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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

PORTA SIM PORTA NÃO, de Julieta Lima

 ASSIM SE FAZ LITERATURA

 

Entra-se em PORTA SIM PORTA NÃO, de Julieta Lima, não por uma porta, mas pela roda – a roda dos filhos entregues ao destino do acaso. “Filho de pais incógnitos, ouviste? Incógnitos!” O tom está dado. O tom e o mote para setenta e cinco páginas que nos hão-de franquear a entrada num mundo de deserdados, a começar por este Sr. Venâncio, que, moribundo, revê numa cavalgada delirante todo o percurso da vida.

 

A sugestão do Vitorino Nemésio de Quatro Prisões Debaixo de Armas não tarda. Mas como evitar a lembrança de Raul Brandão e do Redol de Avieiros, por exemplo, quando, logo a seguir, vemos, nas fainas do mar, pescadores em luta pela sobrevivência, sua e das suas famílias, mulheres que se esgotam nas lidas do dia-a-dia, homens e mulheres tão autênticos nas suas grandezas e misérias que quase custa a crer que sejam só de papel?

 

Assim é o Salva-Moços (Salva-Moces, no peculiar dizer olhanense), filho do infortúnio, dotado da virtude rara da abnegação votada à sorte do seu semelhante, que vinga o assassínio do pai por três agentes da Pide, dando-lhes merecido repouso no leito da ria. Mais tarde, noutra referência à conjuntura política que era a nossa de então, o Salva-Moços perderá a mão direita na guerra colonial, designada do Ultramar pela propaganda do regime. Pide, repressão, guerra colonial, eis referências históricas que não podem passar despercebidas e que são retomadas, logo a seguir, através da personagem de Zé Bechôco e de uma corporação, a GNR, cujas malfeitorias no tempo da ditadura fascista são bem conhecidas de todos.

 

Desde miúdo avesso ao esforço, este Bechôco ingressa na “Guarda” para fugir aos embaraços do trabalho. Ainda assim, só o consegue graças a fraude que lhe permite suprir carências insanáveis no domínio da escrita. Investido de “autoridade”, usa de tal brutalidade com as gentes da Vila que acaba por ser, ele mesmo, desancado com tanta violência que perde o ouvido e é obrigado a deixar a corporação.

 

Em “Mariana”, a narradora, depois de apelidar ironicamente de “heróis da guerra do ultramar” os dois filhos mais velhos da personagem que dá o nome ao conto, um dos quais pedófilo, acusa-os de terem impunemente matado e violado por terras de Angola, numa guerra dita “de merda”, que leva o Chico Toureiro do conto do mesmo nome aos vinte e um anos.

 

Na sintagmática destes contos e na linearidade de uma primeira leitura, referencial, os actos cometidos pelas diferentes personagens instituem-se como acção individual. Contudo, a natureza paradigmática e simbólica que a narrativa ficcional aspira a ter na sua relação com o real implica que os factos assim atribuídos a personagens individuais constituem, de facto, um libelo acusatório da violência repressiva usada pelas forças policiais e da acção colonial no seu todo, na exacta medida em que Zé Bechôco, mais do que soldado da “Guarda” é a própria “Guarda” e os “heróis da guerra do ultramar”, mais do que dois criminosos à solta, são o próprio exército colonial.

 

Mas, paralelamente a este conjunto de referências a um contexto político preciso, há, em Porta sim, porta não, um outro acervo de referências cuja natureza política é igualmente incontornável e que se prende agora com as condições de vida das gentes de Olhão – pescadores ou não. Assim, em “Jaime Bento”, discute-se a assistência na doença: Jaime Bento sobreviverá “— Se lhe derem um rim… mas quem? Só em Lisboa, a poder de muito dinheiro.” “— País de malandres! Só há saúde p’rós riques! Os pobres que trabalhem e morram aí esgrimades. Eles querem lá saber…” Uma farpa de Dona Libânia, em “Chico Toureiro”, atinge a sociedade onde aqueles que proporcionam o alimento aos outros nem sempre dele dispõem para si mesmos: “— Fome de merda! Andar um homem à pesca do comer para os outros, com a barriga vazia…” E, como que recapitulando todas as chagas que apoquentam este pequeno universo, o desemprego, a fome, o alcoolismo, a violência doméstica, a pedofilia, o recurso à prostituição como última hipótese de sobrevivência e a implícita condenação de uma ordem social injusta irrompem com força em “O Asilo”.

