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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Modiano – em busca do tempo perdido?

 

Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier.jpg

 

          Para quem desconhece o autor, a primeira impressão de leitura de Pour que tu ne te perdes pas dans le quartier, de Patrick Modiano, é a de uma escrita eminentemente límpida e sem sombra de afectação. O leitor é gentilmente transportado, ao longo de páginas de uma narração linear, sem sobressaltos, sem surpresas, sem efeitos especiais. A tal ponto que se sente tentado a verbalizar a única surpresa que o acomete: é mesmo assim que escreve este Prémio Nobel?

          É. Não defendo nem a preeminência da obscuridade, do subentendido, dos sentidos implícitos, dos recursos mais sofisticados do guarda-jóias do estilo nem o seu contrário. Vejo tanto mérito na escrita que sacode o leitor e desafia a sua capacidade de indagação como naquela cuja simplicidade e transparência não podem ser confundidas com indigência. Que nenhuma se afirme em detrimento da outra.

          Aliás, em Modiano (quero dizer, neste Modiano, primeiro e único, para já, das minhas leituras), a lisura sintáctica da escrita não implica igual lhaneza no desenvolvimento da diegese. Com efeito, se os prolegómenos narrativos se encadeiam segundo uma sucessão em que os laços de causalidade são aparentes, a dado momento, personagens com papel determinante para o decorrer da acção, e nomeadamente para desencadear o despertar da memória do narrador, desaparecem, sem deixar rasto e sem nenhuma explicação. Do mesmo modo, não se saberá nunca o motivo da detenção da personagem responsável pela educação do narrador, quando criança, como ficará por esclarecer o que a leva a abandonar o seu protegido numa casa da Côte d'Azur. O mistério faz pois parte do processo narrativo, é-lhe mesmo consubstancial, o que se entende, ou não fosse a recuperação de memórias distantes no tempo e tingidas de sofrimento um processo nebuloso, fragmentário e falível.

          Apesar dessa falibilidade, há pedaços de memória que acodem ao chamamento da palavra. Sim, é sempre a partir de uma palavra ou de um nome que uma porção do passado é reencontrada:

          "Au chapitre 'Champs de courses', il tomba sur un mot imprimé en lettres majuscules: LE TREMBLAY. Et ce mot provoqua chez lui un déclic, sans qu'il sût très bien pourquoi, comme si lui revenait peu à peu en mémoire un détail qu'il avait oublié." (p. 31)

          Por detrás da história de Jean Daragane, ao mesmo tempo simples e envolta em mistério, há neste romance a história – no fundo, recorrente – do reencontro com o tempo perdido. Patrick Modiano dá-lhe o halo do mistério e uma pungência que cala fundo no leitor.

 

...

 

O Meu Amante de Domingo,

O Meu Amante de Domingo, A. L. Coelho.jpg

 

de Alexandra Lucas Coelho

 

- "Virar do avesso o que está cá dentro"

 

 

            Tive já a oportunidade de sublinhar a fluência e ductilidade de que Alexandra Lucas Coelho dá bastas provas em E a Noite Roda (Tinta-da-China, 2014). Em O Meu Amante de Domingo (Tinta-da-China, 2014), essas qualidades saltam aos olhos do leitor mais desprevenido. O discurso da narradora jorra como lava de vulcão, em torrente contínua e escaldante. Mas acompanha-o uma onda piroclástica de impropérios passíveis de bolinha vermelha em quase todas as páginas. De tal maneira que, a certa altura, apetece parafrasear o diácono Remédios de Herman José: não havia necessidade, Alexandra, não havia necessidade. A narradora – do Canidelo, Vila Nova de Gaia – não entende este prurido: "O lisboeta tem uma gravata na língua, acha que o palavrão é para quando se descuida. Não entende que é ele quem faz do palavrão um descuido. Todo o palavrão tem arte, a gente lá em cima sabe." (p. 88)

 

