Uma mão cheia de multimilionários franceses, na esteira de um norte-americano, deu-se ultimamente conta de que talvez não estivesse a pagar a crise na mesma medida em que é forçado a fazê-lo o comum dos mortais. Vai daí, decidiram os ditos cidadãos interpelar o poder político com uma vibrante chamada de atenção: vá lá, deixem de nos apaparicar, que nós também podemos fazer uns sacrificiozinhos para o bem comum. Ficámos assim a saber – aqueles que ainda tivéssemos dúvidas – que, nisto dos sacrifícios, há uns a quem se não pergunta se concordam, antes de se lhos imporem, e outros que se vêem constrangidos a rogarem-nos por especial deferência. Os economistas e comentadores do costume, esses, não tardaram a explicar ao povo ignaro, com um arrasador argumentário académico e a lógica demolidora dos compêndios neo-liberais, que os nossos ricos pouco mais são do que pessoas remediadas, além de que os benefícios da taxação das suas fortunas seriam inferiores às perdas geradas pela fuga de capitais. E o povo ignaro que somos ouve aquilo e diz para com os seus botões que se calhar é mesmo assim, o melhor é a gente aquietar-se, aqueles senhores falam tão bem. Mas às vezes este apaziguamento não dura e uma ideia negra fica a remorder-lhe o espírito, rouba-lhe a paz da alma: não será que os move o medo de virem a perder tudo, tal é o desconcerto social, de tal modo que até preferem dar o que os seus homens de serviço no governo se escusaram a pedir-lhes até agora? É. A História contém alguns exemplos elucidativos sobre o que às vezes acontece quando já nada há a perder. Mesmo assim, entre nós, a ideia dos multimilionários estrangeiros teve um acolhimento que não se pode dizer entusiástico, e é de crer que o actual conselho de administração dos interesses do grande capital adopte legislação que, sem pôr em risco a sobrevivência dos pobres ricos, dê ao povo ignaro a ilusão de que eles também estão a pagar a crise e até contribuindo mais do que os trabalhadores. Com o que, mais uma vez, terá atingido o seu objectivo permanente: enganar-nos, desmobilizar-nos, manter a nossa raiva dentro dos limites do plausível, para que a crise possa continuar a grassar e a destruir vidas, e para que os ricos possam ser cada vez mais ricos, ainda que, por vezes, tenham de prescindir filantropicamente de 0,8 a 1,2% dos seus rendimentos.
(No centenário de Alves Redol e de Manuel da Fonseca)
No ano em que se assinala o centenário de Alves Redol e de Manuel da Fonseca, o Jornal de Letras n.º 1066 publica quatro excelentes textos sobre os dois expoentes do neo-realismo português, textos que, de maneira diversa, prosseguem o velho debate em torno das virtudes, potencialidades, valor intrínseco e limitações do neo-realismo, equacionando o jogo dialéctico para que remete o título deste post.
Carlos Reis omite o enquadramento sócio-político que explica a emergência deste movimento na década de 40 do século XX, para se fixar nos desenvolvimentos posteriores e nos juízos que esses desenvolvimentos permitem formular acerca do movimento que os precedeu. Esboça depois a complexa trama de tensões de carácter estético-literário e político-ideológico espoletada por uma produção que, sendo literária, era também escrita “de testemunho”, “documentário humano” nas palavras do próprio Redol, opondo-se, de algum modo, à literatura-literatura. Quando, em 1965, se pronuncia sobre a génese de Gaibéus, Redol adopta, segundo C. R., uma postura de distanciamento perante um movimento que “olhava já como passado”, e, pela mesma altura, envereda por caminhos estéticos que o afastam do que se considera ser a estreita ortodoxia neo-realista (Barranco de Cegos, 1962). Fora do movimento, poesia e ficção conhecem rumos irredutíveis às suas concepções, por exemplo com Vergílio Ferreira e Agustina Bessa-Luís. Quanto às “tensões internas”, Reis assinala que, já em 1943, aquando da publicação de Cerromaior, Manuel da Fonseca fora alvo de censura, por via dos “fantasmas do psicologismo e do intimismo”, categorias de certo modo avessas às razões do empenhamento social.
