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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O Partido Comunista da Grécia entre duras batalhas eleitorais

As burguesias nacionais encontram sempre formas engenhosas de enganar os povos. Quando a “esquerda” “socialista” cai no descrédito, é a “esquerda radical” que lhe serve de instrumento para assegurar a manutenção do status quo. Bem elucidativo este texto do Partido Comunista da Grécia (http://www.odiario.info/?p=2498) sobre esta versatilidade política da burguesia. E sobre a capacidade mistificadora da linguagem.

 

 

Secção Internacional do Partido Comunista da Grécia

 

A Grécia continua a atrair a atenção dos trabalhadores de muitos países no mundo, devido às novas eleições gerais de importância crucial, que se realizam dia 17 de Junho, já que nenhum dos três partidos mais votados conseguiu formar um governo de coligação. De particular interesse, a julgar pelos artigos surgidos nos jornais, revistas e páginas sítios web comunistas e progressistas são os resultados das últimas eleições, bem como a linha política definida pelo Partido Comunista da Grécia (PCG), que nos últimos dias tem estado debaixo do fogo de alguns analistas. Comecemos pelo princípio.

 

Sobre o resultado das eleições de 6 de Maio

 

As eleições de 6 de Maio criaram um novo panorama político, já que os três partidos, que em conjunto governaram em apoio da política antipopular do capital e da União Europeia (UE), tiveram uma queda nas últimas eleições. Concretizando:

O PASOK, social-democrata concentrou 833.529 votos, 13,2%, com uma perda sem precedentes de 2.179.013 votos, menos 30,8%.

A ND, conservadora, teve 2.179.013 votos, 18,9% com uma perda de 1.103.665 votos, menos 14,6%.

O LAOS, nacionalista, não conseguiu atingir o limiar de tr% para poder entrar no parlamento, conseguindo 183.466 votos ou 2,9%, com uma perda de 202.793 votos ou menos 1,6%.

 

No entanto, a alteração do panorama político não pode ser considerada uma derrocada porque as forças que beneficiaram com a ira dos trabalhadores foram, sobretudo, as que apoiam a política de «sentido único da UE». Na verdade, a grande maioria dos votantes dos partidos burgueses dispersaram-se principalmente por formações políticas ideologicamente próximas. Concretizando:

 SYRIZA, uma coligação de forças oportunistas que saíram do partido numa cisão de direita (nas cisões do Partido de 1968 e 1991), na qual se juntaram nos últimos anos forças do social-democrata PASOK, teve 1.061.265 votos, 16,8%, um aumento de 745.600 votos, 12,2%.

 

 Uma cisão da SYRIZA, a Esquerda Democrática, onde se incorporaram ex-deputados e ex-dirigentes do PASOK, teve 386.116 votos, 6,1%.

 

 Um grande número de votos foram para partidos reaccionários e nacionalistas como os «Gregos Independentes», que saíram da ND e concentraram 670.596 votos, 10,6%, e «Aurora Dourada» que teve 440.894 votos, 7%.

 

 Além disso, aproximadamente 20% dos votantes optaram por dezenas de partidos que concorreram às eleições mas não conseguiram atingir o limiar mínimo de 3%.

 

 O PCG teve um pequeno aumento nas eleições. Em concreto recebeu 536.072 votos, 8,5%, isto é, teve um aumento de 18.823 votos, 1%. O PCG elegeu 26 deputados (entre os 300 do parlamento), mais cinco que anteriormente. Nos bairros operários a percentagem que o PCG alcançou foi quase o dobro da média. E numa das 56 circunscrições eleitorais (nas ilhas Samos-Ikaria) o PCG foi o partido vencedor com 24,7%.

 

O Comité Central do PCG chegou a algumas conclusões iniciais sobre os resultados eleitorais. No seu comunicado, entre outras, «saúda os milhares de trabalhadoras e trabalhadores, desempregados, que valorizaram o espírito de luta, a coerência, a verdade e a clareza das suas posições, a abnegação das e dos comunistas, que apoiaram o partido nas eleições, independentemente do grau de acordo com a totalidade da sua proposta política. Grande parte dos trabalhadores, bem como uma parte dos votantes do partido, sob a pressão da agudização dos problemas populares, das consignas enganadoras sobre a renegociação do memorado [1] e o alívio imediato dos trabalhadores, não puderam compreender e assumir a diferença entre o governo e o poder real».

No entanto, como sublinha o CC do PCG: «a proposta política do PCG da luta pelo poder operário e popular, estará no centro das atenções do povo, já que se torna cada dia mais clara a diferença entre o governo e o poder popular verdadeiro, bem como a proposta global sobre os problemas imediatos da sobrevivência dos povos e o poder operário e popular. Sob este ponto de vista, esta acção eleitoral política do PCG de acordo com a sua estratégia, como deve ser, é um legado importante para os próximos anos».

 

Sobre a SYRIZA

 

Alguns meios de comunicação burgueses internacionais, que apresentam a SYRIZA como «vencedora» das eleições de 6 de Maio, não alcançaram para além do seu nome «Coligação de esquerda radical», e concluíram que se trata de um partido radical de esquerda ou, inclusive, de um partido comunista. Naturalmente isto não tem nada a ver com a realidade. A força básica da SYRIZA é o partido «Coligação de esquerda (Synaspismos) que tem um programa social-democrata. Em 1992 votou no parlamento grego a favor do Tratado de Maastricht, e é um partidário da União Europeia imperialista, que considera poder ser