            Alexandra Lucas Coelho viveu no Brasil e conhece bem a literatura brasileira. Para quem não a conhece tão bem, apenas um nome se insinua de imediato como provável inspirador de um discurso em que a isotopia do sexo assalta o leitor – João Ubaldo Ribeiro. Mas há, pelo menos, mais um (no Brasil, porque, em Portugal, teríamos talvez Luiz Pacheco), além de que, em literatura, como no resto, propriedade privada é roubo e ninguém se pode arvorar em detentor de exclusividades. Esse outro é o de Nelson Rodrigues, citado a cada passo, e que uma rápida pesquisa na net nos diz ter sido polémico jornalista e escritor (1912-1980), que teve uma vida ainda mais espantosa do que as suas histórias e que era obcecado pelo sexo e pela morte. Dito isto, importa sublinhar que, a par desta, há, como no romance anterior, a isotopia da cultura (a literária, a musical,...) e um vasto conjunto de reflexões sobre o comportamento de homens e de mulheres de diferentes idades, relativamente ao amor, entendendo-se aqui amor na acepção mais lata, isto é, na mais verdadeira – a que imbrica a líbido no emaranhado dos sentimentos. A autora mostra não só dominar com mestria a arte de contar como ser conhecedora dos subterrâneos da consciência humana.

            Voltemos, porém, ao que mais impressivamente convoca a atenção do leitor: o discurso da narradora – seu propósito e a urdidura que tece. Há um diálogo entre ela e um dos amantes, ironicamente designado por futuro Nobel, que é sobejamente esclarecedor do primeiro destes aspectos:

            "— [...] Tu realmente brilhas com a dor dos outros.

            — Estás a falar de quê?

            — Do que escreves.

            — Mas o que é que tu achas que é escrever? Autoterapia? Não há dor do outro. Há dor.

            — A sério? Poupa-me. escreves sem um pingo de colhões. Nunca viraste do avesso o que está aí dentro. Pairas nas alturas, agora são os sumérios. Estás a tentar provar o quê? Mete o dedo na tua ferida.

            — Se lesses um bocadinho saberias que o que há mais é gente a meter o dedo na sua ferida.

            — Mentira, o que há mais é anemia.

            — Isso é comigo?

            —Não. Serias um grande poeta se não tivesses essa necessidade de ser compensado, esse pânico de perder gajas, perder leitores, perder a vez, perder a glória. O mundo não te deve nada e tu não deves nada ao mundo, não tens nada a perder. Em vez disso és um cabrão cheio de medo." (p. 80)

            "Virar do avesso o que está lá dentro", mais prosaicamente, ser autêntico é, pois, o desafio que a narradora lança ao seu amante escritor. Mas este compromisso com a autenticidade não pode deixar de ser lido também como desafio que a autora lança a si mesmo: assumir a escrita ficcional como modalidade de desvendamento da natureza humana, naquilo que ela tem, se não de imutável (mito muito conveniente para quem com ele justifica a discutível humanidade da sua própria "natureza"), pelo menos, de persistente, num quadro histórico determinado.

            Que Eros e Tânatos apareçam como tema recorrente na operação de desvendamento a que a autora procede, por interposta narradora, parece não ser caso para suscitar espanto. E, no entanto,

            "— [...] quem escreve sobre sexo fica reduzido a uma categoria. Se não for anónimo, é maluco, exibicionista, agente provocador ou filósofo, como o Sade.

            — Mas o Sade é filósofo.

            — O que estou a dizer é que, em geral, há a ideia de que os escritores-escritores não fazem isso, ou só no fim da vida, tipo posteridade, ou só como adenda picante, como se a pornografia fosse sempre o sótão ou a arrecadação, qualquer coisa à parte." (pp. 88/89).

            Para a quase-sobreposição a que, abusivamente, venho procedendo entre as entidades autor e narrador, realidades bem distintas, peço a benevolência de quem me lê. O que pretendo aventar é, nesta narrativa, o hipotético papel mediador da personagem narradora - ela seria a enviada, a mensageira da autora, o que, aliás, o primeiro dos "Agradecimentos" parece indiciar, ainda que para situação distinta:

            "A biografia de Nelson Rodrigues mencionada ao longo do livro é, claro, O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro (Companhia das Letras, São Paulo, 1992), uma obra-prima. Pôr a narradora a revê-la para uma imaginária edição em Portugal é estar a pedir que isso aconteça." (p. 179)

            Quanto ao segundo aspecto – a urdidura – é mais ou menos a meio do livro que a narradora decide, ela também, escrever um romance cujo título será O Meu Amante de Domingo. Os textos deste outro romance surgem em fundo cinzento nesta edição. Temos, pois, dois romances homónimos, ainda que não coincidentes:

            "Tudo começaria com uma narradora que decide escrever depois de se apaixonar por um impostor. Eu não revelaria o que pusera fim abrupto à relação. Importante era a fúria, a luta armada, a pulsão de vida contra os filhos da puta. O livro seria uma espécie de antropofagia, ela comendo o inimigo para ficar mais forte, como uma tupi portuguesa no Verão de 2014. Estaria há pouco tempo no Alentejo, como eu, mas noutro Alentejo. [...]" (p. 91)

