Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O BCE explicado como se fosse às crianças

         Copiado da minha caixa de correio electrónico e colado no blog este didáctico diálogo a fazer lembrar o catecismo do trabalhador de Paul Lafargue:

 

 

O que é o BCE?

- O BCE é o banco central dos Estados da UE que pertencem à zona euro, como é o caso de Portugal.

E de onde veio o dinheiro do BCE?

- O dinheiro do BCE, ou seja o capital social, é dinheiro de todos nós, cidadãos da UE, na proporção da riqueza de cada país. Assim, à Alemanha correspondeu 20% do total.
Os 17 países da UE que aderiram ao euro entraram no conjunto com 70% do capital social e os restantes 10 dos 27 Estados da UE contribuíram com 30%.

E é muito, esse dinheiro?

- O capital social era 5,8 mil milhões de euros, mas no fim do ano passado foi decidido fazer o 1º aumento de capital desde que há cerca de 12 anos
o BCE foi criado, em três fases. No fim de 2010, no fim de 2011 e no fim de 2012 até elevar a 10,6 mil milhões o capital do banco.

Então, se o BCE é o banco destes estados pode emprestar dinheiro a Portugal, ou não? Como qualquer banco pode emprestar dinheiro
a um ou outro dos seus accionistas.

- Não, não pode.

Porquê?!

- Porquê? Porque... porque, bem... são as regras.

Então, a quem pode o BCE emprestar dinheiro?

- A outros bancos, a bancos alemães, bancos franceses ou portugueses.

Ah percebo, então Portugal, ou a Alemanha, quando precisa de dinheiro emprestado não vai ao BCE, vai aos outros bancos que por sua vez vão ao BCE.

- Pois.

Mas para quê complicar? Não era melhor Portugal ou a Grécia ou a Alemanha irem directamente ao BCE?

- Bom... sim... quer dizer... em certo sentido... mas assim os banqueiros não ganhavam nada nesse negócio!

Agora não percebi!!...

- Sim, os bancos precisam de ganhar alguma coisinha. O BCE de Maio a Dezembro de 2010 emprestou cerca de 72 mil milhões de euros
a países do euro, a chamada dívida soberana, através de um conjunto de bancos, a 1%, e esse conjunto de bancos emprestaram
ao Estado português e a outros Estados a 6 ou 7%.

Mas isso assim é um "negócio da china"! Só para irem a Bruxelas buscar o dinheiro!

- Não têm sequer de se deslocar a Bruxelas. A sede do BCE é na Alemanha, em Frankfurt. Neste exemplo, ganharam com o empréstimo
a Portugal uns 3 ou 4 mil milhões de euros.

Isso é um verdadeiro roubo... Com esse dinheiro escusava-se até de cortar nas pensões, no subsídio de desemprego ou de nos tirarem parte do 13º mês.

-As pessoas têm de perceber que os bancos têm de ganhar bem, senão como é que podiam pagar os dividendos aos accionistas e aqueles ordenados
aos administradores que são gente muito especializada.

Mas quem é que manda no BCE e permite um escândalo destes?

- Mandam os governos dos países da zona euro. A Alemanha em primeiro lugar que é o país mais rico, a França, Portugal e os outros países.

Então, os governos dão o nosso dinheiro ao BCE para eles emprestarem aos bancos a 1%, para depois estes emprestarem a 5 e a 7% aos governos
que são donos do BCE?

- Bom, não é bem assim. Como a Alemanha é rica e pode pagar bem as dívidas, os bancos levam só uns 3%.
A nós ou à Grécia ou à Irlanda que estamos de corda na garganta e a quem é mais arriscado emprestar, é que levam juros a 6%, a 7 ou mais.

Então nós somos os donos do dinheiro e não podemos pedir ao nosso próprio banco!...

- Nós, qual nós?! O país, Portugal ou a Alemanha, não é só composto por gente vulgar como nós. Não se queira comparar um borra-botas qualquer
que ganha 400 ou 600 euros por mês ou um calaceiro que anda para aí desempregado, com um grande accionista que recebe 5 ou 10 milhões de dividendos por ano, ou com um administrador duma grande empresa ou de um banco que ganha, com os prémios a que tem direito, uns 50, 100,
ou 200 mil euros por mês. Não se pode comparar.

Mas, e os nossos governos aceitam uma coisa dessas?

- Os nossos Governos... Por um lado, são, na maior parte, amigos dos banqueiros ou estão à espera dos seus favores,
de um empregozito razoável quando lhes faltarem os votos.

Mas então eles não estão lá eleitos por nós?

- Em certo sentido, sim, é claro, mas depois... quem tem a massa é quem manda. É o que se vê nesta actual crise mundial, a maior de há um século para cá.

Essa coisa a que chamam sistema financeiro transformou o mundo da finança num casino mundial, como os casinos nunca tinham visto nem suspeitavam,
e levou os EUA e a Europa à beira da ruína. É claro, essas pessoas importantes levaram o dinheiro para casa e deixaram a gente como nós,
que tinha metido o dinheiro nos bancos e nos fundos, a ver navios. Os governos, então, nos EUA e na Europa, para evitar a ruína dos bancos
tiveram de repor o dinheiro.

