Trago Poesia Oculta ao Deus-Dará, de Rosa Melo
“Dá cá a mão.
Eu não quero as cicatrizes
Quero as feridas do que dizes”
Rosa Melo, Trago Poesia Oculta ao Deus-Dará, Chiado Editora, Lx.ª, 2009
Há um texto de Charles Péguy, em Clio, dialogue de l’histoire et de l’âme païenne, de 1912, em que o autor se debruça sobre a questão da leitura. Sendo um texto algo extenso, não o citarei aqui na íntegra, mas retiro dele o essencial, traduzindo-lhe alguns passos.
Segundo Péguy, só quando estamos doentes, com aquela espécie de doenças que deixam a cabeça livre e sã, obrigando-nos contudo a ficar acamados e não nos permitindo trabalhar, voltamos a ser o que nunca deveríamos deixar de ser – leitores puros, que lêem por ler e não para se instruir, ou para trabalhar, que lêem para se alimentar dessa leitura, como de alimento precioso; leitores puros, como são puros os espectadores da tragédia e da comédia. E mais, sendo a leitura o acto comum, a operação comum da obra, do autor e do leitor, a cumplicidade deste último com os primeiros impõe-se.
Lembrei-me deste texto ainda a propósito da poesia (tema do post anterior) e, em particular, do livro de Rosa Melo. Não sei se as tais doenças a que se refere Péguy são condição necessária para se ler poesia, pelo menos no sentido que Péguy dá ao verbo, mas admito que criarão uma disponibilidade favorável ao acto.
Mais prosaicamente, creio haver duas maneiras de se ler poesia (porventura, mais, dirão alguns; porventura, uma só, dirão outros): uma, quiçá a dos estetas, consiste na fruição das imagens e das sonoridades evocadas pelo texto poético, que assim se institui como detonador de emoções eminentemente subjectivas; outra, mais própria dos espíritos cartesianos, consiste na busca incessante das motivações e dos sentidos a que estão associadas essas imagens e sonoridades.
Mais cartesiano do que esteta, muito embora reconheça o erro de Descartes, foi provavelmente privilegiando a razão sobre a emoção que li estes poemas “contidos, vigiados”, como diz José Fanha, no prefácio a Trago Poesia Oculta ao Deus-Dará. Com efeito, esta contenção é um acicate para o leitor. Difícil, se não impossível, não tentar, a cada verso, encontrar a circunstância da vida da autora que o explica, ou seja, que o reconduz à “univocidade da linguagem” (A. Ramos Rosa), descontada a “deriva semântica” (Luís Quintais) própria do discurso poético.
Trata-se de uma poesia intimista, mas de um intimismo travestido; parafraseando Eça, é como se, sobre a nudez forte da sua verdade interior, a autora poisasse o manto, ora diáfano, ora não tanto, de muitas outras verdades, que são quantas fazem o mundo. E a sua poesia convida-nos para um percurso de desvendamento, o que comporta o perigo de nos atermos à observação da árvore (por mais frondosa que seja) e de não atentarmos suficientemente na floresta, que são os poemas. Impõe-se, por isso, fazer a viagem de regresso a esses objectos literários – dignos de atenção de per si.
Deter-me-ei sobre alguns aspectos de alguns dos poemas do livro, começando por uma tentativa de classificação incipiente.
Há um poema que é mero jogo formal, uma espécie de “coisa de folgar e gentileza”, como diria Garcia de Resende, mas ao gosto do nosso século. É o caso de “Guê de gaivota”, todo feito de aliterações em “g”.
Em dois outros, “Uma pena…” e “Já fui”, a estrutura rítmica heptassilábica (que a disposição dos versos não oblitera) é muito harmoniosa. Estes poemas-canções criam uma melopeia que embala o leitor e o leva a secundarizar, no plano do conteúdo, a nota intimista algo disfórica:
“Bati asas
e caí.”, num caso;
“Isto antes de estar morta.”, no outro.
De assinalar que o segundo destes poemas sugere, quer pelo ritmo, quer pela anáfora, quer até pela ironia e por uma escolha vocabular algo surrealista, o poema “História de um português qualquer”, de José Fanha (in Cartas de Marear, musicado por Fausto), ainda que a faceta surrealista seja mais notória em Fanha.
Há poemas de estrutura marcadamente narrativa, que fluem com tal naturalidade que lembram Camões no soneto “Sete anos de pastor Jacob servia”, caso de “Foi, foi…”. Em “Um voo apenas”, a interpelação sobrepõe-se, sem anular o efeito narrativo.
Há poemas “impenetráveis”, isto é, em que debalde procuro um sentido, porque o agenciamento dos signos linguísticos é tal que parece nada mais visar do que a confusão do leitor, como acontece com “Inícios”, “Casulo” e “Blinking”, por exemplo, mas noutros, caso de “Futuro?”, nem esse disparar em todas as direcções logra desvanecer a clareza mediana de uma mensagem eufórica, que diz: um futuro risonho virá, mas esse futuro é talvez tão longínquo que só “abrindo o ar” o poderei / poderemos ver. Socorrendo-me novamente de um texto de Luís Quintais, que, neste caso, cita Valerio Magrelli, “o texto é um pouco como aqueles funcionários de aeroporto que trazem um cartaz nas costas a dizer: ‘Follow Me’”. Ao que Quintais acrescenta: “não estamos nunca seguros que este funcionário saiba exactamente o que quer”. Com efeito, nós vamos no encalço deste poema, que começa com um assertivo
Preciso ver
Abram o ar!,
mas logo somos desviados para um domínio léxico-semântico muito particular:
Corram, acrobáticas donzelas
nunca emudecidas pelo medo!
Tragam açoitadas
varandas
todas amarelas!
Ousem!