melhorada. Na verdade, apresenta um programa de gestão do sistema capitalista. Uniu-se à campanha anticomunista contra a URSS e os restantes países do socialismo que conhecemos no século XX. O Synaspismos é membro do presidium do chamado «Partido da Esquerda Europeia» (PEE), uma ferramenta da UE para erradicar as características comunistas dos partidos comunistas nos países da UE. Na SYRIZA, junto do Synaspismos participam forças que foram do social-democrata PASOK, assim como grupos da ultra-esquerda mais pequenos, trotskistas e antigos grupos maoístas transmutados que representam o papel das «espécies» políticas do receituário básico social-democrata e anticomunista. O objectivo principal desta formação é diminuir a influência eleitoral, sindical e política do PCG. A última década dá-nos muitos exemplos que demonstra o carácter anti-PCG desta formação política. Em dezenas de sindicatos, confederações sectoriais e associações de sindicatos a nível regional, as forças da SYRIZA participam e colaboram com as do PASOK a fim de impedir a eleição de delegados comunistas para os órgãos sindicais superiores. A SYRIZA é um inimigo jurado da Frente Militante de Todos os Trabalhadores (PAME) que constitui um agrupamento de sindicatos com orientação de classe. A SYRIZA colabora abertamente nos órgãos das confederações dos sindicatos, comprometidas com as forças colaboracionistas, com o patronato e o governo, quer no sector privado (GSEE) quer no sector público (ADEDY). Em muitos casos nas eleições locais tiveram uma atitude idêntica. Um caso exemplar foi a sua posição nas eleições municipais de 2010 na ilha de Ikaria. Nesta ilha, que foi um lugar de exílio dos comunistas, o PCG tem uma grande influência eleitoral. Nas eleições de 2010 a SYRIZA aliou-se ao social-democrata PASOK e à liberal ND e ao nacionalista LAOS para que não fosse eleito um comunista presidente do município. O candidato do PCG teve 49,5% dos votos, e a aliança anti-PCG ganhou o município por umas centenas de votos.

Hoje em dia, a SYRIZA procura atacar o PCG com propostas sobre a conveniência política da chamada «unidade de esquerda, na tentativa de fazer o PCG apagar capítulos inteiros do seu programa, abandonar os seus princípios e aceitar a política de gestão do sistema capitalista, como propõe a SYRIZA.

Sobre tudo isto, o mínimo que podemos dizer é que a atitude de alguns partidos comunistas, que em nome do aumento eleitoral da «esquerda», saudaram imediatamente a subida eleitoral daquela formação política oportunista e anticomunista sem conhecer a verdadeira situação na Grécia, foi irresponsável. Saudaram um inimigo jurado do PCG, que o presidente dos industriais gregos propôs para participar num governo de coligação dos partidários da UE.

 

A ilusão da «unidade de esquerda»

E a mentira do «governo de esquerda»

 

Muitos trabalhadores politizados de diferentes países da Europa e de todo o mundo colocam a seguinte pergunta: Por que razão o PCG não faz algumas concessões? Por que insiste na

linha política da concentração das forças sociais que querem lutar contra os monopólios, contra o capitalismo, contra as uniões imperialistas, pelo poder operário e popular e não apoia a política de «unidade de esquerda», a luta para corrigir a realidade capitalista e a UE, com uma colaboração política ou governamental com outras forças de «esquerda» ou social-democratas, tal como fazem outros partidos comunistas da Europa?

Em primeiro lugar, há já algum tempo que o PCG deixou claro que o significado dos termos «esquerda» e «direita» não reflectem a realidade política de hoje. Hoje em dia, o termo «esquerda podia utilizar-se para descrever o Secretário-geral da NATO ou o primeiro-ministro de um país que leva a cabo uma guerra imperialista, e toma medidas antilaborais e antipopulares contra os trabalhadores do seu país». O Partido Comunista não é simplesmente um «partido de esquerda», mas o partido que luta pelo derrube do capitalismo e pela construção de uma nova sociedade socialista-comunista. Neste caminho e com esta direcção de luta pode haver lugar a conquistas, ao contrário não. Tal como a história já demonstrou, as reformas, a luta para corrigir o sistema capitalista, para mitigar as medidas antipopulares mais extremas, onde se centram as forças oportunistas-social-democratas, jamais levaram em parte alguma ao derrube do capitalismo. Pelo contrário, em muitas ocasiões levaram ao fortalecimento do capitalismo, criaram a ilusão em milhões de trabalhadores que o capitalismo pode ser humanizado. Que hoje em dia, supostamente, o Banco Central Europeu pode converter-se de um instrumento capitalista numa instituição de caridade e distribuir empréstimos sem juros, ou que a União Europeia pode concertar-se numa união que sirva o sistema da «união dos povos», como defendem o SYN/SYRIZA e o Partido da Esquerda Europeia.

É por isso que o PCG apresenta a sua proposta política de forma integral e nas eleições de 6 de Maio passado especificou-a no lema: «Fora da UE, com o poder popular e o cancelamento unilateral da dívida».

Assim, o PCG está firmemente orientado pelo marxismo-leninismo. Segundo Lenine: «O proletariado luta e continuará a lutar para destruir o antigo regime. Com este objectivo dirigirá toda a sua propaganda e agitação, todos os seus esforços para organizar e mobilizar as massas. Se não conseguir destruir totalmente o antigo regime, o proletariado saberá aproveitar também a sua destruição parcial. Mas nunca propugnará a destruição parcial, descrevê-la-á com optimismo, apelará ao povo para lhe dar apoio. Na luta autêntica só se apoia efectivamente o que aspira ao máximo (e que no caso de fracassar consegue o menos), e não àquele que, antes de começa a luta, cerceia os objectivos da mesma de uma forma oportunista» [2].

O PCG rejeitou a ideia de criar um «governo de esquerda» que mantendo a Grécia dentro da UE e da NATO e com as relações de produção capitalistas intactas, supostamente poderia

implementar a gestão de um sistema a favor do povo. O nosso partido luta pelo desenvolvimento da luta de classes, da consciência política dos trabalhadores, pela sua libertação da influência dos partidos e das construções ideológicas burgueses, e pela formação de uma aliança que não só defenderá os interesses dos trabalhadores, como tratará de tirar o país das intervenções imperialistas, para além de colocar a questão do poder.

