E a noite roda, de Alexandra Lucas Coelho
O primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho, publicado em 2012, constrói-se com base na intersecção entre a reportagem jornalística, ainda que matizada de pormenores ficcionais, e a narrativa propriamente romanesca da relação amorosa. Anuncia-se esta dualidade de aspectos logo no primeiro parágrafo do romance:
"Escrevo para acabar com a história, escrevo para que a história comece. 'Esquece a morte e segue-me'."
É todo um programa, ou mesmo um projecto de vida em que a escrita intervém como catarse libertadora de uma memória ancilosante: escrevendo, desaposso-me da minha história pessoal (minha, de Ana, a narradora, entenda-se), que deixará de me obsidiar e passará a existir noutro plano, o da realização literária. Mas a palavra e a escrita não aparecem no discurso da narradora apenas nesta acepção e função. Mais à frente, é o seu poder criador que é assim afirmado:
"A única forma de voltar é escrever para que exista." (p. 101).
Por outro lado, a citação (aqui, entre comas) de Gilgamesh (rei semilendário da Suméria, c. 2500 a.C.) remete redundantemente para o fim da fixação numa história infeliz, mas também se institui como incitação/convite à viagem, colocando o leitor no caminho da reportagem.
Temos, assim, no romance, uma vertente que poderíamos qualificar de jornalística e que o aproxima dos anteriores livros de reportagem-crónica-viagem da autora e uma componente ficcional, a da relação amorosa entre Ana e Léon, ainda que ambas se fundam num perfeito continuum discursivo. Naquilo a que venho chamando reportagem, avulta a "peregrinação" pela faixa de Gaza e por Israel. Jerusalém, Ramallah, Gaza, Nazaré, Telavive-Jaffa, Neguev, Belém, Nablus e, finalmente, o Líbano, desfilam perante nós, não como simples cenário da história de amor, mas sim como ancoradouros do homem e palco da grande História. A actualidade política e o dia-a-dia das gentes são relatados em directo: falecimento e funeral de Arafat, a provação dos checkpoints e dos campos de refugiados, os assassínios selectivos, os colonatos e os colonos, a solidariedade dos baptistas americanos para com eles, os túneis cavados pelos palestinianos para furarem o cerco, a frase na parede alusiva a Rachel Corrie, jovem voluntária americana esmagada por um buldózer, o concerto de Ramallah pela orquestra israelo-árabe de Daniel Baremboim, a culinária local, os artistas, as pessoas, Sylvia, Abed, Leila, as crianças que não conseguem dormir com o estrondo dos bombardeamentos, os incidentes, os danos colaterais,... A narradora refere-se a isto com o irónico eufemismo de "o conflito", mas nem as desassombradas referências à corrupção que lavra na Fatah obnubilam a inaceitabilidade da ocupação israelita e a sua simpatia pela causa dos palestinianos, o que lhe vale a acusação de anti-semitismo (!):
"Duas páginas sobre Maale Adumim e já sou anti-semita. Porque digo muro em vez de vedação de segurança. [...]" (p. 122)
Depois, há ainda os itinerários europeus, e sobretudo espanhóis, estes normalmente cenários de alguns dias de férias e de encontro entre Ana e Léon.
É, pois, nesta variedade de espaços marcados pelas correntes da História que se inscreve a história de um amor que, parecendo promissor, acaba em debandada de uma das partes. Léon começa por ser um assemantema com afloramentos fugazes no relato da actualidade e das deslocações da narradora (pp. 21 a 23):
"Dormes aqui ao lado, mas ainda não te conheço." (p. 21)
Depois, a personagem vai ganhando corpo em referências paulatinamente mais extensas, até que a instalação insidiosa do sentimento amoroso é enigmaticamente enunciada:
"[...] Sim, começou. Tudo era tudo e agora tudo é nada.
Anuncia-se a doença: onde estás, afinal? É aqui que a moral se desloca, a doença desprende-a do seu lugar comum.