Se, por elas,
a sombra das acácias…
Que relação entre estes sintagmas, os dois versos iniciais e os dois finais –
Virão até mim Primaveras
E uma grande vontade de rir. ?
Atrever-me-ia a usar as palavras com que António Ramos Rosa explica a génese do seu poema que começa com os versos “Tudo estava feito / para eu não ser assim”: “a liberdade da linguagem deste poema corresponde à explosão de um núcleo emocional do sujeito na sua resistência à pressão asfixiante da norma social. Assim este poema não será apenas um jogo de linguagem, mas também uma eclosão orgânica que’ provocou’ um retorno à matéria do mundo transposta pelo sujeito mediante a linguagem poética”. Não que a norma social seja necessariamente relevante no caso do poema de Rosa Melo, mas sobretudo pelo enfoque na “explosão de um núcleo emocional” e na dupla natureza de jogo verbal e de “eclosão orgânica”. Porém, esta cosmogonia poética não será aplicável a tantos outros poemas?
E há ainda, prosseguindo nesta nomenclatura imperfeita, o poema-efeméride, casos de “25 blue and gold” e do poema que tem mesmo o título “Efeméride”, ambos de tonalidade disfórica, seja porque
perdemos a vontade de rir.
seja porque
Levaram-nos o Natal
Apenas lhe sinto o frio.
Há, enfim, sem a pretensão da exaustividade, o poema da atracção do perigo (“Esverdeado”), da urgência do desejo (“Ao rubro”), da mudança (“Transparente”, entre outros).
Depois, as imagens, em registo mais concreto ou mais abstracto: “gaivotas acenam” (p. 12), “Inteiriçado, o tempo / de granito / serve-me a ausência / a solidão” (p. 17), “Era um derrame de brasas /Um tufão de marés vivas / Eram silêncios uivantes / Primaveras incumpridas…” (p. 32), “No ocaso duma qualquer oliveira” (p. 36), “E um riso de criança / Gotejando Dezembros” (p. 37).
O tema da casa ocorre em vários poemas, por vezes associado ao da mudança (“Viagem anunciada”), quer por referência directa ao espaço físico da intimidade (mesmo poema, “Um voo, apenas…”), quer por referência a situações relacionadas com esse espaço, como acontece em “Quandos…” e “Vou tecer um pano longo”, poema inaugural. É sobre este que me debruçarei um instante, uma vez mais na tentativa de descodificar a semântica da autora, apontando-lhe, de passagem, aquilo que se me afigura ser uma possível fragilidade.
“Vou tecer um pano longo” é um poema em que a sugestão da figura mítica de Penélope (também glosada por David Mourão-Ferreira num belo poema de Os Quatro Cantos do Tempo) é instilada desde o primeiro verso, intensificando-se depois, por via dos signos denotativos da demora e da obrigação adiada e ainda graças à adenda do tempo estagnado, pantanoso, o tempo da espera sem fim, conotado pela extensão das tardes de domingo a todas as noites. Este tópico da fidelidade é seguidamente associado às ideias da recusa da escrita (talvez só da escrita banal, da escrita não poética), da vizinhança prosaica e da poesia que fluirá, como música que é (“A minha música tocará baixinho”). Ainda que a autora possa recusar esta leitura, parece-me líquido, para qualquer leitor atento, que estamos perante um poema em que, sem virtuosismos linguísticos, o sujeito poético envia um recado a um interlocutor omisso a nível sintagmático: esperar-te-ei, enquanto a poesia me acompanhar, mesmo sem suporte material, e, por conseguinte, independentemente de ser ou não passada a escrito.
Ora este conteúdo é um pouco afectado na sua singeleza lírica pela ocorrência de dois distractores: primeiro, o ritmo; depois, o registo vocabular.
Os três primeiros versos do poema imprimem-lhe logo, a abrir, um ritmo harmonioso, muito próprio da poesia portuguesa, o ritmo heptassilábico da redondilha. Mas esse ritmo é abruptamente quebrado pelo 4.º e 5.º versos. Há, depois, mais quatro heptassílabos e, novamente, uma interrupção, com um decassílabo e um octossílabo (transformável em heptassílabo, com alguma boa vontade), três heptassílabos e um hendecassílabo final. A regularidade métrica não é seguramente algo a que a poesia moderna dê grande importância, mas o facto é que estas irregularidades dão um encontrão ao leitor, levando-o a pensar numa falha técnica, e isso não beneficia a eficácia pretendida pelo autor.
Quanto ao registo vocabular, são os signos “esferográficas” e “papelaria” que comprometem a sua coerência. A atmosfera do poema é marcada pelo tempo, um tempo de espera e de algum sofrimento. Ora o lirismo não se compadece com o prosaísmo de tais termos.
E, finalmente, uma referência ao título do livro: Trago Poesia Oculta ao Deus-Dará. Este título contém um oxímoro revelador: a expressão “ao deus-dará” significa “à toa”, “sem preocupação”, logo, sem merecer cuidados, significado este que é antónimo de “oculto”. Assim, a poesia deste livro é simultaneamente “contida, vigiada”, voltando a Fanha, e deixada por aí, à mercê de qualquer olhar. Com o que fecho o círculo da análise, regressando à ideia de intimismo travestido com que comecei. O sujeito poético mostra-se-nos, mas envolta em roupagens que, em última análise, são a própria poesia, porque o poeta é sempre um fingidor.
As citações de António Ramos Rosa e Luís Quintais foram colhidas em “Relâmpago”, Revista de Poesia, dirigida por Gastão Cruz, edição da Fundação Luís Miguel Nava, n.º 14, de Abril de 2004, número em que vários poetas portugueses contemporâneos respondem à mesma pergunta: “Como se faz um poema?”