Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Considerações brevíssimas sobre poesia

(para a Rosa, a propósito de um poema de António Ramos Rosa)

 

Atento, vejo a chama fulva da abelha

e a cadência do desejo monótono vagabundo

num pequeno corpo ardente e frágil.

O mundo aqui é um sopro verde

em que tudo flui em silenciosos gozos.

Na delícia do ócio o pensamento

entrega-se ao vento e ao olvido.

Só o desejo ordena o fluente ardor

que em mil meandros se propaga no ar.

E de tanto respirar essa pátria volante

eu próprio sou a espessa substância do bosque.

 

António Ramos Rosa, A Rosa Esquerda, 1991, inserido em Antologia Poética, prefácio e selecção de Ana Paula Coutinho Mendes, Dom Quixote, Lxª, 2001, p. 307

 

Sem entrar em pormenores próprios da análise estilística, há neste poema três aspectos particularmente relevantes para um certo debate sobre a poesia moderna, a sua linguagem (o seu hermetismo?) e a atitude do leitor para com ela.

 

Seguindo a ordem do poema, o primeiro desses aspectos é a atenção. O poeta começa por se declarar “atento” à “chama fulva da abelha” e à “cadência do desejo monótono vagabundo”. Passando por cima das metáforas, o que relevo é a atitude para com os pequenos pormenores – o insecto e o seu comportamento – objectivamente, pequenos, não obstante poderem assumir, para o poeta, a dimensão de uma “pátria volante”. O segundo aspecto é a assumpção do ócio e da entrega “ao vento e ao olvido”, isto é, no fundo, ao devaneio, como fonte de prazer. O terceiro, o sentimento de fusão com a natureza envolvente: “de tanto respirar essa pátria volante / eu próprio sou a espessa substância do bosque.”

 

Ora esta atenção para com o que o rodeia e esta entrega sem ansiedade que o leva a ser a própria substância do mundo não serão os únicos, mas são alguns dos factores que “condicionam” o poeta no acto de segregação de uma linguagem que despista tantas vezes o leitor.

 

Paralelamente, não serão a falta de atenção, a falta de entrega e a ansiedade (na busca de sentidos que se querem compatíveis com a lógica formal) que despistam o leitor desprevenido?

Os Malaquias, Andréa del Fuego

Os Malaquias, Andréa del Fuego

 

          Os capítulos curtos – por vezes, curtíssimos – insinuam, logo a abrir, o estilo directo e incisivo da narração:

 

“Serra Morena é íngreme, úmida (sic) e fértil.

“Aos pés dela vivem os Malaquias, janela com tamanho de porta, porta com autoridade de madeira escura.”

 

É assim que, desde as três primeiras linhas do romance, o leitor apreende uma paisagem natural humanizada por um esboço de povoamento. A ténue ironia que matiza a descrição sumária do casebre manter-se-á, depois, a esse nível incipiente, sem ferir a simpatia do narrador pelas suas personagens.

 

“― Corre, Adolfo!

“Donana pedia ajuda ao marido (…)

“(…) Nico tinha olho azul, nove anos. Antônio, miúdo, seis. Júlia, barriguda, quatro.”

 

Nas quinze linhas do primeiro capítulo, com grande parcimónia de meios, estão lançados os dados. Depois, claro, vem o romance. A paisagem alarga-se e abarca a cidade. Umas personagens morrem, outras crescem, outras ainda intervêm, relacionam-se entre si, conhecem destinos diferentes, sofrem os constrangimentos da sua condição. Das personagens que morrem, uma goza de um estatuto particular: Geraldina Passos, mãe de Geraldo. É que

 

“enterrar o corpo não apagou a figura. Restou uma espécie de memória, que mesmo minúscula e transparente tinha uma estrutura, permanecia organizada e material. Circulava como o pó de uma penteadeira não encerada, a respiração de alguém a faria levitar.”

 

Continuando a habitar a paisagem e a acompanhar aqueles com quem vivera, esta personagem contribui, a par de estranhas ocorrências, como o sumiço de Nico através do bule onde fazia café, para a emergência, numa narrativa que, em grande parte, poderia ser lida como documentário de uma certa realidade brasileira, da dimensão mágica, tão entranhada na literatura latino-americana.

 

E o facto é que este romance é daqueles que, mesmo depois de fechados, continuam a povoar-nos.