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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Seguro e Costa – líder bom, líder mau

Os debates televisivos que opuseram Seguro e Costa (melhor dizendo: em que os dois correligionários (!) expuseram a sua putativa oposição recíproca) são bem elucidativos do funcionamento da democracia em que vivemos e dos seus sustentáculos – os partidos do chamado “arco da governação” ou “da governabilidade”.

 

Gerir os seus negócios, tal é, segundo Marx, a missão cometida pela burguesia aos governos que se sucedem no contexto desta democracia. Ora a parlamentarização da vida partidária, com as lutas intestinas pelo poder, a existência de tendências organizadas, a realização de congressos com as chamadas moções de estratégia, etc. permite levar a cabo o trabalho necessário de mistificação do eleitorado. Com efeito, o espectáculo das dissensões internas, mesmo quando não passam de questiúnculas que não resistem ao crivo de uma análise política séria, tende a criar a ideia de que “ali, sim, há verdadeira democracia; aquilo é que é pluralismo democrático; não é um partido monolítico, não se deixam levar como carneiros”… Cumulativamente, a mudança frequente de líder, ainda que nada signifique em termos substanciais, isto é, de mudança de políticas, propicia a geração da ideia de que “agora, sim; com este, as coisas vão mudar”; melhor ainda, “quem fez o mal foi Fulano; Beltrano seria incapaz de tal coisa!”, ou seja, o partido está desresponsabilizado das consequências nefastas, quando não desastrosas, das políticas implementadas pelo líder Fulano e pode apresentar-se de novo perante o eleitorado com o aval do líder Beltrano. Um pouco à semelhança do banco bom / banco mau, o líder Fulano fica com os activos tóxicos, enquanto Beltrano, líder bom, assegura a sobrevida do partido, não tendo sequer que mudar-lhe o logótipo. Claro que o individualismo que enforma a sociedade liberal e a civilização burguesa é a ideologia que explica em primeira mão este modo de funcionamento, mas é um facto que, a posteriori, este individualismo serve perfeitamente o objectivo de manipulação do eleitorado.

 

A cobertura televisiva mostra-nos encenações diversas em que companheiros de partido se esgadanham com a ferocidade que seria expectável numa liça com inimigos mortais… Entretanto, os banqueiros e, mais geralmente, os detentores do capital e dos meios de produção de massa gozam o espectáculo circense oferecido pelos gladiadores engravatados à plebe, que se delicia e esquece por momentos a exploração desenfreada de que é vítima. Se a plebe o ignora, os patrícios sabem que qualquer um daqueles seus serventuários se esforçará por assegurar o status quo, uma vez chegado ao gabinete de administração.

 

Ora um partido verdadeiramente empenhado em mudanças de fundo não pode oferecer tal divertimento ao povo. Por razões de vária ordem, aliás: afectiva, porque a camaradagem que une fraternalmente os militantes é avessa a ataques pessoais; ética, porque é censurável que militantes com objectivos comuns se digladiem; política, porque o inimigo está à espreita, e, se o queremos derrotar, não podemos oferecer-lhe despudoradamente o flanco. Mas … mudanças de fundo é tudo o que não está em causa no caso vertente.

Decrescimento

NOTA PRÉVIA: Este texto é mais um registo de impressões de leitura do que uma recensão crítica. Há nele aspectos hipervalorizados em detrimento de outros – subalternizados ou mesmo omitidos.

 

A prevalência absoluta e mesmo a aceitação indiscutida, nas sociedades modernas, do discurso do crescimento económico obnubila, geralmente, a preocupação com a manutenção de condições de regeneração dos ecossistemas e de sobrevivência do próprio planeta. Neste contexto, o ambientalismo surge frequentemente como afloramento de pretensões irrealistas e utópicas, incompatíveis com as aspirações da humanidade a uma vida cada vez mais liberta de constrangimentos. Por outro lado, as implicações mútuas entre as esferas política e económica contaminam definitivamente o debate, prejudicando uma abordagem serena e responsável desta problemática. Mas será possível um crescimento infinito num planeta finito?

