No Orvalho das Horas, de Julieta Lima
Num texto de 2004 publicado no n.º 14 da revista “Relâmpago”, António Ramos Rosa refere-se à dificuldade inerente à leitura de um poema nestes termos: “/o poema/ destina-se a um leitor que o lê com a receptividade necessária para não traduzir o que nele é inerente à poeticidade específica da poesia – ou seja, a sua resistência a uma explicação fácil e conclusiva”. Não sendo defensor do argumento de autoridade (magister dixit), não deixo de reconhecer a razão do poeta e a minha temeridade, ao ensaiar explicações porventura fáceis e conclusivas para os poemas que Julieta Lima (JL) publicou em 1989 com o título No Orvalho das Horas. Talvez devesse, seguindo a lição de Casimiro de Brito, contemporânea da de Rosa e publicada na mesma revista, “estar aberto”. Diz ele assim: “Se há poemas que se escrevem em estado de graça, outros há que resultam de muito arranhar, escavar: no primeiro caso estou aberto, e alguma coisa entra; no segundo, preciso de continuar a escrever, a respirar, mesmo doendo, mesmo não sabendo como, para continuar vivo – embora nada em mim saiba porque é tão crucial continuar vivo, continuar escrevendo”. Ora esta ideia de “estar aberto” parece-me caracterizar não apenas o estado de graça do poeta, mas igualmente a atitude em grande medida passiva do leitor de poesia, que se deixa inundar pela emoção da palavra poética, por oposição à atitude activa do leitor de ficção narrativa, que sai de si mesmo para entrar na história que lê, debruçando-se sobre as motivações das personagens e os meandros da intriga. Admito que haja nesta tentativa de separação das águas alguma artificialidade e que o leitor de um romance também sucumba à magia da palavra, desvalorizando a diegese. Admito que sim. Sobretudo se o romance em questão não obedecer aos cânones tradicionais do género e, enveredando pelos domínios da aventura poética, tender para a obnubilação dos nexos narrativos a favor do manuseio da palavra-objecto. Ao dizer isto, penso nos últimos romances de António Lobo Antunes, por exemplo, onde é notória essa miscigenação lírico-romanesca. Mas, justamente, essa confluência de géneros arrisca-se a deixar insatisfeitos quer os amantes de poesia, porque é de romances que se trata, quer os amantes de ficção, que se vêem metidos num labirinto e não dispõem de asas (fossem elas de cera), para regressar ao exterior.
A DEMANDA DE AUTENTICIDADE
Feita esta advertência e prévio pedido de desculpa para a minha atitude talvez demasiado activa, começarei por sublinhar o carácter introspectivo da poesia de JL. Sem dúvida, a poesia é sempre introspectiva, no sentido em que é debruçado sobre si mesmo que o poeta encontra a verdade que depois finge, mas em No Orvalho das Horas encontramos um olhar particularmente acutilante do sujeito poético sobre si, e o fingimento nem sempre adquire uma espessura tal que oblitere o fulgor da verdade. É, de resto, o que parece dizer-nos o poema XIV, espécie de proclamação de autenticidade:
Foi um véu / Ou antes máscara / Que este tempo todo / Me cobriu o rosto? // Agora / Ofereço ao vento / As ventas destapadas / E exponho-me / Ao calor de um sol já posto. // Mas sem véu / Nem máscara // Para que seja riso o riso / E choro o choro / E rugas as rugas… // Não ao inumano esgar / Que me foi imposto!
Esta mesma assunção de autenticidade manifesta-se no poema XXVI, de forma mais concisa e lapidar:
Queria ser o Mar / E não um charco // Ser o oceano // E não esta ironia
De me sentir / Num pântano deserto / O destroço de um barco.
Poema curto em que uma única rima, no final, dá ao texto como que uma chave de ouro, este tipo de estruturação sugere fortemente a poesia de José Gomes Ferreira, com uma diferença fundamental: no autor de Imitação dos Dias, mesmo quando o tom é confessional e o conteúdo intimista, há sempre um olhar para o mundo circundante, um piscar de olho ao leitor e uma ponta de ironia que nos recordam a autopsicografia pessoana. Mais ainda: se JGF reage positivamente ao solipsismo (“Ó pastor de pascigo / deitado no lajedo / da tarde calma: / se eu vivesse, como tu, tão só comigo… / Oh! Que medo / dos lobos de alma!” in J. G. F., Poesia III, Diabril, Lx.ª, 1975, p. 110), já Julieta Lima – ou, melhor, o sujeito emissor do discurso, em No Orvalho das Horas – parece dar-se bem com os “lobos de alma”. Deixando “a dor que deveras sente” latejar à superfície do poema, a ironia e o fingimento são ofuscados pela verdade. Mas se a verdade da dor se oferece ao nosso olhar, já a verdade que à dor conduz, para se manifestar, parece carecer da noite – tema recorrente em seis poemas (I, IV, XVI, XX, XLIV, XLVIII) e presente desde o primeiro: “É de noite / Que me dispo da treva / E me visto de trevo” // É de noite / Que me visto de água / E me dispo do medo / E me dispo da mágoa // E é de noite / Que me visto de riso / Que me dispo de pranto // É de noite que vivo / Renasço / Revivo // É de noite que eu canto”.