            Ou seja, há uma autora, Alexandra Lucas Coelho, que vive no Alentejo e escreve um romance chamado O Meu Amante de Domingo cuja narradora, que também vive no Alentejo, decide escrever um romance chamado O Meu Amante de Domingo para o qual imagina uma narradora que vive no Alentejo. O procedimento chamado de "mise en abîme" é evidente. Como na pintura, temos um quadro pendurado na parede da sala, quadro esse que nos mostra uma sala com um quadro pendurado na parede. As salas podem não ser iguais, os livros também o não são, pelo que não se está propriamente na presença de uma metanarrativa.

            Os "recados" da autora prosseguem:

            "[...] eu jamais pensara escrever. Aquilo de escolher um narrador, se é uma terceira pessoa omnisciente e pode tudo, se é uma primeira pessoa e a quem se dirige, os dispositivos, os estratagemas, os imperativos categóricos. (p. 94) [...] Acho graça. Os gajos da prosa têm de inventar dispositivos, os gajos da poesia podem fazer o que lhes dá na telha. A prosa é funcionária, engenhocas, prestadora de contas, e a poesia é o altar acima da compreensão e da incompreensão. Na sua entrega ao que lhes é superior, os mortais permitem ao poeta tanto quanto ele se permita. O poeta é lido no assombro do que não tem resposta, porque é o único deus vivo, só aparentemente no meio de nós. Já repararam que ninguém pergunta aos poetas a quem eles se dirigem? Por acaso alguém anda aí a perguntar, caro Herberto Helder, quando diz 'dai-me uma jovem mulher', quem é o eu do poema?" (p. 98)

            São os constrangimentos inerentes à narrativa postos em confronto com a liberdade da poesia. Mas talvez não seja só a utensilagem técnica do romancista que aqui está em causa. Dir-se-ia, uma vez mais, estarmos perante um aceno da autora ao leitor, por interposta narradora, espécie de censura velada: admites qualquer possibilidade para o eu do poema de Herberto Helder ("Todo o amante? O poeta bruxo? O espírito santo?" (p. 98)), mas quem no meu romance diz "eu" tem necessariamente de ser eu?

                        Falta explicar o que leva esta narradora endiabrada a querer eliminar fisicamente o seu amante. O capítulo XXXIX di-lo: "[...] não é que o cabrão pôs tudo [o que a narradora lhe revelara da sua vida privada durante o mês do relacionamento] na porra do monólogo [texto pretensamente ficcional que o jovem amante leria numa sessão pública juntamente com mais dois autores], os meus quinze anos, o meu folhetim de alcova, o que chorei com a filha do nelson rodrigues, como o abracei por causa disso, o cabrão gravou as minhas palavras, escreveu como se as gravasse, as minhas palavras a dizer eu, um monólogo inteiro a dizer eu [...] desde o primeiro dia comigo devia andar com essa fisgada, o monólogo de uma gaja da minha idade, aquilo a que o mercado hoje chama os novos trinta, porque lha dá jeito, cremes, e botox, e silicone [...] ao fim de um mês tem um texto de carne-e-osso que sou eu." (pp. 162-164)

            O móbil do crime que acaba por se não concretizar tem, pois, a ver com a criação literária – pormenor eminentemente significativo. Com efeito, este romance de Alexandra Lucas Coelho, muito mais do que a história de um homicídio que não acontece, é um manifesto literário que equaciona a problemática da verdade na escolha da linguagem ("[a linguagem é] a própria mensagem", p. 128), e na utilização daquilo a que Somerset Maugham chamou "modelos vivos"[1].

 

[1] Maugham, Somerset, Prefácio de "Seis novelas escritas na primeira pessoa, in Chuva e Outras Novelas, Livros do Brasil, Lx.ª, p. 58

