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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Uma justiça à deriva

Os acontecimentos dos últimos dias foram de molde a suscitar no meu espírito a mais séria inquietação quanto ao funcionamento da justiça em Portugal. Eu tinha para mim que uma justiça de classe, no regime em que vivemos, deveria perseguir incansavelmente aqueles que mais afincadamente combatem o poder da classe dominante, a saber: PCP, Verdes e, vamos lá, o Bloco, que, apesar de reformista, debita um discurso cuja matriz radica nas mais genuínas tradições dos movimentos revolucionários. Mas não. Movidos não sei por que perversas motivações, eis que os senhores juízes se põem a perseguir banqueiros, altos responsáveis do Estado, e agora até um ex-primeiro ministro, invariavelmente ligados, clara ou veladamente, aos partidos do “arco da governação”, sob pretexto de corrupção, de fraude fiscal, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos, etc. Não faz sentido nem sequer me parece justo. Dir-se-á que a justiça age em função do que se lhe oferece, maneira de dizer que não lhe cabe inventar ilegalidades e crimes, e que PCP, Verdes e BE não se põem a jeito, já que os seus eleitos nas autarquias e na Assembleia da República, os seus responsáveis em organismos públicos e os seus dirigentes, bizarramente, não corrompem nem se deixam corromper. E depois? – apetece perguntar – para que serve a imaginação? É que, a continuar nesta senda, a justiça ainda acaba a persuadir o eleitorado de que PSD, PS e CDS são pouco recomendáveis, ou mesmo relapsos, o que pode ocasionar uma drástica descida da votação nestes partidos. Se isso viesse a acontecer, quem sabe se o grande beneficiário não seria, por exemplo, o PCP – resultado de todo indesejável e anunciador de grandes desgraças para os detentores dos grandes meios de produção e das grandes fortunas? Vade retro, Satanás!

 

 

A um poeta, soneto de Antero de Quental

A UM P O E T A

 

Surge et ambula!

 

Tu, que dormes, espírito sereno,

Posto à sombra dos cedros seculares,

Como um levita à sombra dos altares,

Longe da luta e do fragor terreno,

 

Acorda! é tempo! O Sol, já alto e pleno,

Afugentou as larvas tumulares…

Para surgir do seio desses mares,

Um mundo novo espera só um aceno

 

Escuta! é a grande voz das multidões.

São teus irmãos que se erguem! são canções…

Mas de guerra… e são vozes de rebate!

 

Ergue-te, pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze espada de combate!

 

Antero de Quental

 

 

Antero Tarquínio de Quental nasceu em 1842, em Ponta Delgada. Dota­do de uma personalidade singular e dramaticamente complexa, cujos pormenores tentaremos esboçar no decurso e na sequência da análise textual a que vamos proceder, a sua produção literária revela a coexistência de duas posturas profundamente contraditórias do homem perante a vida: a atitude combativa e de firme confiança no futuro, própria do militante progressista, por um lado, e, por outro lado, a atitude de introversão com laivos de misticismo, porventura aquela que mais fielmente traduzia a sua mais profunda idiossincrasia. É na primeira destas atitudes que, como veremos, se filia o soneto “A um poeta”.

 

Título esse que circunscreve o campo imenso de destinatários pos­síveis da mensagem a apenas um indivíduo ou, provavelmente, uma classe de indivíduos - os poetas, sendo, num caso como no outro, substancial o estreitamento. Mas se, por um lado, o poeta limita assim grandemente o campo de actuação da sua mensagem, há, noutra perspectiva, um apelo ao empenhamento total do destinatário no combate, que nos remete iniludivelmente para um conceito revolucionário da poesia, diametralmente oposto ao da arte pela arte. Assim, avançando já, e extemporaneamente, alguns dados sobre o que uma análise mais atenta e minu­ciosa nos irá revelando redundantemente, o título condensa na secura do seu enunciado que o conjunto do soneto iluminará depois, todo um programa de ac­ção pedagógico-revolucionária que passa pela certeza racionalmente sentida de que se deve "praticar a vida como quem sabe que cada acto e momento dela é um acto e momento do absoluto" (1), numa clara recusa da metafísica esterilizadora, e pela afirmação de que “a Poesia moderna é a voz da Revolução” (2). Traçado este esboço programático, como entender a epígrafe “Surge et ambula!” que nos remete para o código cultural cristão, concretamente o episódio bíblico de Lázaro, leproso ressuscitado por Cristo? Formulemos explicitamente o que poderia constituir matéria de dúvida: o enunciado exortativo tem aqui um valor meramente formal ou, pelo contrário, sugere uma assimilação já interiorizada do cristianismo como doutrina social? Sabe-se que Renan publicara em 1863 (tinha então Antero de Quental 21 anos) as suas Origens do Cristianismo, obra que exerceu profunda influência no grupo denominado da “geração de 70”, a que Antero pertenceu.