Este poema inaugural reúne alguns dos temas mais importantes do livro: para além do da noite, o da assunção da autenticidade, através da metáfora do vestir e despir, o da mágoa, o do canto, o do renascer e o da água. O tema da água é o mais recorrente, com dezoito ocorrências, e creio poder associar-se a outros, concorrendo com eles para a tessitura de uma possível linha de sentido.
O TEMA MATRICIAL DA ÁGUA
A água é, por um lado, o elemento primordial que purifica, por outro, um símbolo do renascer. Ora, o anseio de autenticidade que encontrámos no poema XIV esbarra no “véu”, na “máscara”, no “inumano esgar” imposto pelas convenções sociais e pela moral vigente, e implica provavelmente o acto purificador e redentor que se concretiza no renascer “(…) Num corpo de orvalho / Com veias inertes / Onde corra o Mar…” (II). A premência imperiosa desta busca está expressa na obsessão do caminhar que nos traz o poema III – “Caminhar / Sem caminho / Por onde não há caminhos // Afagar / Os olhos esmorecidos / Dos náufragos / Por onde não há Mar (…)” – mas também noutros poemas em que sobreleva o tema da asa e do voar, significante explícito do anseio de mudança. Assim acontece no poema V, convite de desarmante singeleza – “Vem comigo / Ser pétala / Asa / Mais nada… // Vem / Seguir o vento… // Pousar cantando / No alto de um abeto / Ou de uma casa…” –, no poema VI, de renúncia – “Deixa que eu continue a ser uma gaivota / A voar / De asas abertas / Sobre o oceano / Das minhas lágrimas / (…)” –, ou no poema XLIV, que converge com o poema I também nos temas da noite e do vestir / despir: “De noite / Visto-me de pomba / E saio esvoaçando / P’los telhados // (…)”.
A água surge igualmente, num jogo de correspondências metafóricas, como o próprio sujeito poético que um “barco transparente” sulca, no poema X, poema em que, uma vez mais, importa realçar a importância da rima. A consonância fonética, no final dos versos 6, 11, 19 e 24, imprime ao poema musicalidade e uma cadência harmoniosa, ao mesmo tempo que a narrativa que ele enforma adquire ume segmentação em quatro momentos (necessariamente curtos) e uma conclusividade que vem ao encontro das preocupações metódicas dos espíritos mais cartesianos… Quanto ao conteúdo temático, de assinalar que não se está já perante a renúncia ao encontro, como no poema VI (“Deixa que eu continue a ser / (…) / Fome sem boca (…)”), nem perante a sua intenção, como no poema IX (“(…)Até que eu solte de mim / O cio de fera / Que ando a mascarar de branca asa / E o arraste por fim / Sem pudor sem roupa / Para a minha casa!”). No poema X, o desejo desemboca na consumação do encontro, tudo isto entendido no plano da efabulação, aliás corroborado pela reiteração do verbo “inventar”: “Invento-te / Invento-me / Sem formas / nem cor / Nem perfis / Nem tela! // Nós dois… / Esculpidos / No silêncio de uma praia / Que a anarquia do Mar / Afaga e flagela! // Invento-te // Barco transparente / Em indecisos traços / Adivinhando / Ais libidinosos / No sexo da água / Em que me torno / Ousada ondulada bela / A estremecer / Quando de manso / Me rasga capitosa / A volúpia acerada / De uma vela…” Curioso notar que a “água em que me torno” se transmuta em elemento masculino, no poema XXIII, poema em que a afirmação desassombrada do desejo como que conduz a uma inversão de papéis: “Fiquei olhando a porta / Por onde desejo / Que voltes a entrar… // Espero! // Porque o meu fogo / Precisa da frescura doce / Do teu Mar…”
O TEMA DA MORTE