 

O objectivo é diminuir da influência do PCG e a sua assimilação pelo sistema

 

A recusa do PCG em subjugar-se a formações de «esquerda» ou inclusive num governo de «esquerda» está no «ponto de mira» de inimigos e «amigos» que, directa ou indirectamente, apelam ao PCG para que se «una» com as restantes forças de «esquerda». Esta é linha seguida pelos partidos comunistas que estão no presidium do PEE. Além disso, houve mesmo alguns ataques grosseiros, por exemplo de um grupo de trotskistas – que são mais conhecidos no estrangeiro que na Grécia – que caracterizaram o PCG como um partido sectário e dogmático.

Como é possível com a linha de luta de classes e do conflito que promove o PCG agrupar centenas de milhares de pessoas, sendo um partido sectário? Como é possível, por exemplo, que nas fileiras da Frente Militante de Todos os Trabalhadores (PAME) se agrupem dezenas de sindicatos de base, federações sectoriais, uniões de sindicatos a nível regional, representando centenas de milhares de trabalhadores?

É preciso dizer que a PAME, que é o polo de orientação de classe no movimento operário e sindical, agrupa 8 federações sectoriais de trabalhadores, 13 uniões regionais, centenas de sindicatos sectoriais e de base, com um total de 850.000 membros. Além disso a PAME trabalha nos sindicatos onde as forças com orientação de classe não são maioritárias. Por exemplo, as forças da PAME são a segunda força numa série de federações (como a Federação do sector turístico e restauração e a Federação dos trabalhadores metalúrgicos), bem como nas maiores Uniões de Sindicatos regionais do país, Atenas e Salónica.

Como é possível que a Frente Antimonopolista Grega de autónomos e pequenos comerciantes (PASEVE) agrupe nas suas fileiras milhares de trabalhadores autónomos que compreendem a necessidade de entrar em conflito com os monopólios? Como é possível que milhares de camponeses pobres, através de associações de agricultores e dos seus comités, se inspirem na luta da Frente Militante de Todos os Camponeses (PASY) contra a Política Agrícola Comum da UE? Como é possível que mulheres e milhares de estudantes que pertencem a camadas operárias e populares entrem na luta pelas questões e as iniciativas da Federação de Mulheres da Grécia (OGE) e da Frente Militante de Estudantes (MAS)? Em todas estas organizações sindicais, sociais e de política de massas, os membros e os dirigentes do partido têm um papel principal sem ocultarem a sua identidade?

Acusam o PCG de estar «isolado» ou inclusive ser «dogmático» ou «sectário», devido à sua rejeição de um «governo de esquerda» ou pelo facto de a percentagem eleitoral do PCG não subir tão rapidamente como a formação social-democrata SYRIZA. Estas acusações não podem afectar o PCG. Cabe lembrar que há dois anos e meio, o outro partido social-democrata, o PASOK, tinha concentrado 44% dos votos e que nas últimas eleições atingiu apenas os 13%. Esta queda teve lugar em condições de fluidez política, reforçou a SYRIZA com quem tem a relação ideológica mais estreita. É preciso dizer que um partido revolucionário, como é o PCG, não se julga exclusivamente pela percentagem alcançada nas eleições.

Quanto ao tema da política de cooperações, o nosso partido acumulou enorme experiência histórica. Dirigiu a luta antifascista de uma grande frente armada que teve uma enorme contribuição na luta do povo. No entanto, naquele período o Partido não conseguiu elaborar uma estratégia para a transformação da luta antifascista numa luta pelo derrube do poder burguês. O PCG fez alianças «de esquerda» nas décadas de 1950 e 1980. Da sua experiência sobre a política de alianças o PCG tirou conclusões úteis, e não tem qualquer intenção de repetir os mesmos erros.

Então, como se explica o ataque ao PCG? É claro que estão muito irritados pela acção internacional do PCG com vista à reconstrução do movimento comunista internacional, sobre a base do marxismo-leninismo e do internacionalismo proletário. Ademais, os Encontros Internacionais de Partidos Comunistas e Operários, tal como outras iniciativas comunistas internacionais, começaram em Atenas. No entanto, o mais importante é que o PCG é um partido com fortes raízes operárias e populares, é um partido que se recusa a abandonar os seus princípios, se recusa a ir a reboque da social-democracia, a submeter-se à UE e à NATO. Sobre isto, citamos um artigo publicado depois das eleições no conhecido jornal francês Le Monde Diplomatique: «O objectivo secreto e o desejo de todos os gregos de esquerda é: dissolver o Partido Comunista sobre uma nova base e dar à esquerda grega a sua posição correcta na sociedade». Isto é, desacreditar o PCG e convertê-lo, torná-lo igual aos outros partidos comunistas da Europa, transmutados numa «representação comunista» da social-democracia para a gestão da barbárie capitalista.

O nosso objectivo é fazer falir estes planos! Preservar e fortalecer o PCG! Apesar da pressão exercida sobre o nosso partido, há indicadores alentadores que mostram que o PCG é um «osso duro de roer». Dez dias depois das eleições de 6 de Maio, realizaram-se na Grécia as eleições estudantis. A lista apoiada pela Juventude Comunista da Grécia alcançou 16% nos Institutos Tecnológicos e 14% nas Universidades, o que representa um aumento em relação ao ano passado. Ao contrário, a lista da Syriza teve uma percentagem baixa, 2,3% nos institutos e 6,9% nas universidades.