 

Proclamando-se irreligiosos, os mentores deste grupo exaltavam, todavia, “o papel histórico de Jesus, considerado como um herói humano, precursor da reforma social a que aspiravam”(3) e come­tiam a ousadia intelectual de afirmar, como o fez Antero: “o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo. A Revolução não é mais do que o Cris­tianismo do mundo moderno”. (4). Nestas circunstâncias, comprovada a intenção de confundir Cristianismo e Revolução num mesmo impulso único e universal que moveria os homens na luta pela liberdade, pela Justiça proudhoniana, a epígrafe “Surge et ambula!” parece traduzir efectivamente o raio de apolínea luz, a Ideia hegeliana que dialecticarnente nega a “sombra” e as “larva tumulares”.

 

 Sombra, serenidade e isolamento que estão presentes desde a primeira quadra do soneto, não somente a nível de conteúdo, mas ainda na manifestação glossémica. Uma análise fónica põe, com efeito, em evidência uma clara dominância de vogais tónicas fechadas (ao todo, 13) sobre as abertas (são apenas 3), como que a insinuar o 'fechamento' de um mundo ultrapassado, de uma atitude egocêntrica contemplativa do umbigo e surda em relação ao “fragor terreno”. Dentro desta linearidade musical, a acentuação tónica na primeira sílaba de cada verso confere à apóstrofe o carácter de nota isolada, de chamamento impotente, porque esbarra no apsiquismo generalizado. Ficam então como que a pairar, na atmosfera cálida do desinteresse, essas quatro tónicas iniciais: “Tú…/ Pósto…/ Cómo…/ Lónge”. A intensificar a atmosfera de adormecimento e estagnação do próprio tempo, o segundo verso (“Posto à sombra dos cedros tumulares”) desenvolve uma aliteração em sibilantes surdas (/s/ e /S/).

 

 Mudando agora do itinerário glossémico para o sémico, é idêntico o ponto de chegada: “dormir”, “sereno”, “sombra”, “cedro”, “secular” e até “altar” são sememas que, todos, remetem para o grande sema da noite. É, efectivamente, de noite que o espírito sereno dorme, à sombra, afastada a luz solar que irremediavelmente nos chama para as realidades do quotidiano. “Secular” remete­-nos para a noite dos tempos, o “cedro” dá a sombra, isto é, atenua a claridade diurna, propicia o sono. Quanto a “altar” e “levita” (sacerdote), são sememas que evocam a instância divina e a intercessão entre esta e o humano. Ora a religião entendida positivamente por uns (os crentes) como senti­mento que estabelece a comunhão do humano com o divino e negativamente por outros (caso de certa faceta anteriana), como “fase poética ultrapassada na vasta epopeia da Humanidade” (5) (6) é indistintamente sentida, por uns e por outros, como refúgio do ser pensante perante as leis naturais. A comunhão lograda, a tranquilidade assim obtida a troco de fé não serão estados de certo modo semelhantes à narcose ou ao simples entorpecimento nocturno dos senti­dos? Assim, sons e léxico parecem remeter-nos redundantemente para uma linha de sentido: a da noite, do olvido, do alheamento individual em relação à colectividade. As alusões à “luta” e ao “fragor terreno” apenas dão aqui a outra fa­ce da realidade que o advérbio “longe” distancia.

