

“George era tão alto e esbelto, os seus cabelos crespos, de um castanho claro eram tão bonitos e os seus olhos tão azuis que constituía o tipo perfeito do jovem inglês. Tinha a cativante franqueza do nosso povo. O seu nariz era recto, talvez um pouco carnudo, e os lábios talvez um pouco cheios e sensuais, mas tinha belos dentes e a pele lisa parecia de marfim. George era a menina dos olhos do pai, que gostava menos de Harry, o segundo filho. Este era bastante atarracado, espadaúdo e muito robusto para a idade, mas os seus olhos negros, brilhantes de sagacidade, os cabelos pretos e o narigão denunciavam a raça” (205).

 

(...)

 

“Muriel era uma loura alta e corpulenta e dava-se muito trabalho para combater a sua predisposição à obesidade. Tinha sido muito bonita em nova e ainda era uma mulher de agradável aparência; mas os seus olhos azuis e redondos, um pouco proeminentes, o nariz carnudo, a forma do rosto e da nuca, os modos exuberantes, traíam-lhe a raça. Nenhuma inglesa, por loura que fosse, teria jamais aquele aspecto” (207).

 

***

                       

            Na novela “O impulso criador”, última do livro, há apenas dois retratos: o da senhora Albert Forrester e o de um passageiro do eléctrico em que a senhora viaja. Uma breve apresentação da história permitirá ajuizar da importância destes retratos na economia da narrativa:

 

            A sr.ª Albert Forrester, autora algo frívola de livros de poesia e de ensaios aplaudidos pela crítica, mas ignorados do público, é casada com um homenzinho insignificante, alvo da comiseração irónica dos intelectuais que lhes frequentam a casa. Mas esta personagem apagada resolve um dia surpreender, fugindo com a cozinheira, sr.ª Bulfich.

            Quando, por sugestão dos amigos e para abafar o escândalo, a sr.ª Forrester vai ao encontro do fugitivo e da rival, não os consegue demover da sua resolução de viverem juntos, mas tem com ambos uma inspiradora conversa acerca de romances policiais – género de que o sr. Forrester e a cozinheira são fervorosos apreciadores. Graças a esta conversa, a sr.ª Forrester escreve o seu primeiro romance policial, que lhe dará, pela primeira vez, o reconhecimento do público, que não apenas da crítica.

 

            Veja-se agora como o retrato desta mulher pode iluminar as razões do marido:

 

            “Era a sr.ª Albert Forrester uma mulher de presença autoritária. Tinha os ossos graúdos e bem providos de carne; se não fosse tão alta e forte teria parecido corpulenta. Mas carregava todo esse peso com donaire. As suas feições eram um pouco maiores do que o normal e isso, por certo, é que lhe dava ao rosto aquele ar de intelectualidade varonil que ele, indubitavelmente, possuía. Tinha a pele clara e podia imaginar-se que ela tinha nas veias um traço de sangue levantino: dizia suspeitar que algum dos seus antepassados tivesse sido cigano, o que explicaria, no seu modo de ver, o ímpeto selvagem e desenfreado que às vezes caracterizava a sua poesia. Tinha olhos rasgados, negros e brilhantes, o nariz como o do grande Duque de Wellington, apenas mais carnudo, o queixo forte e decidido. A boca era grande, de lábios cheios e vermelhos que nada deviam à pintura, pois a sr.ª Albert Forrester nunca se dignara fazer uso desta; e o cabelo, espesso, sólido e grisalho, era empilhado no alto da cabeça, aumentando a sua já respeitável altura. Em suma, era uma mulher de aparência imponente, para não dizer assustadora” (249).

 

***

 

            O esmero que Maugham põe no retrato e as preocupações de ordem teórica que expõe fazem obviamente todo o sentido no contexto da ficção naturalista ou aparentada. Se, em tendências posteriores da narrativa, o retrato físico perdeu parte da sua importância, em Maugham ele escora-a, conferindo densidade e autenticidade às personagens e interagindo com a acção.