A Desumanização, de Valter Hugo Mãe – o poder da palavra

            Sigridur morre. Os pais, inconsoláveis. A criança tem uma irmã gémea, Halldora, a narradora. A mãe, que já se odiava "por não ter sabido salvar uma filha" (p. 51), passa a odiar também Halldora, que não esquece a irmã morta ("a morte é um exagero. Leva demasiado. Deixa muito pouco" (p. 17) e alimenta um sentimento de comunhão com ela. Halldora, apenas púbere (12 anos), engravida de Einar, moço meio tolo e pouco menos do que repulsivo, perseguido pelo pressentimento sombrio de que terá sido vítima de Steindór, personagem de estatuto mal definido, aparentemente substituto provisório do prior da aldeia ("eu acho que o Steindór me fez mal, mas não me consigo lembrar") (p. 56). A gravidez de Halldora só agrava a aversão da mãe pela filha. O feto, não viável, é lançado na cratera do vulcão: "para a boca de deus atirei o meu filho" (p. 129). O casamento de Steindór com a tia de Halldora acelera o processo de recuperação da memória por parte de Einar: anos antes, conluiados, Steindór e a tia de Halldora "obrigaram o [seu] pai a morrer à boca de deus [isto é, na cratera do vulcão]" (p. 215); agora, ele está na disposição de vingar a morte do pai, matando Steindór. Halldora antecipa-se-lhe e deita fogo à casa onde o casal dorme: "Tranquei as portas, encravei as janelas, escorri o óleo pelo chão. Era ainda muito cedo no meio do escuro, o vento agressivo sem chuva. Tomei um dos poemas do meu pai. Uma só folha, um poema único, sem cópia, irrepetível. Com ele acendi o fogo à casa bonita de Steindór e ainda vi como as paredes convidaram o lume, tão gulosas" (p. 231). Tudo isto se passa em zona recôndita da Islândia.

            Creio ser esta a trama de A Desumanização, reduzida à sua expressão mais simples, e, como se vê, até algo aparentada com o género policial. Só que, entre a trama descarnada e o romance final, há um mundo. E esse mundo é criação da linguagem, de uma linguagem que constantemente se questiona, se interroga, subverte os códigos da normatividade e, com isso, intranquiliza o leitor, desterrando-o de certa zona de conforto que é, no fundo, o lugar da recepção, para paisagens agrestes e inóspitas que o deixam inseguro e o constrangem a permanente adaptação. E, nisto, Valter Hugo Mãe (ou valter hugo mãe, já não sei) é exímio. Já o tinha percebido, e de que maneira, em o remorso de baltazar serapião, significativamente mais impressivo do que esta "desumanização", pela crueza das personagens e pela estranheza das situações. Mas o remorso afasta-se deste na toada arcaizante. O autor esmerou-se aí na recriação de um instrumento de comunicação que nos punha a ouvir Bernardim Ribeiro ou Fernão Lopes. O que se compreende - o cenário não tinha a brancura nem o gélido da paisagem islandesa, e, apesar da carência de informantes, sentia-se que "aquilo" podia ser cá, ter sido cá. Neste romance, apenas a humanidade, a incontornável humanidade das personagens nos é familiar, por muito que o autor se sirva da sua narradora para nos dar dos seus sentimentos e emoções uma imagem que não é a de todos os dias. Mas isso é a literatura. A literatura, que surpreende a fugacidade do instante, a extravagância do acto, a singularidade do pensamento ou da emoção. A personagem, porém, mantém connosco uma relação de proximidade que não engana. Somos feitos da mesma massa (aqui, esqueço deliberadamente a distinção pessoa/personagem), pertencemos à mesma espécie. Somos todos iguais, até no que nos distingue uns dos outros.

            VHM mostra-se, assim, reincidente na ingente tarefa de dar novos mundos ao mundo, nisso revelando que a lição de Saramago (seguramente entre muitos outros) foi acolhida. Não que Sigridur, a criança plantada, "[tenha nascido] outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra" (p. 11), de modo tão estranho quanto a peculiar forma de propulsão da passarola em que voam o padre Bartolomeu Lourenço, Baltasar Sete-Sóis e Blimunda. Se, no Memorial de Saramago, como no remorso de VHM, "[o fantástico convive com o real] sem solução de continuidade e sem criar tensão"[1], em A Desumanização é a narradora que constantemente se empenha em afastar-nos do trilho narrativo que enunciei no princípio, trilho esse excessivamente próximo da familiaridade humana, para nos levar a conhecer um mundo alternativo: "Achei que a minha irmã podia brotar numa árvore de músculos, com ramos de ossos a deitar flores de unhas" (p. 12). Mas esta aproximação não passa aqui de possibilidade anunciada e enunciada – não concretizada. A estranheza é também induzida pela omnipresença de uma mitologia que pode ser mera invenção do autor ou – mais provável – genuinamente autóctone. A assimilação da cratera do vulcão a uma "boca de deus", boca sem fundo que, uma vez e outra, traga os filhos dos homens, configuraria, nesta conformidade, uma representação do sobrenatural que é comum, p. ex., à cultura azteca, mas que, não sendo inédita, mantém, contudo, significativa carga emotiva. O que afasta o discurso de VHM do de Saramago é, ainda, o facto de este dar ao seu narrador o estatuto de entidade que sobrevoa o universo das outras personagens e sobre elas debita um discurso sentencioso, muitas vezes irónico, sempre presente. Em VHM, o/a narrador(a) é personagem como as outras, convive com elas, sofre dos mesmos achaques, questiona-se com iguais dúvidas. Ora este abandono do narrador a uma sorte que o irmana com as demais personagens deixa o leitor sem a companhia securizante daquela voz irónica. Se Saramago nos leva pela mão do princípio ao fim da visita guiada, VHM nem sequer se mostra – ele deixa-nos ali, logo à entrada, como que dizendo "Já sois grandes; vede e pensai o que vos aprouver".