 

Restauração do sistema burguês

 

Já há algum tempo que o PCG vem a advertir o povo grego que a classe burguesa está a preparar a restauração do panorama político, com o objectivo de preservar o seu poder. A razão é que já não pode administrar o sistema político na base da alternância no poder entre um partido político conservador (ND) e um social-democrata (PASOK), tal como vem acontecendo desde 1974, após a queda da ditadura militar. O sistema burguês está a tratar de se «desfazer» dos partidos e das pessoas que têm estado irremediavelmente expostos aos olhos do povo. Nestas condições, a SYRIZA, que tem um programa social-democrata, foi beneficiada nas eleições, propagandeou mentiras flagrantes, antes e durante o período pré-eleitoral, semeando ilusões de que pode haver um futuro melhor para os trabalhadores sem o conflito com os monopólios e as uniões imperialistas. É por isso que tem enormes responsabilidades perante o povo.

O PCG incita os trabalhadores a darem-se conta que esta restauração que se está a fazer não tem nada a ver com a satisfação das necessidades recentes do povo. Inclusive, o chamado «governo de esquerda» é um «salva-vidas esburacado» que se lança aos trabalhadores, já sufocados pelos becos sem saída do sistema capitalista.

 

O povo não deve deixar-se enrolar em falsos dilemas

 

Face às eleições de 17 de Junho os partidos burgueses e o oportunismo já estão a promover novos dilemas enganadores que serão utilizados proximamente para enrolar o povo, reduzir a resistência das massas populares radicais perante a pressão exercida, reduzir a influência eleitoral do PCG. O PCG não oculta o facto de esta batalha vir a ser muito difícil para os comunistas.

Para que fique claro que tipo de falsos dilemas eles estão a criar, permitimo-nos examinar alguns deles:

 

1. Euro ou dracma?

 

Um falso dilema é a acusação da ND dirigida contra a SYRIZA que a sua política está a levar o país para fora do euro, o que será uma catástrofe para os trabalhadores. Por outro lado a SYRIZA responde que a saída do euro significaria um imenso custo para os restantes países da zona euro e por isso tal nunca acontecerá.

Na realidade, tendo em conta que a crise capitalista está em desenvolvimento, não podemos excluir, segundo os diversos cenários que estão a ser discutidos, a contração da zona euro,

através da expulsão da Grécia e de outros países ou com uma desvalorização interna do euro no nosso país. Neste sentido, a chantagem da União Europeia e do FMI é real, e a resposta não pode ser a complacência preconizada pela SYRIZA.

No entanto, é preciso dizer que todos os restantes partidos, excepto o PCG, isto é, a ND, a SYRIZA, o PASOK e a DIMAR estão a lutar entre si para saber quem vai ser mais capaz de manter o país no euro, e acusam-se uns aos outros que a sua política conduz a Grécia à dracma. O objectivo de todos eles é impor à consciência do povo o falso dilema «euro ou dracma» para esconder o facto de terem a mesma estratégia, já que são partidos comprometidos com a UE. Pedem ao povo para votar e lutar sob bandeiras alheias aos seus interesses, na linha falsa de «dentro ou fora do euro», quando todos os partidos – excepto o PCG – estão a favor da UE e do euro. Os trabalhadores e o povo, quer com o euro quer com a dracma, viverão na indigência.

O PCG insta os trabalhadores a passar ao lado deste dilema. Não devem aceitar a eleição da moeda em que vão medir a sua pobreza, as reduções dos seus salários e pensões, os impostos, os gastos com saúde e educação. O dilema «euro ou dracma» é a outra face da intimidação com uma falência incontrolada, a qual já é uma realidade para a imensa maioria do povo. Querem que o povo se envolva neste falso dilema para que o possam chantagear quando quiserem aprovar leis antipopulares, dizendo-lhe que devem escolher entre as medidas bárbaras e o regresso à dracma, que identificam com o caos e a miséria. Simultaneamente, na Grécia e no estrangeiro há sectores da plutocracia que querem regressar à dracma. Isto permitir-lhes-ia conseguir maiores ganhos para eles e para a burguesia no seu conjunto, que na actualidade nas condições de assimilação do país dentro da zona euro. O povo na falência não vai ter prosperidade nem com o euro nem com a dracma, enquanto os monopólios dirigirem o país, enquanto o país permanecer na UE e a burguesia estiver no poder. A única resposta ao dilema «euro ou dracma», do ponto de vista do interesse popular, é: a saída da UE com o poder popular e o cancelamento unilateral da dívida. Não é preciso dizer que neste caso o país terá a sua própria moeda.

 

2. Solução grega ou europeia?

 

Estão todos a falar de uma solução europeia para a crise da Grécia e referem-se a negociações com os órgãos da UE para uma solução integral para o problema da dívida que também abarcará a Grécia. Todos os partidos gregos, excepto o PCG, saudaram a eleição de Hollande para a presidência francesa que, segundo dizem, põe fim ao antipopular dueto «Merkozy». Além disso, falam ainda de consultas com a UE sobre as medidas de desenvolvimento, através da subvenção das grandes empresas para que se possam realizar os investimentos.

Esta táctica tem como objectivo esconder que o responsável pelo sofrimento do povo não está em Bruxelas mas dentro do país. É a burguesia, os empregadores que têm nas suas mãos os meios de produção, os navios, os escritórios, os serviços do nosso país. A participação da Grécia na UE, na base das decisões dos partidos da plutocracia, serve os interesses desta. É uma provocação apresentar a UE como um lugar onde se pode encontrar uma saída favorável ao povo. Foi a UE, juntamente com os governos locais e o FMI, quem elaborou os memorandos. É a UE que tem como estratégia a «UE 2020» e o Tratado de Maastricht, que é a origem de todas as medidas contra os operários e os povos que se incluem ou não nos memorandos. Inclusive, andam a dizer ao povoo alívio mínimo das medidas tem a ver com as negociações no seio da UE, que apenas trata de assegurar para os monopólios uma saída da crise à custa dos povos.