 

 Mas eis que surge um imperativo como um rebate: “Acórda! é tempo!” O fonema aberto parece sugerir a alvorada, a abertura de uma fenda nas trevas da primeira quadra, fenda por onde penetra “O Sol, já alto e pleno”, com novas tonalidades abertas, diurnas, outros tantos raios de luz. O contraste é evidente: a um mundo nocturno, sombrio, decididamente ultrapassado, sucede o “mundo novo” da Ideia vitoriosa, da afirmação apolínea da Humanidade que se liberta das trevas, afugentando as “larvas tumulares”. Substantivo conotado com for­mas inferiores e rastejantes (…) de vida, adjectivo conotado com o passado, domínio dos mortos. No entanto, a eclosão do referido “mundo novo” carece de um “aceno” - imagem que simboliza, neste caso, a missão de intervenção social que, segundo o ideário realista, cabia à literatura e, muito especialmente, na óptica de Antero, à Poesia (7).

 

 Como se vê, o nosso percurso para a segunda quadra é predominante­mente sémico, embora partindo da observação relativa às tónicas abertas ini­ciais que chamam a atenção do leitor para a outra face do real - o real objectivo, que é dinâmico e perpetuamente se move. Se seguirmos outros trajectos verificaremos, porém, que eles confirmam esta primeira impressão. Assim, por exemplo, o cômputo das vogais tónicas mostra-nos que, das treze fechadas e três abertas da primeira quadra, se evolui nesta para oito abertas e oito fechadas (cf. quadro “Disposição das tónicas” anexo). Ao fazermos esta contabilidade, intentamos apenas desco­brir, tanto quanto possível, o que pode estar na origem das diferentes impres­sões e dos diferentes efeitos de sentido que a leitura do soneto causa. En­tendemos, pois, essa descrição contabilística como um meio, um dos utensílios práticos que nos permitem penetrar cada vez mais fundo no cerne do texto. Fazendo-o, reconhecemos a validade científica da análise imanente, muito embora o conhecimento da personalidade e da ideologia de Antero nos permita tirar ilações de âmbito geral que ultrapassam a capacidade significante deste soneto.

 

Passando, todavia, destas unidades de segunda articulação para as de primeira, por outras palavras, deixando os fonemas pela sintaxe, é flagrante a oposição entre as duas quadras: à serena discursividade sustentada, e conseguida à custa de sucessivos acrescentamentos circunstanciais que caracteriza a primeira quadra (8), contrapõe-se a irradiação sintagmática da segunda, com duas entoações exclamativas e duas suspensões, umas como outras a marcarem fortemente pausas que não são simples pormenores tácticos de leitura, mas que significam. Nomeadamente, “Acorda! é tempo!” são enunciados apelativos que veiculam toda uma carga ideológica de adesão aos ideais revolucionários. E como revolução é rebentamento, é pulverização das estruturas caducas, assim o discurso se pulveriza: o sujeito de enunciado único da primeira quadra (“Tu”) cede agora o lugar a quatro sujeitos - o mesmo “Tu”, em primeiro lugar, o sujeito impessoal de “é tempo!”, o Sol (que “afugentou as larvas”) e o “mundo novo”, (que “espera só um aceno”)..

 

 A partir desta segunda quadra, pois, a linha de sentido é basicamente a que aponta para o sema eufórico do “dia”. Dia que é, em primeiro lugar, a luz do Sol, mas também a “voz das multidões” para que nos remete o primeiro terceto. Com ele assistimos, de resto, a una reorientação da perspectiva do sujeito da enunciação, no que diz respeito aos sentidos (acepção física): se a segunda quadra apelava sobretudo para o sentido da visão, o primeiro terceto, sem a descurar, apela de forma relevante para o sentido da audição

 

 “Escuta! é a grande voz das multidões.

São teus irmãos que se erguem! são canções

Mas de guerra… e são vozes de rebate!”

 

 Ora esta observação, à primeira vista inócua, talvez o não seja tanto, se atentarmos em que, ao entorpecimento dos sentidos que, na primeira quadra, nos era redundantemente significado pelo conteúdo da mensagem e pelas sugestões fónica e sintagmática, sucede o despertar, primeiro da visão, logo da audição: tu, que dormes, acorda, vê o Sol e o mundo novo, escuta a voz das multidões. Por conseguinte, a própria discursividade do soneto nos dá a imagem do lento despertar e de uma lucidez que chega paulatinamente. Escusado aproximar tais imagens da génese da consciência política que, como se sabe, resulta de lenta maturação.