E onde o foram buscar?

- Onde havia de ser!? Aos impostos, aos ordenados, às pensões. De onde havia de vir o dinheiro do Estado?...

Mas meteram os responsáveis na cadeia?

- Na cadeia? Que disparate! Então, se eles é que fizeram a coisa, engenharias financeiras sofisticadíssimas, só eles é que sabem aplicar o remédio,
só eles é que podem arrumar a casa. É claro que alguns mais comprometidos, como Raymond McDaniel, que era o presidente da Moody"s,
uma dessas agências de rating que classificaram a credibilidade de Portugal para pagar a dívida como lixo e atiraram com o país ao tapete,
foram... passados à reforma. Como McDaniel é uma pessoa importante, levou uma indemnização de 10 milhões de dólares a que tinha direito.

E então como é? Comemos e calamos?

- Isso já não é comigo, eu só estou a explicar...

 

 

 

Cumprimentos

Mário Malheiro

Focor - Produtos Quimicos, S.A.

E sabe ele o seu português?

            Georges Mounin é o autor de um conhecido ensaio que tem por título Les Problèmes Théoriques de la Traduction. A “Advertência” que António Feliciano de Castilho faz preceder a sua tradução do Fausto, texto que citei no post anterior, não tendo nem a natureza, nem a envergadura de um ensaio sobre a prática da tradução, bem poderia chamar-se Os Problemas Práticos da Tradução. Eis como Castilho expõe o seu método de trabalho, quando procedia, com o irmão José, à tradução do poema de Goethe:

            “Estão simultaneamente abertas à roda de nós a tradução textual e ilustrativa do Sr. Laemmert, a de meu irmão, em certo modo filha da precedente, a portuguesa do Sr. Ornellas, e quatro francesas em prosa raro entremeada de pequenos trechos em verso. Sobre cada período do poeta alemão são sucessivamente chamados a depor todos estes sete intérpretes e acariados uns com os outros com a maior severidade da crítica”.

            Mais à frente, expõe a sua concepção do tradutor, desculpando a sua ignorância do alemão com numerosos exemplos de tradutores que ignoravam a língua dos textos que traduziram:

            “Monti, que deu à Itália   a melhor tradução da Ilíada, pelo menos a que se lê com maior gosto, não sabia o grego.

            “Os salmos de David, centenares de vezes passados a diversas línguas por poetas excelentes, nunca talvez o foram do poema original.”

            Dá ainda mais exemplos curiosos de tradutores que, como ele mesmo, desconheciam totalmente a língua em que originalmente foram escritos os textos que traduziram, e remata assim: “Por aqui me cerro, ponderando só que me parece questão ociosa esta de se perquirir se um tradutor sabe ou não a língua do seu original; o que importa, e muito, é se expressou bem na sua, isto é, com vernaculidade, clareza, acerto e a elegância possível, as ideias e afectos do seu autor”.

Dificuldades do Fausto, de Goethe

            Finalmente, consegui ler o Fausto. Todo. Primeira e segunda parte. Numa edição do jornal Público, que reproduz a tradução de Agostinho d’Ornellas, editada pelo Professor Paulo Quintela. Mas custou. De tal maneira que me auto-inquiri: serei apenas vítima da minha escassa capacidade de discernimento ou é o texto que muitas vezes peca por falta de clareza, sobretudo na segunda parte? Em abono da segunda tese, há até um número significativo de gralhas nesta edição barata. Quem sabe se, para além das que facilmente detecto, não haverá outras, mais subtis, que produzem frases vazias de sentido ou contra-sensos que, incapaz de entender, me deixam com o pouco reconfortante sentimento de que sou inepto? E foi moderadamente angustiado com estas dúvidas mais ou menos metódicas que fui à procura de outra tradução da tragédia na net. Encontrei-a no eBooksBrasil e é de António Feliciano de Castilho, o nosso aedo que os jovens da geração de 70 maltrataram um pouco aquando da Questão Coimbrã.

 