Pedem à vítima para esperar que o agressor lhe dê uma solução para os seus problemas na União Europeia, quando esta está cada vez mais submersa na crise e mais reacionária, dadas as rivalidades no seu seio, e o antagonismo com os restantes centros imperialistas.

A SYRIZA tem uma grande responsabilidade já que procura uma renegociação da estratégia do memorando, paralisando o movimento e deixando-o à espera, até que, supostamente, tenham êxito as negociações por um «governo de esquerda», isto é, amordaçar as lutas operária populares num período em que as lutas têm de se intensificar e radicalizar, em primeiro lugar contra a plutocracia nacional e os partidos que a servem o apoiam através da intimidação ou ilusões.

O PCG revela ao povo que é preciso contar com um movimento operário e popular na Grécia que lute por uma ruptura e o derrota das decisões do capital e da UE e, ao mesmo tempo, promover a coordenação a nível europeu, não com negociações mas através do fortalecimento do movimento operário popular europeu contra a UE, com vista à ruptura.

 

3. Austeridade ou desenvolvimento?

 

Numa Europa capitalista submersa na crise, o que procuram conseguir é o «desenvolvimento», isto é a saída da crise para o capital da UE. Na Grécia, os partidos a favor da UE acusam-se uns aos outros pela proporção das medidas de austeridade e pela sua fórmula política de desenvolvimento. Assim, tratam de ocultar que a via de desenvolvimento capitalista implica austeridade em condições de forte concorrência capitalista e de agudizadas contradições inter-imperialistas. As medidas de «consolidação fiscal» que se implementam em muitos países, com ou sem memorandos mas sempre em nome da criação de um superavit no orçamento estatal, são para subvencionar as necessidades do capital e servem também o desenvolvimento. As «mudanças estruturais» na Grécia e em toda a UE, também em nome do

desenvolvimento, respeitam sobretudo à abolição da segurança social e dos direitos laborais, para que o operário seja mais barato para o capital.

As privatizações e a liberalização dos mercados que oferecem novos campos de rentabilidade à plutocracia também têm como objectivo o desenvolvimento, esmagando os pequenos comerciantes e os trabalhadores autónomos. Portanto, tudo o que se faz para o desenvolvimento, que precisamente pela sua natureza capitalista só deita a mão a medidas antipopulares, sejam elas de austeridade, «mudanças estruturais», ou resgates das grandes empresas. No período anterior, os governos burgueses da zona euro estavam abrandando ou intensificando as medidas, numa ou noutra direcção, tentando regular os antagonismos entre eles e a profunda crise.

O PCG assinala que a saída da crise a favor do povo não está na gestão da crise com ferramentas expansivas ou restrictivas por parte do pessoal político nos órgãos da UE. Está na organização da luta a nível nacional, por uma via diferente de desenvolvimento que, com o poder popular, a saída da UE e a socialização dos meios de produção, vai desenvolver todas as capacidades do país para benefício do povo.

 

4. «Direita» ou «esquerda»? «Memorando ou «anti-memorando»?

 

São dilemas que vão tomar outras formas, de acordo com os acontecimentos, com uma nova forma dos dois polos, do centro-direita e do centro-esquerda. Estes dilemas, sobretudo por responsabilidade da SYRIZA, puseram à margem e esconderam as verdadeiras contradições na Grécia e na UE. O dilema artificial «memorando-anti-memorando» é utilizado pelos burgueses e os oportunistas para esconder que o denominador comum é a «via de sentido único da UE», isto é, o alinhamento com a estratégia do capital. Independentemente das diferentes táticas, estas forças de «esquerda» e de «direita», «memorando» ou «anti-memorando» estão a enganar os operários e os sectores populares quando lhes dizem que pode haver uma solução a favor do povo dentro da UE. A ND, o PASOK, os Gregos Independentes, a SYRIZA, a DIMAR e outras forças não têm um programa que entre em conflito, ou pelo menos questione, o poder dos monopólios. Os termos que todos utilizam são «desenvolvimento», «redistribuição da riqueza», «auditoria da dívida», «solução europeia», e escondem os interesses de classe opostos que existem quer na Grécia quer na UE. Isto é, enquanto se mantiver a propriedade capitalista dos meios de produção, os sectores populares não vão prosperar. O memorando é a ponta do iceberg da estratégia da UE, que prevê medidas anti-populares em todos os países membros. Grécia, Irlanda, Portugal, Hungria, Roménia têm contrato de empréstimo, enquanto a Alemanha, França, Itália, Espanha e Dinamarca não têm, nem tampouco a Grã-Bretanha que nem sequer pertence à zona euro. No entanto, o ataque do capital em todos estes países é comum, e inclui diminuições de salários, relações laborais flexíveis, aumento da idade de reforma, privatizações de serviços públicos,

comercialização da saúde, da educação, da cultura, dos desportos, pauperização absoluta e relativa dos trabalhadores. Inclusive, na Grécia, se não nos livrarmos do memorando, se não entrarmos em conflito com o capital e o seu poder, continuarão a implementar, ainda mais intensamente, as medidas anti-populares, porque isto é o que estabeleceram as directrizes estratégicas da UE, assinadas ou apoiadas pelos partidos burgueses e o SYN/SYRIZA.

A verdadeira pergunta a que o povo deve responder e que se tornará mais fortemente evidente nos próximos tempos é: A Grécia e povo trabalhador independentes e desvinculados dos compromissos europeus ou a Grécia assimilada na UE imperialista? O povo será o dono da riqueza que se produz ou vai ser o escravo nas fábricas e nas empresas dos capitalistas? O povo será organizado e protagonista ou o movimento operário e popular ficam fora do combate, esperando que o agressor lhes resolva os problemas através de um representante? A posição do PCG é clara. O facto de todas as suas previsões e avaliações se terem confirmado é uma razão mais para que o povo confie no PCG e lute juntamente com ele.