 

 Este tu-poeta a quem o eu-poeta se dirige atingiu, pois, o estado de lucidez necessário à apreensão de um “mundo novo” em cujo surto / parto (9) se empenham as multidões de irmãos. Reivindicação explícita de um espírito de fraternidade que congregaria todos os oprimidos no grande clamor de libertação. Clamor em que entrariam também canções, “mas de guerra”. É bem eloquente esta adversativa, reveladora daquele mesmo programa de acção pedagógico-revolucionária a que aludimos no princípio. Com efeito, “canções” sugere imediatamente poesia (aquilo que o poeta cria), mas não é indiferente o tipo de poesia que essas multidões cantam, não é, muito claramente, a pieguice frívola e narcisicamente egocêntrica do lirismo ultra-romântico à Castilho (10), mas sim uma poesia útil, interventora no processo social, ou seja, uma poesia “de guerra”(11). Guerra do novo contra o velho como expressão da luta dialéctica de contrários (tese-antítese) permanentemente geradora de uma síntese superior que assegurará um equilíbrio instável e temporário.

 

Assistimos a um lento despertar; resta-nos assistir ao erguer. E, ao erguer-se, o tu-poeta do início já não é  (não pode ser) o “espírito sereno”, alheio ao que o rodeia: a alienação cede o lugar à consciência límpida de quem viu, à luz do Sol, um “mundo novo” e de quem ouviu “a grande voz das multidões”. Para o parto dum “mundo novo” é um homem novo que se ergue, um “Soldado do Futuro” em quem o idealismo do “sonho puro” se coaduna com a “espada de combate” (síntese). Dizer que este final é belo e apoteótico é, decerto, um lugar-comum; mas este final é belo e apoteótico. Dizer que ele é cinematográfico é anacrónico, mas o leitor de hoje não pode resistir ao encanto de uma tradução cinematográfica, ainda que apenas mental: acaba o filme, que poderia chamar-se "Despertar", e um Sol fulgurante e rubro derrama-se sobre a Terra em mil “raios de luz”. Como o arrebol justifica o despertar de cada dia, do mesmo modo o futuro justifica o combate do presente…

 

O soneto analisado revela-nos certamente um Antero; provavelmente dois. A atitude eminentemente apelativa do sujeito da enunciação proferidor do discurso, cuja intenção é abertamente político-social, remete-nos claramente para o homem combativo que, pautando a sua acção pelo ideário socialista utópico tanto quanto por uma sólida arquitectura ética, se desloca a Paris, onde faz a experiência de operário tipógrafo, organiza as Conferências Democráticas do Casino, aplaude publicamente a Comuna de Paris, coopera na implantação em Portugal da Associação Internacional de Trabalhadores e combate por uma literatura de intervenção. No entanto, este poeta destinatário da mensagem pode muito bem ser entendido como a faceta mística da própria personalidade do destinador. Teríamos então perante nós um exemplo de texto veiculador dum monólogo introspectivo que reveste a aparência formal do diálogo. O eu enunciador e o tu destinatário não seriam mais do que dois pólos de uma mesma instância psíquica que se observa e que é observada.

 

É bem conhecido o pendor místico que, sempre presente, mesmo na época de maior combatividade (1863-65), prevaleceu a partir daí até ao final da sua vida. Este pendor místico, esta “náusea da realidade”, este “desejo ­ de Nirvana” (12) que coexistem com a tendência combativa revolucionária levam Antero a definir-se lapidarmente desde 1872: “Penso como Proudhon, Michelet, como os activos; sinto, imagino e sou como o autor da Imitatio Christi” (13).

 

António Sérgio apelidaria a primeira destas tendências de apolínea ou diurna, a segunda de romântica ou nocturna. Ora a análise deste soneto parece-nos ter justamente revelado a presença destas duas atitudes, sendo que a segunda é atribuída a um enigmático poeta que tanto poderia ser, metonimicamente, o conjunto dos poetas românticos encerrados na sua torre de marfim, como, através de uma ficção poética, o ego anteriano submetido ao apelo ideológico do super-ego.

 

(Análise de texto realizada em Abril de 1979, no âmbito da Licenciatura em Filologia Românica)

 

A um poeta, A. de Quental.jpg

NOTAS

 (1) Cf. História da Literatura Portuguesa de António José Saraiva e Óscar Lopes, p.805, 3.ª edição, Porto Editora, Porto, 19… A citação é de Antero de Quental.