 

Em Pequeno Tratado do Decrescimento Sereno (Edições 70), Serge Latouche procede a um estudo igualmente sereno da situação que a humanidade vive no presente, apresentando, contudo, números que desafiam o optimismo dos desenvolvimentistas ou produtivistas mais desenfreados. Nas suas próprias palavras, “A palavra de ordem do decrescimento tem sobretudo por finalidade ficar a assinalar claramente o abandono do objectivo do crescimento ilimitado, cujo motor não é senão a busca do lucro pelos detentores do capital, com consequências desastrosas para o ambiente e, portanto, para a humanidade. Não só a sociedade está reduzida a ser apenas o instrumento ou o meio da mecânica produtiva, mas o próprio homem tende a tornar-se o resíduo dum sistema que visa torná-lo inútil e a passar sem ele.” (18). Antecipando as inevitáveis objecções resultantes da evidência de que, na actual conjuntura, o simples crescimento negativo é causa de inumeráveis disfunções sociais, Latouche sublinha a diferença de natureza entre os conceitos de “crescimento negativo” e de “decrescimento”, sendo que este último só é concebível “no quadro de um sistema que se baseie noutra lógica”, a “sociedade do decrescimento” (19). Introduz, à passagem, uma informação que não deixa de ser pesada de significação: “(…) segundo a WWF (relatório de 2006), apenas um país satisfaz os critérios de desenvolvimento duradouro, ou seja, apresenta um nível de desenvolvimento humano elevado e uma pegada ecológica sustentável: Cuba!” Quererá isto dizer que Latouche defende o conceito de “desenvolvimento duradouro”, logo sustentável”? Não: “O desenvolvimento é um termo tóxico, independentemente do adjectivo com que seja travestido (…). Os desempenhos inegáveis e desejáveis da técnica não põem em causa a lógica suicidária do desenvolvimento. Trata-se sempre de mudar o penso em vez de se pensar a mudança…” (22).

 

Numa perspectiva diacrónica, “A intuição dos limites físicos do crescimento económico remonta sem dúvida a Malthus (1766-1834), mas só obteve fundamento científico com Sadi Carnot e a sua segunda lei da termodinâmica (1824). Na verdade, o facto de as transformações da energia nas suas diferentes formas (calor, movimento, etc.) não serem totalmente reversíveis – é o fenómeno da entropia – não pode deixar de ter consequências numa economia que se baseia nestas transformações.” (26). Mas como se processa a adicção ao crescimento? Diz-nos Latouche que “são necessários três ingredientes para que a sociedade de consumo possa prosseguir o seu circuito diabólico: a publicidade, que cria o desejo de consumir, o crédito, que lhe fornece os meios, e a obsolescência acelerada e programada dos produtos, que renova a sua necessidade.” (30). Quanto à primeira, que constitui o “segundo orçamento mundial, após o armamento”, observa que, “cada vez mais, a procura deixa de incidir em bens de grande utilidade, passando a sê-lo em bens de grande futilidade” (30), sendo que o nosso hiperconsumo é responsável por quantidades colossais de lixo que vai poluir particularmente os países do Sul: a título de exemplo, “150 milhões de computadores são transportados anualmente para as lixeiras do Terceiro Mundo” (33)

 