Na próxima batalha eleitoral o PCG necessita da mais ampla e coerente solidariedade internacional com o partido. Os comunistas na Grécia precisam de sentir a seu lado o apoio, a solidariedade proletária e o espírito de camaradagem dos partidos comunistas e operários e das demais forças anti-imperialistas perante esta dura batalha eleitoral que temos pela frente, dado que o objectivo da burguesia é a diminuição da influência eleitoral do PCG.

O que os preocupa é a política revolucionária do PCG, as suas posições claras em relação às organizações imperialistas, a sólida base do PCG no movimento operário e popular, nas fábricas, nas empresas, nos bairros populares das grandes cidades. É porque não podem submeter o PCG. As comunistas e os comunistas, os amigos do PCG, os membros e os amigos da JCG travam esta batalha de forma organizada e com decisão, declarando ao povo grego e à classe operária internacional que depois das eleições vamos estar nos locais de trabalho, nas cidades e nos campos junto das famílias operárias e populares, na primeira linhada luta, em ligação com os problemas do povo, fiéis ao compromisso histórico do partido revolucionário, e firmes na luta pelo derrube da barbárie capitalista, pelo socialismo-comunismo.

 

Notas:

[1] O acordo de medidas anti-populares assinado pelo governo grego com a UE, FMI e BCE para receber novos empréstimos.

[2] V.I. Lenine «O combate pelo poder e o “combate” por sopas», volume 11, pp 27-31

Este texto foi publicado em http://es.kke.gr/news/news2012/2012-05-23-arthro

Tradução de José Paulo Gascão

António Lobo Antunes - romancista ou poeta?

É difícil descortinar uma coerência narrativa satisfatória e sentir a emoção estética que, em última análise, suponho ser objectivo central de qualquer manifestação artística, nos últimos romances de ALA. É bem verdade que a literatura enveredou, desde o dealbar do romantismo, por caminhos de subversão e de contaminação de géneros que a afastaram cada vez mais dos cânones estritos compendiados nas poéticas clássicas. Verdade também que, na construção dos sentidos (resultantes da relação triangular autor/livro/leitor) se foi progressivamente alargando a parte reservada ao leitor. E julgo saber que o gosto do leitor moderno e culto se compraz preferencialmente na leitura de narrativas abertas, plurissignificativas e não espartilhadas em conceitos estreitos de géneros. Apesar de tudo isso, estas “sinfonias concretas” de ALA, a mim, soam-me a ruído, a bricabraque.

 

Ao fazer este cotejo entre a escrita de ALA e a música, ocorre-me um outro, agora com Le Corbusier e as suas construções de estrutura tão aparente. É uma associação contraditória, porque em ALA a arquitectura narrativa, pelo contrário, esfuma-se, mal a vislumbramos. Mas num e noutro sobra o desconforto, a estranheza de quem espera encontrar algo de acabado e vê, pelo contrário, uma espécie de estaleiro, onde materiais heteróclitos surgem de todo o lado.

 

Outra associação, esta ensaiada no meu post sobre Comissão das Lágrimas, é a do cubismo, na pintura. Ora a apreensão de uma pintura por quem a observa faz-se de forma global e quase instantânea. Quando olhamos para o “Guernica” de Picasso, somos imediatamente “assaltados” pelo horror de todas aquelas figuras humanas e animais, sem necessidade de voltar a página – creio que a isto se chama efeito plástico. Se a leitura se desenrola no tempo, a pintura, em contrapartida, apresenta-se no espaço. Que, depois, um conhecedor de pintura se debruce demoradamente sobre o quadro, esquadrinhando cada pormenor de composição, tal não invalida que o comum dos consumidores de pintura apreende o quadro de imediato. A escrita, pelo contrário, implica um demorado trabalho de apreensão/construção que se vai processando ao longo das páginas e das horas de leitura.

 

Outra associação ainda, esta mais próxima, é a da poesia. Da poesia, em geral, no que ela tem de linguagem particularmente burilada e em que o signo ascende à condição de objecto de manufactura; da poesia moderna, em particular, na démarche de desconstrução das linearidades. Aqui, sim, parece-me haver convergência: a escrita de ALA é uma escrita poética e os seus últimos romances são, por assim dizer, poemas. Porém, esta sua natureza dúplice submete-os a tensões insustentáveis: são, por um lado, as exigências incontornáveis do género narrativo (que pressupõe sempre uma referencialidade exterior) e das suas categorias (o leitor quer saber quem faz o quê, em que tempo e em que sítio), por outro, as liberdades próprias de um género que se basta a si próprio, que cria uma referencialidade intrínseca, no sentido em que os signos da poesia podem valer por si mesmos, pelas suas virtualidades sugestivas, instituindo-se como objectos-signos.

 

Em suma, parece estarmos a assistir, com António Lobo Antunes, a uma demorada metamorfose: de romancista-crisálida  a poeta-borboleta.