 

Inventariadas as ocorrências da temática política, voltemo-nos para a religião, tema que surge com alguma insistência ao desfolhar do volume. Assim, quando Zé Bechôco, no conto do mesmo nome, bafejado pela sorte, regressa endinheirado, Zé Cavalo, “mais ateu do que um burro”, não desperdiça a oportunidade de azucrinar o Padre Recrino com a atribuição irónica do enriquecimento a milagre. Isto porque, di-lo Zé Cavalo já sem ironia, “o seu Deus é grande mas ao pé do Diabo que escravelhou isto tudo… é uma porra dum anão”. Em “Jaime Bento”, o anticlericalismo está presente, através da personagem Jôquim da Arreganhuda, “que nem podia ouvir falar em padres”, mas é em “Cabana” que reencontramos o discurso crítico das crenças religiosas e das superstições. É assim que a narradora, criança, estranha a parcimónia com que Deus faz uso do perdão, quando ela própria “tinha perdoado a Xenana quando ela [lhe comera] os pássaros…”, e a sua avó Helena profliga resolutamente as “asneiradas” com que enchem a cabeça das crianças. No fim do conto, descoberta a símplice humanidade da personagem que motivava os medos, o desabafo da narradora erige-se, qual manifesto anti-obscurantismo, em fórmulas belas e concisas: “Saí. Encontrei-me por fim com a beleza da noite, liberta da escuridão amarga que me atravancava a alma de monstros e de sombras.” Afinal o Homem da Cabana não era do Além, era mais um hóspede na solidão deste Aqui. Por isso a minha avó não tinha medo.”

 

Se anticlericalismo e ateísmo afloram nestes contos, a religiosidade entranhada da gente do povo, e em particular das comunidades piscatórias, também está presente. É o que acontece no conto “Ruço”, com a invocação de Santa Bárbara, por ocasião de forte tormenta.

 

Outra temática significativa é a do respeito pelos animais, sendo que, por vezes, são eles quem propicia a exteriorização dos sentimentos mais nobres dos homens. Assim acontece em “Dona Bibas”, que, tendo a particularidade de ter uma cadela, “Formiga”, como narradora, é um dos contos em que mais emotivamente sobressai a humanidade dos homens do mar, que param as máquinas e fundeiam o barco para ajudarem ao parto da cadela: “Os rostos estropiados de sol e vento suavizaram-se em traços de criança. Tanta ternura, quanta, nem os humanos sabem que a possuem.” E é seguramente aquele em que um animal mais poeticamente se despede da vida, num último suspiro panteísta: “Já não ouço nada. O mar ao largo do Farol leva-me de volta ao outro lado, lá onde o vento e as gaivotas pastorejam as almas de todos os cães de água.”

 

Em “O Chico Toureiro” o olhar da narradora compadece-se com a má sorte dos animais, vítimas daqueles cuja racionalidade os não põe ao abrigo de instintos primários. É com ironia que a narradora investe contra este toureiro gabarolas, que, “Antes das célebres largadas, levava horas afiando a navalha porque um dos seus grandes gozos era vê-los [os touros] enfurecidos com dores, à marrada com a estupidez humana que, como se sabe, é invisível.”

 

Mas o mesmo olhar implacável para com a malvadez de alguns homens (ou dos homens em algumas circunstâncias da vida) faz-se benigno quando, abandonada a jactância que o caracterizava, o prevaricador parece arrependido. Mestre Isolino aconselha então paternalmente o jovem toureiro escarmentado: “— (…) Pensa na tua vida, filho, se é correcto ganhares a vida fazendes pouco de um animal que se encandeia com o encarnade? Um animal de Deus que sofre e dêta lágrimas como a gente?!” Aliás, em Mestre Isolino, esta compaixão para com o sofrimento dos animais vai de par com um profundo conhecimento da natureza dos homens: “— Não digas nada, filho! Um homem nasce, vive e morre assovacade no mede. O resto é fingimente… Ou pensas quê cá não me encolhe todo quando vejo as águas marafadas direito a mim?”

 

Em “Mariana”, sobreleva a compaixão da narradora pela velha senhora votada ao abandono por filhos e netos e em “A Boda”, mesmo se Rita frustra os planos da mãe, Dona Aldinha, de a casar em grande estadão, nem por isso a descoberta da sua gravidez originará um drama familiar. Com efeito, é sempre um olhar terno que a instância narradora derrama sobre as suas personagens em sofrimento, solidarizando-se com elas.

 

Do ponto de vista da expressão, Julieta Lima revela notável mestria, para começar, no manuseio do sociolecto olhanense (que falta faz um glossário!). Contrariamente ao que por vezes acontece, o falar típico de Olhão não é aqui macaqueado com intenção anedótica, nem sequer como adorno ou ingrediente linguístico para consecução da cor local. Não. A imbricação entre linguajar, cenários naturais, caracteres das personagens e natureza das acções é tal que todos estes elementos se implicam mutuamente. Por outro lado, a construção dos diálogos e a sua articulação com o discurso do narrador resultam numa toada constante, sem quebras, e numa indesmentível impressão de autenticidade, potenciada pela propriedade da linguagem – qualidades que terão ficado patentes em algumas das citações semeadas neste texto e que justificam uma referência a este livro em qualquer vindoura História da Literatura Portuguesa.