Que diz Castilho do poema de Goethe, na “Advertência” que precede a sua tradução? Depois de considerações sobre “as trevas e monstros desta cordilheira de poesia rebentada a súbitas de profundezas desconhecidas” e um “sem conto de dificuldades de que o poema original nasceu inçado e ouriçado para os seus próprios conterrâneos”, refere-se à tentativa pioneira do seu irmão José Feliciano de Castilho, cujo conhecimento do alemão, suficiente para traduzir Schiller e Klopstock, “não bastava para autor tão abstruso no pensamento, tão fora do comum no estilo, e tão cheio de nós górdios na linguagem”. Como se não bastassem estes juízos de valor sobre a linguagem do poema de Goethe para me tranquilizarem quanto aos meus dotes intelectuais, Castilho celebra a competência do Sr. Eduardo Laemmert, erudito, profundo conhecedor do alemão e do português, que, na sua “tradução interlinear e fidelíssima” do Fausto, “depois de colocar as palavras portuguesas na confusa ordem das alemãs as concerta fora do hipérbato segundo a nossa ordem usual (...)” E mais elogia “a franqueza de verdadeiro sabedor, com que às vezes declara que não aventa o senso ou a intenção do seu poeta, senso e intenção que os mais finos alemães não dissimulam escapar-lhes a miúdo ”. Mas não se fica por aqui Castilho na avaliação dos méritos do poema. Dando generosamente cobertura à minha reconhecida incapacidade para entender vários passos, sobretudo da segunda parte do poema, eis como ele se lhe refere, justificando o facto de apenas ter traduzido a primeira parte: “ao segundo Fausto, ao Fausto da velhice de Goethe, não me atrevi, seria esse um trabalho ainda mais fragoso (...). Na segunda parte, dizem alemães, é que o autor mais se despendeu em gentilezas e esmeros líricos. Pode ser; contemplado nos reflectores não o parece; e depois quando essas excelências acidentais e de mera forma, rara vez traduzíveis, sejam tais como no-las querem encarecer, tantos e tão crespos são no último Fausto os enigmas filosóficos, tão abstruso o senso das ficções, e as ficções mesmas tão desnaturais, tão inverosímeis, tão impossíveis (ia-me quase escapando tão absurdas) que o bom gosto e o bom senso, que tão benévolos perdoaram e receberam a lenda velha do Dr. Fausto, não sei como se haveriam com o Fausto último.”

 

Decididamente, Castilho tinha uma predilecção pela farpa do bom senso e bom gosto que lhe valeu a célebre altercação com Antero e Teófilo, mas, no caso do Fausto, creio que tem razão.

 

Posto isto, o que havemos de reter da leitura do poema? Aquilo que todos sabemos: o sábio Fausto, atormentado pela ideia da vacuidade do conhecimento

 

– “Nem chego a imaginar que haja ciência

Cousa alguma ensinar que aos homens sirva

E convertê-los possa ou melhorá-los” (vv. 393-395) –,

 

insatisfeito com a vida que leva

 

– “Seja qual for o trajo, sempre as penas

Hei-de sentir deste viver mesquinho.

Para brincar somente sou mui velho;

Para não desejar mui moço ainda.” (vv. 1563-1566)  –

 

e pouco preocupado com a “outra vida”

 

– “Pouca monta

O outro mundo tem pra mim; se este

For um dia ruínas, muito embora

venha outro depois! É desta terra

Que brotam meus prazeres, minhas penas

Este sol alumia. Quando deles

A separar-me chegue, então suceda

Seja o que for. E nem saber me importa

Se há ódio ou amor na outra vida,

Nem se existe lá nessas esferas

Região superior ao fundo abismo.” (vv. 1671-1681)  –

 

 faz um pacto com Mefistófeles, isto é, vende a alma ao Diabo, em troca do rejuvenescimento e do poder de fruir copiosamente da vida:

 

– “MEFISTÓFELES. (…)

Façamos o contrato! Com delícia

De meu poder verás as maravilhas:

Dar-te-ei o que homem nenhum viu. (vv. 1683-1685)

(…)

Atenta bem!: nós não o esqueceremos! (v. 1716)

(…)

 

FAUSTO. (…)

O que exiges de mim, maligno espírito?

Papel ou pergaminho? bronze ou mármore?

Que escreva com cinzel, buril ou pena?

Deixo-te livre a escolha.

 

MEFISTÓFELES. Porque hás-de

A tal ponto empolar tua facúndia?

Qualquer papel nos serve, se assinares

Com um pingo de sangue...” (vv. 1738-1744)  –

 

Assinado o pacto, Fausto recupera o viço da juventude e apaixona-se pela imagem de Margarida, que seduz, graças às malas-artes de Mefistófeles.

 

“Senhor pedante,

Deixe-me em paz com seus morais axiomas!

Aqui lho digo claro:  – Se inda hoje

Em meus braços não dorme a linda moça,

À meia-noite estamos separados! (vv. 2609-2613)”

 

A jovem é vítima da censura social e acaba encarcerada. Fausto, atormentado pelo remorso, esforça-se por salvá-la, porém Margarida morre. E é este Fausto arrependido e resgatado pelo amor que continuará a aperfeiçoar o seu ser, na segunda parte do poema-tragédia, sempre tentado por Mefistófeles, que, assim, acaba por não lhe ganhar a alma.

            Provindo a lenda do Dr. Fausto da Baixa Idade Média (segunda metade do século XV), não será de estranhar a problemática religiosa que embebe todo o poema e não raro suscita a lembrança do nosso Gil Vicente, provável contemporâneo do Fausto histórico. Também o humanismo renascentista, que transparece na curiosidade intelectual de Fausto, faz sentido naquele avizinhar do século XVI para que a lenda remete. Mas o poema é de Goethe e Goethe remete-nos para a complexa teia de tendências culturais que caracterizou os últimos decénios do século XVIII e as primeiras do XIX na Alemanha – classicismo, Sturm und Drang/romantismo. É neste ambiente que Fausto, a personagem, nos aparece com a carga de símbolo do próprio homem, alvo de pulsões contraditórias, mas capaz de se superar, indo sempre mais além.