            O trabalho sobre a matéria-prima que é a palavra está obviamente implícito em todo o discurso narrativo, mas A Desumanização é fértil em trechos que se debruçam metalinguisticamente sobre ela. O primeiro desses passos é o seguinte: "[...] ela achava que deus era o corpo deitado da Islândia [...] Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfémia, como qualquer ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza infinita de deus, da Islândia ou da morte" (p. 37). Como o barro do oleiro, apto para a manufactura do cântaro, impróprio para a moldagem da ideia. Um pouco mais à frente: "As palavras são objectos magros incapazes de conter o mundo. Usamo-las por pura ilusão. Deixámo-nos iludir assim para não perecermos de imediato conscientes da impossibilidade de comunicar e, por isso, a impossibilidade da beleza" (p. 42). Depois: "As palavras não são nada. Deviam ser eliminadas. Nada do que possamos dizer alude ao que no mundo é. Com trinta e duas letras num alfabeto não criamos mais do que objectos equivalentes entre si, todos irmanados na sua ilusão. As letras da palavra cavalo não galopam, nem as do fogo bruxuleiam" (p. 46) e logo a seguir: "Dizer Sigridur não fazia companhia. O meu pai fazia companhia mas não diríamos o nome da Sigridur com tanta matéria que o seu corpo se refizesse diante de nós" (p. 47). Poderia prosseguir com citações que parecem trair a insatisfação do próprio autor, por interposto narrador, perante as dificuldades da criação literária, necessariamente dependente da qualidade, da força e do agenciamento das palavras. As citações feitas são suficientemente expressivas.

            Paradoxalmente, outras ocorrências deste discurso sobre a palavra induzem a conclusão de que as palavras não são objectos tão magros, incapazes e não motivados pelos respectivos referentes, como atrás se pretendia: "E o sol era uma palavra amarela com outra que faiscava e talvez com crinas de cavalo em dias de maior exuberância. O meu pai [...] põe palavras nas mãos e elas começam a piar e são iguais às andorinhas [...] Algumas palavras, depois, têm outras como filhas. Andam acompanhadas delas e ensinam-lhes a brincar e a serem felizes. Quando passam os bandos a voar, o meu pai diz que é um texto. Diz que o podemos ler" (p. 68). E este poder que a palavra tem de dizer o que é e, fazendo-o, de recriar o mundo está ainda mais patente no passo seguinte: "Eu dizia o nome do Hilmar e, de alguma impossível forma, protegia na boca o meu filho. O meu filho inteiro no vocábulo do seu nome, que eu parara de pronunciar e, subitamente, suplicando-o à minha irmã, recuperava como uma presença ainda [...]O nome do meu filho como almofada onde eu pousava a língua, a linguagem, o pensamento, o sonho todo. Nunca haveria de o engolir. Como nunca acabaria o meu remorso. O Einar comovia-se. Dizia que inventávamos aventuras vocabulares. Dizíamos as coisas e elas eram já o bastante para nos pertencerem ou assistirem" (p. 162). Ou seja, a força genesíaca da palavra cria o universo.

            Em entrevista recente, o escritor espanhol Carlos Castán afirma: "Dizem que há escritores do como e outros do quê. Eu seria mais um escritor do como"[2]. Creio que, em VHM, seria tarefa árdua distinguir a importância relativa do como e do quê, de tal maneira a singularidade da história se enclavinha no artesanato da palavra.

3 de Agosto de 2015

 

[1] Selma Calazans, in Dicionário Electrónico de Termos Literários, www.edtl.com.pt

[2] Ípsilon de 3 de Julho último