Com diferenças substanciais entre os diversos países e continentes, a nossa pegada ecológica é tal que “a humanidade consome já cerca de 30% mais do que a capacidade de regeneração da biosfera” (39), o que significa que os Franceses necessitariam de três planetas, os Americanos de seis. Claro que a situação seria bem menos negativa se a população mundial se reduzisse drasticamente. Razão pela qual, “num memorando datado de 10 de Dezembro de 1974, intitulado ‘Incidências do Crescimento da População Mundial na Segurança dos Estados Unidos e nos seus Interesses fora do Continente’, Henry Kissinger escrevia: ‘Para perpetuar a hegemonia americana no mundo e garantir aos Americanos o acesso livre aos minerais estratégicos do conjunto do planeta, é necessário conter, e até reduzir, a população dos 13 países do Terceiro Mundo (Índia, Bangladesh, Nigéria, etc.) cujo peso demográfico basta para os condenar, digamos assim, a desempenhar um papel de primeiro plano na política internacional.’ (41) Mas se o controlo de nascimentos não fosse eficaz, o Dr. M. King, um dos responsáveis das estratégias demográficas, sugeria o seguinte: ‘(…) deixem morrer os pobres, porque constituem uma ameaça ecológica.’ (42) Precursor destes geopolíticos, o autor americano William Vogt, já nos anos 1950, preconizava “uma guerra bacteriológica em grande escala (…) para devolver à natureza as suas florestas e as suas pastagens.’(42)

 

No capítulo II, “O decrescimento: uma utopia concreta”, S. Latouche procede à explanação do seu projecto de decrescimento e das respectivas etapas de transformação, que passam por oito enunciados cuja inicial é sempre a letra R – os oito “R”: Reavaliar, Reconceptualizar, Reestruturar, Redistribuir, Relocalizar, Reduzir e Reutilizar / Reciclar.

 

Assumindo o decrescimento como programa político, S. L. denuncia a “cosmocracia mundial que, sem decisão explícita, esvazia a política da sua substância e impõe as ‘suas’ vontades por intermédio da ‘ditadura dos mercados financeiros’ /pois/ todos os governos são, queiram-no ou não, ‘funcionários’ do capital” (96), e expõe um conjunto de medidas tendentes a instaurar “os círculos virtuosos do decrescimento” (96). Delas destaco apenas três, pelo carácter inovador que julgo possuírem na perspectiva deste debate. Assim, “transformar os ganhos de produtividade em redução do tempo de trabalho e em criação de empregos, enquanto persistir o desemprego” permitiria “o desenvolvimento pessoal dos cidadãos na vida política, privada e artística, ou também no jogo ou na contemplação” (114), o que passa por uma ‘reconquista do tempo pessoal’, um ‘tempo qualitativo’, ‘um tempo que cultive a lentidão e a contemplação, ao ficar liberto do pensamento do produto’, nas palavras de François Brune (118); “impulsionar a ‘produção’ de bens relacionais, como a amizade e o conhecimento” é uma medida que está directamente relacionada com a anterior e dela depende; quanto a “imputar as disfunções económicas e sociais aos agentes responsáveis por elas”, isso significaria levar “os agentes económicos a tomar em consideração os efeitos sociais das suas decisões privadas”. SL observa, a este respeito, que “se os custos invisíveis do combustível fossem incluídos – acidentes na estrada, poluição do ar, custos de financiamento das bases militares para impedir os povos dos países produtores de deter o controlo do seu próprio petróleo, subsídios às companhias petrolíferas –, o preço do combustível saltaria para 14 dólares o galão, em vez de um dólar, como actualmente. Com este preço já não haveria aviação civil e certamente também não haveria muitas das viaturas que circulam nas estradas.” (104)

 

SL interroga-se também sobre a possibilidade de o decrescimento ser solúvel no capitalismo. Quanto a tal hipótese, sublinhando que “o capitalismo generalizado não pode deixar de destruir o planeta tal como destruiu a sociedade e tudo o que é colectivo” (125), também aponta os limites da crítica marxista, porque “capitalismo mais ou menos liberal e socialismo produtivista são duas variantes dum mesmo projecto de sociedade do crescimento baseado no desenvolvimento das forças produtivas, que se considera favorecer a marcha da humanidade em direcção ao progresso. Por não incluir os condicionamentos ecológicos, a crítica marxista da modernidade fica diminuída por uma grande ambiguidade. A economia capitalista é criticada e denunciada, mas o crescimento das forças que desencadeia é considerado ‘produtivo’ (quando elas são destrutivas pelo menos em igual medida).” (123/124). Aqui está um bom ponto de partida para o debate.