Continuo a ver o mal disto. Como o anjo de Walter Benjamin, tenho a cara voltada para trás, para o desastre que me antecede. Não posso dizer que não sei: eu vejo. Mas é para a frente que caminho. Se for amor, deixará de ser crime." (pp. 65-66)
Não se está perante um desabrochar sereno para as delícias de um relacionamento que se afigura auspicioso, mas antes perante um dilema moral: atender à situação de Léon é renunciar ao amor; esquecê-la implica a "deslocação" da moral: "a doença desloca-a do seu lugar comum." E se a narradora-protagonista, de imediato, tenta desculpabilizar-se ("Se for amor, deixará de ser crime"), isso não invalida que a formulação no condicional implica necessariamente a presença do sentimento de culpa, enquanto a dúvida existir, como o comprovam, aliás, pelo menos mais duas referências expressas:
"Se o amor estiver deste lado, este lado está certo. Tudo o mais é cálculo, conveniência, compaixão." (p. 73) e
"Volto à Gràcia a pensar que sou uma filha da puta a dar cabo da felicidade. E quando fecho a porta já pergunto que felicidade é essa, presa no gelo.
De que lado está o amor? Qual é o lado certo? A batalha continua, mas eu só quero ser convencida." (p. 90).
A este travo amargo virá mais tarde juntar-se um ressentimento progressivo de Ana contra Léon, na sequência do roubo do computador do quarto do hotel e por ocasião do seu aniversário:
"[...] claro que queria que estivesses comigo. Em cinco meses nunca me senti tão sozinha.
Mesmo depois de reler as tuas cartas, de ver o teu desejo, a tua angústia, sempre que me lembro da noite na esquadra ainda dói." (p. 174)
"[...]mandas um SMS a meio da tua manhã, que é já o meu meio de tarde: "Feliz aniversário, querida, o teu poeta indicou-te o caminho." Ânimo para o livro [que a narradora está a escrever], bem sei, mas fico a olhar o telefone porque me parece totalmente ao lado." (p. 231)
A relação termina porque Léon é "incapaz de transpor os [seus] muros." (p. 232) Pelo meio, observações de carácter psicológico pontuam o sentimento pungente das fronteiras do tempo, ora apontando no sentido da sua dissolução, ora, pelo contrário, no da sua inexpugnabilidade:
"[...] fico ali a pensar como a intimidade entre duas pessoas pode ser anterior ao encontro delas." (p. 161)
"Fico a olhar as tuas mãos, toda a existência de gestos firmes anterior a mim, e sinto uma dor absurda, como um membro amputado há séculos. Não vivi contigo o que já viveste, e isso é ao mesmo tempo irreversível e inaceitável." (p. 206)
Servida por uma sintaxe de períodos curtos, razoavelmente sincopada, a prosa despojada e solta de Alexandra Lucas Coelho recorre com relativa frequência a procedimentos reiterativos e paralelísticos:
"Do lado israelita tudo deveria funcionar mas muito não funciona e há uma rudeza que não existe do lado palestiniano, onde tudo deveria não funcionar e muito funciona." (p. 134)
"Decifra-me ou devoro-te, diz a esfinge. Devora-me e decifro-te." (p. 165)
"Não consegues antecipar a viagem, mas tens pressa de me ver, tens pressa de me ver, tens pressa de me ver." (p. 168)
"Bebemos vinho até o vinho acabar. Falamos de Ramallah, de Nablus, de Gaza, até a Palestina acabar." (p. 170)
Duas palavras mais: uma para sublinhar o apego ao concreto e ao real, à materialidade da vida, sem prejuízo das inúmeras referências culturais que povoam a narrativa; outra para saudar o desassombro com que a autora trata o relacionamento amoroso na sua vertente mais íntima.
E, finalmente, porquê E a noite roda – possível significado de "Edoi lelia doura", refrão de uma cantiga de amigo? Eis a explicação da narradora:
"Nunca é noite na terra porque a noite roda. Mas é noite na terra quando duas pessoas estão coladas uma à outra. Só nós estamos vivos, somos a Arca de Noé." (p. 82)
Para Ana, manifestamente, não será por algum tempo noite na Terra.