Se a água se impõe, desde o primeiro poema, com as virtualidades significativas a que me referi atrás, o tema da morte, depois de uma primeira ocorrência, fugaz, no início – “ // (…) Caminhar de rastos / No rastro da morte / E caminhar caminhar // (…)” (poema III) – surge com alguma insistência nos últimos poemas. É o aceno dos ciprestes, no poema XL, são as flores murchas em cima do caixão, no poema XLVII, é a reunião de todos os que se amaram, no poema XLVIII, “E os mortos / A rir de tudo isto / Do outro lado da mágoa” (poema L). Poder-se-ia pensar que o sujeito poético se rende, por fim. Engano. No poema III, não faz senão caminhar “Na peugada do eco / Desse sopro de vida / Que nunca ninguém / Me soube dar”. Ao aceno dos ciprestes, no poema XL, ordena “Esperai ciprestes! / Tenho antes / De arrasar esta parede, / Que denegou a chuva / À minha sede, / Exasperando um orco / No meu rosto!”. No poema XLVIII, apesar de tudo, todos se reúnem “À volta do meu fogo”, e a chama é sinal de vida. No último poema, L, os mortos riem-se, a mágoa já não os afecta – maneira irónica de desvalorizar o sofrimento inerente à condição humana. Apenas no poema XLVII julgo sentir a emoção própria da morte, de mistura com uma vaga religiosidade de contornos panteístas. De facto, o sujeito poético anseia “descobrir / que luz é essa / que nunca vi”, faz referência ao orvalho (de novo, a água) “que me leva / de volta à transparência / de onde eu nunca / deveria ter saído” e espera que “talvez um dia / nos encontremos // pétala, sépala / da mesma flor…” Porém, o grau de ambiguidade próprio da metáfora autoriza, provavelmente, uma outra leitura, em que o tema da água como símbolo do renascer, e o regresso à “transparência” podem não ser mais do que a reassunção de um estado (social, relacional) mais verdadeiro.
A AVENTURA POÉTICA
Temática menos frequentemente expressa, ainda que seja absolutamente óbvia a preocupação da autora com o uso da palavra, é a da aventura poética. A procura da expressão mais conveniente está bem patente no poema XXIX – “Versos de amor / Ardendo na lareira / Inacabados… // mato-vos, versos, / Sem direito a um poema / A um poeta a um ai… // Como quem aborta / Filhos atrás de filhos, / À espera de melhores dias / Ou… / De melhor pai.” –, como no poema XXXI – “Frenético o tropel / Em que me envolvo / Na busca das palavras / Rigorosas / Que dêem corpo / Aos arrepios do corpo / À inquietação / Das árvores das rosas // (…)”. Mas o gosto pela ourivesaria verbal aqui declarado transparece noutros poemas, independentemente da sua temática. É o caso do poema XXXVIII, de uma simplicidade e fluidez que não podem deixar de impressionar e onde se procede ao desvio sistemático da linearidade sintagmática denotativa para os lugares improváveis das virtualidades: “Acordo na Madrugada / Para caminhar / Sobre o orvalho das horas // Espreguiçar-me sobre o silêncio // E aportar / Sobre a escala / Deste meu último desvario: // De ter o meu olfacto apaixonado / Pelo teu hálito aromoso // – Em terna simbiose de castidade e cio!”.
Contrariando este “desvario” poético, há, por vezes, um resvalo para o prosaísmo que surpreende. Assim acontece no poema II, onde a imagem cintilante de “apedrejar a lua” é deslustrada pela palidez de “Esquecer este tormento / De te amar”, e no poema XVIII, onde os lugares-comuns da “Primavera que passou”, do que sobrou da vida, da fonte que secou e do zero no “rosto perplexo” (adjectivo banal) destoam irremediavelmente. Outros exemplos poderiam ser citados. Pelo seu peso no conjunto, estes poemas acabam por imprimir a sua marca no livro, que se revela dúplice: a sua parte mais substancial é constituída por poemas em que a linguagem transfigura a realidade, no que se institui claramente como discurso desviante, ou seja, metafórico, poético; uma parte menos significativa envereda por um registo por assim dizer coloquial, denotativo, e nesta última parte há que pôr de lado a expectativa da formulação que despista e acolher o poema como sintagma, que é, despido de virtualidades, frontal e directo, exprimindo apenas a verdade do sentir, mas, por isso mesmo, distante da “poeticidade específica da poesia”, para retomar a expressão de Ramos Rosa.