(2) Quental, Antero de, “Nota sobre a missão revolucionária da poesia”, na 1.ª edição das Odes Modernas, citado por Ema Tarracha, Textos Literários, séc. XIX, vol. II, p. 81

(3) Cf. Saraiva, A. J. e Lopes, Ó., op. cit., p.777

(4) Cf. Quental, Antero de, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, Cadernos Peninsulares, Liv. Ulmeiro, Lisboa, 2.ª edição, 1971, p.69

(5) Cf. Saraiva, A. J. e Lopes, Ó., op. cit., p.800

(6) Seria interessante comparar esta concepção com aquela que Bento de Jesus Caraça exprimiria durante a Conferência intitulada "A Cultura Integral do Indivíduo - Problema Central do Nosso Tempo” realizada em 25 de Maio de 1933: o sentimento religioso seria a expressão de uma “aspiração confusa a uma felicidade e unidade superiores” que a humanidade não encontra em si. Esta aspiração do homem é, no entanto, aproveitada pelo princípio individual (um dos dois princípios contrários que regem a sociedade humana, sendo o outro o princípio colectivo) que, com a adoração de ídolos, logra mais profundo enraizamento do seu poder. Cf. Caraça, Bento de Jesus, A Cultura Integral do Indivíduo, Separata da Gazeta de Matemática, n.º 129-132, Lisboa, 1976, p.14-15.

(7) A nossa maiusculação de substantivos como Ideia, Revolução, Humanidade e Poesia remete para a percepção alegórica que frequentemente deles tinha Antero.

(8) Note-se que toda ela assenta num núcleo muito simples: “Tu dormes”.

(9) A imagem da eclosão “do seio desses mares”, na segunda quadra, sugere com efeito um parto.

(10) Cf. Quental, Antero de, “Tendências Novas da Poesia Contemporânea”, artigo publicado na “Revolução de Setembro”, em 1871: “O romantismo foi justamente condenado. O século, com um sentimento lúcido da sua verdadeira missão, afastou-se daqueles que lhe falavam uma linguagem cujo brilho, cuja eloquência, cuja sinceridade, por maiores que fossem, não podiam encobrir o falso do princípio que a inspirava. Essa missão é essencialmente positiva, social e racional, e o romantismo era essencialmente apaixonado, individual e subjectivo. Por mais que se virasse para o futuro, a sua alma pertencia ao passado. […] No fundo, uma sociedade saída da revolução, e uma poesia que se inspirava nas tradições da Idade Média contradiziarn-se, negavam-se radicalmente.

[…] Os poetas da geração actual vêem-se, pois, rasgado aquele véu fantástico da sentimentalidade de outrora, em face de uma sociedade que eles não compreendem, porque ela mesma a si se não compreende bem, mas que os não quer escutar senão com a condição de lhe falarem daquilo que a interessa e a preocupa, de se inspirarem da sua vida real e das suas verdadeiras aspirações”. Cit. por Tarracha, Ema, Textos Literários séc.XIX, vol. II, Aster, Lx.ª

(11) Cf. Quental, Antero, “Nota sobre a missão revolucionária da poesia”, (na 1.ª edição das Odes Modernas: “A poesia que quiser corresponder ao mais profundo do seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias do culto da arte pela arte? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e das Religiões, há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar com a alma penetrada do temor santo deste mistério que é o destino das Sociedades!” Citado por Tarracha, Ema, op. cit., p.81,82

(12) Cf. Saraiva, A. J., ibidem, p.803

(13) idem.

 

 

Ouro e Vinho, de Adão Contreiras

Ouro e Vinho, Adão Contreiras.jpg

 

 

 

 

Se, no seu primeiro livro, Página Móvel com Texto Fixo, havia poemas cujo hermetismo (me) desconcertava, em Ouro e Vinho, dir-se-ia que Adão Contreiras convoca o leitor para um diálogo renhido sobre a natureza da poesia. Diálogo tanto mais difícil quanto se porfia em descobrir, na por vezes labiríntica tessitura sintagmática, sentidos que o autor, provavelmente, não fez questão de lá pôr. Na minha démarche interpretativa, vou, por isso, recorrer, uma vez mais, a quem sabe do ofício de poetar, para me abalançar na árdua tarefa de comentar o opúsculo agora dado à estampa pela 4águas editora, na colecção Blokos/Poesia.

