NATUREZA HUMANA E UTOPIA
Pese embora o sorriso escarninho dos detractores de utopias, o mundo será tanto melhor quanto maior for o número de pessoas a pensar que o mundo pode ser melhor. E todos aqueles que vêem na injustiça e desigualdade uma fatalidade inerente à “condição humana” não fazem senão contribuir para que a injustiça e a desigualdade persistam. Primeiro, porque, ao aceitá-las como fatalidade, abdicam de as combater; segundo, porque, considerando-as próprias da “natureza humana”, eles próprios cometem injustiças e promovem a desigualdade, inibindo a censura moral com a justificação da inevitabilidade. Por outro lado, a convicção de que a “natureza humana” não é imutável não deve conduzir à passividade dos que a partilham, sob pena de deixarem o processo da sua transformação entregue às contingências do devir histórico e à provável reprodução ininterrupta das desigualdades e injustiças. A “natureza humana” não é uma entidade fixada para todo o sempre, do mesmo modo que o destino, na sua acepção religiosa, não passa de uma construção ideológica, indemonstrável em termos de adequação ao real. Assim como o destino, em acepção materialista, se constrói (caminho que se faz caminhando), assim também a “natureza humana” se forja nos múltiplos cadinhos das relações sociais, ao longo dos tempos.
A ideologia dominante na actualidade, fortemente impregnada de liberalismo individualista, remete os defensores de utopias para o caixote do lixo da história. Tornou-se, assim, consensual considerar que o rumo das nações e do mundo, em geral, deve resultar de escolhas individuais, do “livre jogo democrático”, e que todo o proselitismo utópico é de proscrever, por aspirar, em última análise, à imposição de um modelo visto como salvífico pelos seus mentores. Pretender salvar a humanidade seria uma inanidade e pretensão ilegítima. Ora, o facto é que, com modelo ou sem ele, as sociedades modernas, como as pretéritas, têm sistematicamente postergado os direitos dos mais fracos, e a pretensa liberdade de escolha tem sistematicamente votado até muitos daqueles que a defendem a uma situação de opressão por minorias que, no fundo, reeditam ininterruptamente a verdade conveniente de que sempre foi assim, complementada com o espúrio apêndice de que sempre assim há-de ser.
É neste banho de cultura que situo a pergunta que Miguel Sousa Tavares fez a Francisco Louçã, há dias, nas “Conversas improváveis” da SIC Notícias. Perguntava Sousa Tavares por que votara Louçã contra o PEC IV, sabendo que, com esse voto, derrubava o governo do PS e promovia outro que implementaria medidas ainda mais gravosas. Com a mesma lógica (de rendição) justificara João Proença a sua assinatura do último acordo de concertação social: se não aceitasse, o que vinha aí era mil vezes pior. Tal lógica parece apontar para a inevitabilidade da subordinação ao mau, como condição para se evitar o péssimo e propugna claramente o abandono dos princípios e dos compromissos, a favor de um pragmatismo rastejante. Ora, se o abandono dos compromissos, nomeadamente eleitorais, é prática corrente dos partidos que se revezam no poder, podendo-se dizer que faz parte do seu código genético, isto é, da sua natureza, esta sim imutável, já da parte de outras entidades se espera uma atitude diversa. Não será tanto o caso da organização que F. Louçã coordena, uma vez que acredita na possibilidade de reformar o capitalismo (como o prova a sua adesão ao projecto de construção europeia em curso) e na bondade das agressões armadas contra nações soberanas (como o provou com o caso da Líbia, a que se vai seguir, pelo andar da carruagem, a Síria), mas espero que será sempre o caso da CGTP e, sobretudo, do PCP, cuja natureza revolucionária se não compadece com negociatas sórdidas e garante a concretização da mais bela das utopias desde sempre agendada na consciência dos melhores.