 

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Vamos todos ao banco alimentar

Mais uma campanha do Banco Alimentar. Multiplicam-se as reportagens televisivas. Os clientes dos supermercados atropelam-se para declamar perante as câmaras que o país está mal e recomenda-se. Temos todos que nos ajudar uns aos outros. Não custa nada. O poucochinho de cada um pode fazer a felicidade dos muitos que nada têm. O espírito natalício, extemporâneo, respira-se por todo o lado. Apesar da crise, as dádivas aumentam de campanha para campanha. Somos um povo assim. Magnânimo. A doutora Isabel Jonet responde, solícita, às perguntas dos repórteres. Ouvi-a, no outro dia, lembrar, sem mudar de tom nem de expressão, que o direito à alimentação é componente inalienável da cidadania europeia. Não a ouvi identificar os responsáveis pelos criminosos atentados à componente inalienável da cidadania europeia. Deve pensar que não tem o direito de julgar. Deus é o único árbitro. Na hora derradeira do Juízo Final, só alguns se sentarão à sua direita. Ela lá estará. Mas, antes, ainda vai receber o Prémio Nobel. Se não receber, não faz mal. São insondáveis os desígnios de Deus, perito em escrever direito por linhas tortas. Resignemo-nos. Com alguma sorte, qualquer dia os desempregados chegam ao milhão e meio e, aí, os trinta e sete mil e quinhentos voluntários vão ser poucos para recolher tantos géneros nas grandes e médias superfícies. Mas os beneficiários vão ser mais numerosos. E os dadores mais benfazejos. Porque somos um povo assim. Magnânimo. Quanto maior é a privação, mais se nos expande o coração. Até que um dia, um qualquer dia, já nem voluntários sobrarão, atingidos pelo desemprego e pela inanição. Metade do país irá para o Banco Alimentar. E, da outra metade, muitos irão para o Céu. Por terem feito o bem. Sem olhar a quem.

RELVAS E O CHARME DISCRETO DA DEMOCRACIA BURGUESA

Independentemente do que vier a resultar do caso das “secretas”, do processo de audição do ministro Relvas, da contenda com o “Público”, da demissão do adjunto do ministro, etc., o que tudo isto vem, uma vez mais, pôr a nu é a enorme desfaçatez com que a burguesia nacional põe e dispõe a seu bel-prazer do aparelho de Estado, que controla, e que, com inegável arte e engenho, consegue fazer quase sempre passar por aquilo a que cinicamente chama Estado de direito democrático.

 

Há, claro, quem não vá na cantiga e saiba muito bem que a democracia burguesa não passa de uma ditadura mais ou menos soft, consoante as necessidades, de uma classe endinheirada, detentora das alavancas dos poderes económico, político, mediático. Mas a sua máquina ideológica e de propaganda é de tal maneira eficaz e o modo de funcionamento dos partidos do sistema concebido de tal maneira (com a substituição frequente do líder, por exemplo, e a consequente obliteração dos “erros” cometidos pelo anterior) que, para a grande massa dos eleitores, o Estado é mesmo democrático. A prova, aliás, é que o ministro Relvas está a ser ouvido.

 

O ministro Relvas está a ser ouvido, e, das duas, uma: hipótese A, prova-se que o homem não tem nada a ver com o quer que seja, nem nunca pressionou jornalistas nem coisa nenhuma. Muita gente sisuda saúda o resultado das averiguações e exalta a excelência do regime democrático, de cristalina transparência. Há, contudo, uns quantos desmancha-prazeres que insistem em que só um parvo pode acreditar em tal conclusão. Esta suspeição faz mancha de óleo e gera algum mal-estar, que o passar das semanas desvanece em grande parte, subsistindo contudo uma franja de incréus que vão somar-se a outros de processos anteriores com idêntica sorte. A hipótese B é provar-se que o homem está enterrado até à base da nuca em histórias que fariam a felicidade de muitos romancistas. A mesmíssima gente sisuda que aplaudira, no meu cenário virtual, a hipótese alternativa, saúda agora esta, tecendo encómios às virtudes cristalinas do regime democrático. Com a mesma convicção – o que só abona a favor da qualidade dos actores. Claro que, nesta circunstância, o ministro Relvas é dispensado; após período de nojo de três meses e meio, ingressa na administração de uma grande empresa; é substituído no governo por um companheiro do partido ou simpatizante que está acima de qualquer suspeita (na visão legalista da tal gente sisuda, que muito preza o princípio da presunção da inocência). O governo sai reforçado, quer porque alijou uma carga embaraçosa, quer porque, ao alijá-la, provou a pureza dos seus intentos. Os desmancha-prazeres de há bocado não podem, desta feita, senão aceitar o resultado das averiguações e nele acreditar. Insistem, contudo, em que, com Relvas ou sem Relvas, casos como este continuarão a surgir, pois estão no código genético da democracia burguesa. Esta insinuação alastra como mancha de óleo e gera um mal-estar crescente, que se vai desvanecendo com o passar do tempo. Entretanto, os incréus da hipótese anterior rendem-se à excelência da justiça burguesa e abdicam da sua descrença temporária. A democracia burguesa triunfa. Quem resiste a tanto charme?

Camelos, agulhas e desempregados

A gente ouve o primeiro-ministro dizer que ficar desempregado não é necessariamente negativo e que o desemprego até pode ser uma oportunidade para mudar de vida e hesita entre escrever um pequeno post, para desabafar, e esganá-lo. Sendo a segunda opção inalcançável, quer atendendo às dificuldades materiais inerentes à consumação do acto, quer, sobretudo, olhando aos pruridos de ordem ética, fica-se pela primeira. O que não é tarefa muito mais fácil. Antes pelo contrário. É que se, para os fazedores de opinião profissionais e para muitos bloggers, declarações, desmentidos, retractações e contraditas parecem funcionar como estímulo e combustível do seu exercício diário e persistente de análise crítica da actualidade, para outros, tais coisas assemelham-se mais a escorrências fétidas de uma chaga na qual seria de toda a conveniência aplicar cautério cicatrizante.

 

É bem verdade que, por uma vez, vem o ministro das Finanças temperar o despautério, com a judiciosa proposição de que, “comparando com outras experiências negativas, a satisfação de vida de um desempregado não se recupera, mesmo depois de estar desempregado há muito tempo”. Mas nenhuma correcção, por mais detersiva que seja, dissolve alarvidades daquele jaez.