 

 Segundo Ramos Rosa, citado por António Carlos Cortez (1), “a uma poética do unívoco, que corresponde a um mundo estático” deve suceder uma “poética de ambivalência e ambiguidade, onde tudo é movimento”. Quererá isto dizer que todas as liberdades são permitidas ao poeta, ou não fosse a Poesia Liberdade Livre, conforme o afirma o próprio citado, em título de livro seu? Aparentemente, sim. E, contudo, é outro poeta, Gastão Cruz, por coincidência também farense, que nos põe de sobreaviso: “A arbitrariedade é um dos riscos mais prováveis para quem queira aventurar-se na procura de uma linguagem nova. Evitá-lo implica um enorme apuramento do sentido de autocrítica, muita reflexão sobre o que é e o que não é poesia, a aquisição de uma autoconfiança que defenda o poeta dos erros e perversidades de certos comentadores, e das omissões de outros (ou os mesmos) ” (2). Por outro lado, a “procura de uma linguagem nova” nem sempre terá sido, nos últimos anos, objectivo dos poetas. Por exemplo, Fernando Pinto do Amaral assinala que “Na viragem do milénio terá havido, de facto, alguma oposição entre poetas mais preocupados com a “criação de novas linguagens” e outros mais seduzidos pela “poesia da experiência”, acrescentando esperar “que esse conflito se vá esbatendo, à medida que nos apercebermos de que os melhores poetas são aqueles para quem essa bipolarização faz cada vez menos sentido”, sendo que “os poetas que mais [lhe] interessam são aqueles que, utilizando elementos da sua experiência humana (mesmo demasiado humana), os transfiguram em poesia graças à intensidade das palavras que dão corpo e espessura a cada texto” (3). É ainda um poeta, João Luís Barreto Guimarães, que, debruçando-se sobre a problemática da “invenção verbal”, refere o “menor papel que a metáfora assumiu na poesia portuguesa desde os anos 70, quando comparada com o seu papel em poéticas anteriores. […] A metáfora resistiu mal ao poder da sinédoque e da metonímia. […] As coisas, nos poemas, dizem-se agora mais directamente. Isso não significa, porém, que não se tenham criado novas linguagens (baseadas ou não na experiência), com significativa invenção verbal – sempre valorizando a palavra. Poéticas mais coloquiais, onde a oralidade ganhou espaço, em todo o seu esplendor. Poéticas mais próximas, em tom, de um falar quotidiano. Poéticas que comunicam, por vezes de forma sarcástica e irónica. Poéticas que reduziram a poesia ao grau zero de recriação metafórica” (4). Combinando estas opiniões de quem sabe do que fala, diríamos que ao poeta cabe a “procura de uma linguagem nova”, feita de “ambivalência e ambiguidade”, ancorada ou não na sua experiência humana, incorporando a oralidade e o “falar quotidiano”, contudo, avessa à “arbitrariedade”, ao puro capricho.

 

         A estas opiniões, poderíamos, para complicar o comentário, acrescentar o seguinte: num romance francês de 2006 em que a antecipação científica convive com as alegrias e, sobretudo, as agruras do nosso presente (A Possibilidade de uma Ilha, de Michel Houellebecq), o narrador, referindo-se a um artigo que lera numa revista literária, dá por inelutável o desaparecimento da poesia: “a poesia, como linguagem não contextual, anterior à distinção objectos-propriedades, desertara definitivamente do mundo dos homens. Situava-se num aquém primitivo ao qual nunca mais teríamos acesso, pois era anterior à verdadeira constituição do objecto e da língua. Inapta para transportar informações mais precisas do que simples sensações corporais e emocionais, intrinsecamente ligada ao estado mágico do espírito humano, tornara-se irremediavelmente antiquada com o aparecimento de métodos fiáveis de afirmação objectiva” (5).

