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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Conversa na Catedral, de Mário Vargas Llosa

Grande romance, esta Conversa na Catedral, onde Vargas Llosa nos mostra um Peru que, em meados do século XX, vivia sujeito aos rigores de sucessivas ditaduras militares, mergulhado na corrupção e na miséria, palco de violentíssimas contradições sociais. Entre a burguesia, nas suas versões civil e militar, os trabalhadores de uma indústria incipiente e a habitual horda de marginais sem eira nem beira que tradicionalmente se deixam arregimentar pelos detentores do poder e constituem o lumpemproletariado, estabelecem-se relações de poder e dependência de uma enorme variedade, que dão corpo e substância às seiscentas e trinta páginas desta 6.ª edição D. Quixote. É, contudo, sobre aspectos formais do romance que tecerei breves considerações.

 

Uma das primeiras estranhezas que a leitura proporciona é a que resulta de o narrador fazer um uso sui generis dos discursos directo, indirecto e indirecto livre, que manipula com grande liberdade. Atente-se, por exemplo, neste passo:

 

É mesmo boa pessoa, pensava, enquanto se dirigiam à casa de jantar, e o senador pois é assim, sardento, mal o Verão acabasse fossava a valer, prometia-lhe, e Popeye jurava, papá. Durante o almoço, o senador atirou-lhe algumas piadas, a filha de Zavala ainda não te dava trela, sardento?, e ele corou: já ia dando um bocadito, papá. Ainda és uma criança para teres namorada, disse a velha, que se deixasse de tolices por enquanto. Que ideia, ele já é crescido, disse o senador, e além disso a Teté era uma linda moça. Não dês o braço a torcer, sardento, as mulheres gostavam de se fazer rogadas, a ele tinha-lhe dado bom trabalho conquistar a velha, e a velha morta de riso.” (p. 44)

 

Por vezes, a irrupção inesperada do discurso de uma personagem no discurso do narrador, sem verbo declarativo nem sinais convencionais, faz lembrar Lobo Antunes:

 

“Popeye ia sentar-se, mas Santiago vamos lá acima ao meu quarto.” (p. 55)

 

 Seja como for e como sempre acontece, a estranheza cessa após algumas páginas, mesmo quando nos deparamos com passos como o que segue e cuja sintaxe suscitaria um amontoado de traços vermelhos em qualquer exercício escolar:

 

“Acompanhou-a até à esquina, ao despedir-se recomendou-lhe que se as raparigas me viram inventa uma mentira qualquer, que tinha vindo trazer um recado, que mal me conheces.”

 

Outro procedimento não canónico (que não exemplifico porque a compreensão da citação exigiria o conhecimento global do texto) é o entrosamento de diálogos pertencentes a personagens distintas e afastadas no tempo ou no espaço, o que (mais uma vez, após o desnorte inicial) propicia a apreensão pelo leitor de acções distintas em simultâneo.

 

Por vezes, o entrosamento atrás referido contamina o discurso do narrador e assiste-se, então, a uma miscigenação de assuntos. A alternância de conteúdos determina, nestes casos, uma sintaxe sincopada:

 

Como um súbito relâmpago no céu nublado, aquele rapaz de Direito tinha sido um dos que se encerraram em San Marcos aquando da revolução do Odría, uma brusca confidência rasgava repentinamente as conversas cinzentas, e tinha estado preso e feito greve de fome na prisão, e acendia-as e tornava-as febris, e só o tinham soltado havia um mês, e essas revelações e descobertas, e aquele tinha sido delegado de Económicas quando os Centros Federados e a Federação Universitária funcionavam, despertavam neles uma ansiosa excitação, antes de a polícia ter destroçado os organismos estudantis prendendo os dirigentes, uma feroz curiosidade”. (pp. 117/118)

 

Os meus sublinhados no passo transcrito assinalam os sucessivos segmentos pertencentes à mesma ordem de ideias e ao discurso do narrador. Lendo-se, primeiro, esses segmentos e, depois, os não sublinhados (reproduzindo falas de uma ou mais personagens), a coerência lógica é reposta, ao mesmo tempo que se apreende simultaneamente a informação do narrador sobre o ambiente, por um lado, e o relato a que procedem outras personagens, por outro lado. Este e outros procedimentos já referidos atestam, é claro, um aturado trabalho de reformulação exercido a posteriori sobre o discurso literário.

 

Esta apaixonante leitura é ainda iluminada pelo excelente prefácio de João de Melo – texto belo e profundo, sobre Lima, sobre o Peru, sobre os escritores latino-americanos, sobre os combates dos homens, enfim, sobre esta “prosa de júbilo e de sagração da arte narrativa” (p. 16).

Sobeja a infâmia, faltam as palavras

O link é este: www.youtube.com/watch?v=gNu5BBAdQec. É uma colagem de sequências filmadas em diferentes oportunidades, de 2010 até 2012, que nos mostra um Pedro Passos Coelho muito crítico do anterior governo, por ter feito o que ele – Passos Coelho – jamais faria e prometendo jamais fazer tudo aquilo que, uma vez chegado ao governo, fez, faz e fará. Mas noutras ocasiões, desde que se tornou notória a desconformidade entre o discurso eleitoralista anterior à chegada ao poder e a prática posterior, outros links de idêntico teor me têm sido enviados. Traço comum a todos eles: a falta de vergonha e o cinismo destes nossos governantes. Falta de vergonha e cinismo tais que nem o talento de quem melhor maneja a pena os logra denunciar com a devida acutilância. Sem contar que verter em posts o asco que isso não pode deixar de suscitar tem sempre o indesejável efeito de convocar o vómito. Por isso, a omissão da palavra se me afigura opção mais higiénica, o que explica um silêncio prolongado em relação à actualidade política portuguesa e, em particular, à acção do actual governo. Por outro lado, se reconheço que a palavra é uma forma de acção, também convenho que, em circunstâncias como as actuais, muito mais do que de palavras, carecemos do poder performativo de acções transformadoras. Se Eça disse de um governo seu coevo que, sendo uma nódoa, só sairia com benzina, deste poderíamos dizer que, sendo um aglomerado granítico de mentira, de velhacaria e de burla, só sairá com dinamite. Excluída a hipótese do recurso a explosivos, usemos a arma que – primeiro, nas europeias, depois, nas legislativas – volta às nossas mãos vazias. Algo me diz, porém, que estaremos, uma vez mais, a tentar endireitar a sombra à vara torta.