Se em Carlos Reis transparece um juízo negativo, ainda que densamente matizado e atenuado por considerações de carácter objectivo, já em Alzira Seixo sobreleva a adesão afectiva aos fundamentos e às realizações do neo-realismo. À pergunta “a arte representa o mundo ou produz um mundo próprio?”, o neo-realismo responde com a primeira das opções e acrescenta-lhe uma outra componente – a intervenção. Ora, na perspectiva de Alzira Seixo, longe de ter conduzido a arte a um hipotético abastardamento, o neo-realismo renovou-a. De Fonseca, elogia o “encanto [que] vem da discreta beleza sentida nas exiguidades, de cariz humano e social, imperfeições discretas que certa grandeza moral e a estesia apurada ante lugares e atitudes transpõem em ritmos verbais de manso sortilégio.” E de Redol, diz que lê-lo “é vivenciar situações de um Portugal diverso, em diversas experiências narrativas, a que liga, por vezes, prefácios reflexivos esclarecedores, que desmentem o estereótipo da cópia de um real interpretado e só depois descrito.” Isto é, mais uma vez, a afirmação da irredutível liberdade criadora do artista, ainda quando activamente comprometido com um ideal de transformação social que impunha (impõe) sérias restrições às veleidades de afirmação individual.
A este comprometimento se refere também Violante Magalhães, quando sublinha que Redol “[perseguiu] incansavelmente o sentido emancipatório do trabalho intelectual e da cultura”, “[condenando, na esteira de Plekhanov] uma arte que fosse um mero ‘prazer estéril’ e que não contribuísse ‘para o desenvolvimento da consciência e para melhorar a ordem social’”. Aliás, à adesão ideológica associa Redol o factor experiência, deslocando-se aos locais onde vivia e labutava o povo que, depois, fazia matéria dos seus romances, ou não estivesse envolvido numa “aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura”, conforme escreve no prefácio à 6.ª edição de Gaibéus, de 1965, texto já atrás mencionado a propósito do artigo de Carlos Reis. Nesta batalha e no conjunto da sua produção, não há “qualquer viragem ideológica” (entrevista de 1963), mudança porventura insinuada pela “maior atenção [prestada a partir de 1941, como o notou Óscar Lopes] à dialéctica pessoal da conduta, à entredeterminação de uma personagem e da sua história”.
Carina Infante do Carmo insurge-se contra os “lugares-comuns repetidamente associados a este movimento literário”, escorando-se, por um lado, no facto de Manuel da Fonseca ter “[recriado] a cidade moderna e desumana – a inconformidade existencial, o abandono, a alienação, a náusea – que não preocupara muito os neorrealistas”, por outro, na “realização polifónica e mais heterogénea do que habitualmente se julga” que é a produção poética do neo-realismo. É que, não obstante ser “assolada pelo remorso ou pela autoconsciência dos limites do canto para reverter a (des)ordem social”, pese embora “não [prescinda] do sentido político que a poesia também tem”, é “música de câmara, discreta, grave”, no dizer de Eduardo Lourenço, a poesia de Manuel da Fonseca. Carina Infante do Carmo rebate ainda o “cliché da marginalidade neorrealista em relação à família do modernismo, por excesso de sentido ideológico e pouca interrogação sobre a matéria linguística”, aduzindo argumentos como sejam o afloramento, na obra de Fonseca, do “eco da vida como navegação e da errância marítima como metáfora de Álvaro de Campos”, mas também o emparceirar de Fonseca com representantes de um “modernismo que não radicalizou o processo poético”, antes fez coexistir a linguagem das emoções com a representação do “quotidiano mais anódino”.