 

         Enunciadas estas extensas premissas relativas à natureza e à morte anunciada da poesia, voltemos a Ouro e Vinho, tentando verificar até que ponto a poesia de AC confirma ou infirma os postulados transcritos. E começarei pelo princípio, que não é mau preceito. “Proclamação” se chama o primeiro poema do opúsculo, que, por ser primeiro e curto, transcrevo:

 

inaugurei o inverno do

meu contentamento

– fogo na lareira

um bagaço

 

o corpo estendido sobre

uma imaginação sem poeira

um figo torrado dobrando

no paladar a esquina do tempo

 

o fogo queimando a tristeza

na alegria das labaredas

 

não fiz anos nem tu

mas há dias assim próximos

uns dos outros

ainda que em estrelas longínquas

 

A primeira observação que me ocorre fazer é a de que se trata de um poema de celebração (tópico recorrente já no primeiro livro) de um instante de felicidade, um momento fugaz em que o corpo se abandona à fruição do ócio e ao afago do calor da lareira. A degustação de um bagaço e de um figo torrado cruza-se, numa imaginação liberta de qualquer constrangimento, com a recordação de uma leitura antiga, a de Inverno do Nosso Descontentamento, que surge neste contexto por antífrase, e o figo torrado, que se atarda no paladar, marca o passar do tempo, expresso num tropo que faz confluir o concreto (“esquina”) com o abstracto (“tempo”) – procedimento metonímico. O pronome tu, na última estrofe, institui uma dimensão dialógica no poema e presentifica uma instância receptora que, podendo estar numa “estrela longínqua”, não deixa de propiciar ao eu emissor a alegria dos “dias próximos uns dos outros”. Estamos, pois, perante um poema de celebração de um instante de felicidade, logo “poesia da experiência”, para retomarmos a nomenclatura dos meus prolegómenos, mas também “poética de ambivalência e ambiguidade” particularmente na segunda estrofe, em que a experiência humana é transfigurada “em poesia graças à intensidade das palavras”.

 

É pelo tu presente no primeiro poema que me apetece partir em busca dos poemas em que esse tu espreita. E não tardo a perceber que são poucos. Em Ouro e Vinho, há o cão que faz “versos de glorificação dos ossos”, de cauda “nivelando os astros com os cogumelos”; há o “Zé Ninguém [que] dobrou com o olhar as lâminas do destino”; “o homem do tractor [que] chegou”; “uma batata não cosmética mas inclinada para o ventre da claridade”, “uma Pedra sem passaporte diplomático na curva do caminho”, algum ouro e algum vinho, um léxico que se espraia pelos domínios mais diversos, inesperados e surpreendentes, mas esta instância próxima do eu e que o secunda escasseia, surge discreta, sorrateira e misteriosa em mais dois ou três poemas apenas. Um deles é o segundo, “Veneno”, poema em que a temática do convite para a viagem (para retomar o celebérrimo “L’invitation au voyage”, de Baudelaire), de contornos eróticos, aparece profundamente transfigurada.

 

O poema começa com uma qualificação dos “segredos” desse tu, segredos difíceis de entender porque são um “labirinto inaudível”, contudo também “soma possível no decalque dos infinitos”, o que remete para a profusão de possibilidades, tanto mais que há uma “bússola sobre a manhã dos vinhos”, ou seja, um rumo que comanda a embriaguez dos sentidos. Porém, a referência à “delinquência” e “aos venenos”, isto é, à hipotética infracção, ao temor pela manifestação do desejo eventualmente excessivo, ou proibido, ou não correspondido, sugere a necessidade de “indulgência”, neste caso, por parte do próprio eu, que impreca o tu: “abre-te a este inquilino vacilante / na inquinação das águas prósperas / volúpia carregada de sal e morangos”. As antíteses relativas à água (inquinada, mas próspera) e à volúpia (salgada e doce) parecem apontar para os tradicionais sentimentos contrastantes da percepção do amor, glosados por Camões no célebre soneto do fogo que arde sem se ver. Os versos da estrofe seguinte constituem variações em torno do tema da volúpia, a que se segue um terceto em que o eu, assumindo-se como “deus com fome”, não deixa de reconhecer que “mastiga o pão de açorda”, enunciado disfórico e fraco manjar para quem almejava “a manhã dos vinhos”, a “volúpia carregada de sal e morangos”, “a poesia das uvas transbordando / na alegria dos açúcares”. Mas este “absurdo inquietante” ocorre “no incesto das palavras” – nova ocorrência de contiguidade de signos que denotam realidades totalmente diversas e incomunicáveis, no universo não-poético. Como entender esta relação improvável? O significado de “incesto”, transposto para o mundo da comunicação verbal em contexto erótico, implica afinal o entendimento e a comunhão profunda de entes próximos, o que desmente a disforia anteriormente enunciada. Neste contexto, o último verso, ao retomar a temática do segredo, presente no início do poema, ao mesmo tempo que lhe associa o signo “bananas”, apenas nos pode deixar uma interrogação à qual não responderei: que terá a banana a ver com a relação erótica?