 

Dito isto, há que assinalar a significativa sintonia entre a nossa televisão e o primeiro-ministro. É que, desde há algum tempo, volta e meia, ela desincumbe-se da preciosa tarefa de fazer a cabeça do povo, mostrando-nos exemplos edificantes de desempregados que, de um dia para o outro, se tornaram empresários de sucesso. A coisa é-nos apresentada sob luzes tão auspiciosas que quase se tem pena de não se perder o emprego – quando se tem a castradora infelicidade de se ter um, o que, ipso facto, nos veda a maravilhosa oportunidade de mudar de vida, entrando num clube de elite.

 

Vêem-se aquelas reportagens, e sobretudo ouvem-se os apelos empenhados dos respectivos repórteres (discípulos de Fátima Campos Ferreira) para que não nos conformemos com o desemprego, e só o mais insensível dos telespectadores duvida que amanhã de manhã, sem crédito e sem qualquer talento genial que o distinga do comum dos mortais, estará montado nos negócios.

 

Se P.P.C. e esta sua gente sabem, fingem não saber que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que entrar um desempregado no reino da abastança. Excepto se esse desempregado, como muito bem o lembrou Jerónimo de Sousa, pertencer ao clube restrito dos que se revezam no poder e nas administrações das grandes empresas.

Hipocrisia ou profunda gratidão? (a propósito do funeral de Miguel Portas)

            Não acompanhei de muito perto as cerimónias relacionadas com o funeral de Miguel Portas, mas o pouco que vi pela televisão deixou-me com sentimentos contraditórios e mergulhado numa certa perplexidade. É destes sentimentos que vou dar parte, correndo o risco de ser bem interpretado e de que se considere não ser de bom-tom o que vem a seguir.

         Miguel Portas abandonou o PCP em 1989, tendo, três anos mais tarde, fundado a Plataforma de Esquerda, juntamente com outros dissidentes, que viriam a aderir ao PS. Não foi o seu caso, visto que a sua opção foi a de criar um novo partido, o Política XXI, que, em 1999, associado ao PSR e à UDP, dará origem ao BE, onde se manteve até à sua morte.

         Foi, pois, até 1989, militante do partido da classe operária e de todos os trabalhadores portugueses, do partido que, durante os quarenta e oito anos do fascismo e os trinta e seis de contra-revolução e de restauração capitalista, sempre se afirmou como o mais consequente batalhador pela defesa dos interesses dos trabalhadores e do povo. E deixou de o ser para integrar um partido que, para lá da conhecida heterogeneidade das suas facções (trotskista, marxista, social-democrata) se afirma, genericamente, da área da social-democracia. Não a “social-democracia” do PSD, nem mesmo a do PS, enfeudada ao neoliberalismo, mas uma social-democracia, digamos, mais genuína, de maior sensibilidade social e mais consentânea com as suas raízes históricas, que remontam aos finais do século XIX. Porém, o facto é que, entre marxismo e social-democracia não há compromisso possível: a segunda pronuncia-se inequivocamente pela ilusão do reformismo; o primeiro sabe que o capitalismo não é reformável e que só a revolução, superando as contradições e antagonismos de classe, conduzirá a sociedade a uma síntese superior.

         E é aqui que está o busílis. A burguesia portuguesa não é ingénua e sabe donde lhe pode vir mossa. Ao passar-se do PCP para a social-democracia, mesmo esta com farpela de extrema-esquerda (o que não deixa de ser curioso), Miguel Portas passou a ser um adversário político “doce”, “convicto, mas doce” – adjectivos que vi serem-lhe atribuídos por vários lídimos representantes da classe dominante, desde Marcelo Rebelo de Sousa a Pedro Santana Lopes.

         Creio que era Bernard Shaw que dizia serem as pessoas sensatas muito úteis àquelas que o não são. Poder-se-ia dizer o mesmo dos políticos doces e, em geral, das pessoas que levam a sua tolerância tão longe que acabam no extremo de pactuar com as injustiças e as desigualdades, ou, pelo menos, com os seus promotores. Porque a política não é exactamente um jogo de futebol, em que ganhar ou perder se traduz por uma classificação na tabela. A vitória sucessiva de partidos de direita (PSD e CDS) ou do partido dito socialista, ao longo dos anos, em Portugal, tem tido como contrapartida a destruição de conquistas da Revolução que configuravam avanços civilizacionais. Nos dias que correm, a concretização da agenda ideológica da burguesia no poder, pela coligação reaccionária, visa a supressão do Estado social e a sua substituição por uma selva em que os trabalhadores por conta de outrem, os desempregados, os pensionistas, os contratados com vínculos precários, os trabalhadores a recibo verde, os pequenos empresários são devorados por quem se encontra no topo da cadeia alimentar – grandes empresários, banqueiros, administradores e gestores, bem como os seus serventuários no poder político – todos eles, naturalmente, grandes defensores da tolerância e da convivência “democrática”, ou não dependesse a manutenção dos seus privilégios imorais da doçura e da compreensão das suas vítimas, condenadas a condições de vida miseráveis ou próximas disso, ao assistencialismo e à caridade, à degradação moral, por vezes, até à morte. Com os promotores destas políticas não há que ser doce nem tolerante. Pelo contrário, há que dar corpo à célebre máxima de Saint-Just: “pas de liberté pour les ennemis de la liberté”.

         Em conclusão: não estão em causa as qualidades intelectuais e morais de Miguel Portas; está em causa a sua opção política. E por muito que me esforce por acreditar na sinceridade do seu empenhamento na transformação social, as efusivas mostras de pesar pela sua morte, vindas de quem pouco se preocupa com a sorte de milhões de trabalhadores, deixam-me a desagradável impressão de que quiseram prestar-lhe um tributo pela sua deserção.