 

         Depois do poema “Rebuçado”, que questiona a possibilidade, para o eu e para o tu, de conservarem a verdade da infância obliterada pela bruma das palavras (“[…] e eu ou tu / que nos agarramos ao vulcão das coisas / saberemos ouvir / a memória do Carnaval / subtraído ao corpo inacabado?”), no poema “Ouro”, voltamos ao contacto com o tu. Vou limitar-me a sublinhar os pontos de contacto entre este poema e “Veneno”, pois me parecem manter estreitas relações de significado. O signo “vinho”, recorrente, aparece agora inserido no sintagma “uma sonda de vinho aperfeiçoa / a investigação dos astros”. Antes associado à ideia de embriaguez, o vinho remete agora para a ideia de descoberta, sem que as duas acepções se contrariem necessariamente, ou não fosse a embriaguez uma possível via de desvendamento, nomeadamente em territórios da relação interpessoal. A terceira estrofe, porém, insinua a contrariedade: “e tu conversando com o orgulho / da língua de mármore / desfeitos os nós / ao abrigo dos costumes, em letras de aço / presas aos dentes dizes que a Terra é redonda!” É uma sucessão de signos que remetem para a ideia de dureza e frieza – orgulho, mármore, nós, aço – a que se soma a sugestão do respeito pelos (bons) costumes (porque não, até, pela moral e bons costumes?) e, finalmente, o enunciado banal sobre a esfericidade da Terra. Isto é, recapitulando: seja por orgulho, seja por receios pueris, entravas o caminho da descoberta, esse “caminho incerto” que, apesar de tudo, “trilho contigo”, e caminho que se confunde com o “pequeno círculo dos teus lábios / feridos pelas agulhas do fado”. Os versos finais são uma espécie de proclamação da urgência e da inevitabilidade do afecto (“não há futuro / sem a língua roçando os teus cabelos”), apesar dos momentos de solidão (“ainda que haja madrugadas / cheirando a metal […]”), porque  só esse tu perseguido pelo poeta, um tu que é, simultaneamente, permanência (“terra”) e transitoriedade (“vento”), poderá construir a felicidade (“[…] só tu / incesto da terra com o vento poderás / construir músculos embriagados a ouro e pão”). Daí, a angustiada pergunta da primeira estrofe, que deixei por analisar:

 

longe de mim na apressada noite verde

o que pode haver de eterno

no esquecimento dos teus lábios?

 

Prosaicamente: o esfumar da memória significará que a perda é definitiva?

 

         Enunciei inicialmente o objectivo de verificar, neste texto, em que medida a poesia de Ouro e Vinho vai ao encontro dos postulados de poetas consagrados que transcrevi extensamente e creio que esse objectivo foi atingido, com a demonstração de que estamos perante uma “linguagem nova”, feita de “ambivalência e ambiguidade”, ancorada seguramente na experiência humana do poeta. No tocante à incorporação da oralidade e do “falar quotidiano”, é aspecto que se me afigura menos significativo neste livro. Ainda assim, sempre sublinharei que esses afloramentos do falar quotidiano e das realidades mais comezinhas ocorrem e coabitam na mais perfeita das harmonias com imagens e metáforas, numa espécie de movimento pendular que nos leva, por exemplo, da “tigela de arroz” ao “gargalo da noite” (em “Aspirador”), do “baú do tempo” à “cebola infinita a descascar” (em “Relógio”), ou dos “ingleses que spicam” ao “cetim do imaginário” (em “O homem do tractor chegou”).

 

Nota:

         Todas as citações pertencem ao n.º 33 da revista “Relâmpago”, de Outubro de 2013: (1): p. 25; (2): p. 53; (3), p. 45; (4), p. 61; (5), p. 153.