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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Entre a onomatopeia e o oxímoro, venha o diabo e escolha

          A televisão, com a inestimável ajuda dos comentadores residentes, tem-se esforçado por nos fazer compreender que a escolha de 4 de Outubro tem como únicas referências uma coligação cuja sigla é PàF e um partido cujo símbolo é a rosa. A sigla da primeira é criteriosa: a onomatopeia lembra-nos as bofetadas que levámos ao longo dos últimos quatro anos; o símbolo do segundo, pelo contrário, não prima pela exactidão botânica e lembra um tanto o oxímoro, quando confrontado com a realidade: em domínios como a saúde, a segurança social, a educação, a legislação laboral, a fiscalidade – e passo –, o cacto seria bem mais apropriado.

        Peça importante do arsenal informativo, o Dr. Luís Marques Mendes não perde uma oportunidade, no seu comentário semanal da SIC, de apelar a uma maioria absoluta, de qualquer daquelas forças políticas, embora seja de suspeitar que o seu coração se incline mais para o tabefe do que para os arranjos florais. Não podendo ser, fundamental é que haja uma maioria absoluta. E tem toda a razão o isento comentador - com PàF ou com rosa, todos podemos sossegar que o país não entrará em aventuras. Continuaremos a pagar, com língua de palmo, a dívida impagável que não contraímos mas nos foi endossada por aqueles que, alternadamente, ocupam o poder.

        E, daqui a quatro anos, cá estaremos. Para escolher, democraticamente, quem nos vai assaltar nos quatro anos seguintes.

 

"A lei", de Thomas Mann, in As Três Últimas Novelas

As três últimas novelas, Thomas Mann.jpg

 

            "A lei" é a segunda de As Três Últimas Novelas, de Thomas Mann, recentemente publicadas pela Porto Editora/Livros do Brasil. Narrativa alternativa à da Bíblia, "A lei" insinua ironicamente a mistificação em que assenta a crença em Jeová, ou Javé, bem como a violência usada pelo "povo eleito" na sua busca da Terra Prometida. Moisés, personagem a quem cabe a espinhosa missão de conduzir os hebreus e de lhes infundir a fé num deus invisível e cioso, tal como o Velho Testamento no-lo dá a conhecer, é-nos aqui apresentado como uma personalidade atormentada, o que fica patente desde a primeira frase da novela: "Teve um nascimento conturbado, por isso amava apaixonadamente a ordem, o inviolável, a norma e a interdição" (p. 103). Fanático, autoritário, dado a visões, padecendo de entranhado misticismo e provável presa de um nebuloso complexo de sentimentos relacionados com o facto de ser o fruto de um relacionamento fortuito e ilegítimo entre o pai hebreu e a filha do faraó, Moisés logra converter as tribos madianitas do deserto a um deus que, contrariamente aos outros, era invisível, qualidade que não obstou a que se lhe tenha revelado, particularmente no episódio da sarça ardente. E são estas tribos que, após a partida do Egipto, e a "travessia" do Mar Vermelho[1], escorraçam os amalecitas do oásis de Cades e aí se instalam, numa versão que será reeditada séculos mais tarde, com os contornos que modelam e mancham o nosso presente. A história é bem conhecida e pode ser consultada, em versão dita sagrada, nos Segundo e Terceiro Livros de Moisés, a saber, Êxodo e Levítico. Mais difícil de lá encontrar, segundo creio, são algumas das últimas palavras pronunciadas por Moisés, na novela, ao regressar do Sinai, depois do episódio do bezerro de ouro, ao testemunhar a depravação a que, de novo, se tinha entregado o seu povo: "Bem sei – e Deus ainda melhor – que os seus mandamentos não serão cumpridos e que se violarão, sempre e em toda a parte, as suas leis e os seus preceitos. Contudo, no coração do infrator se gelará sempre o sangue, porque a aliança foi firmada na sua carne e no seu sangue – para toda a eternidade. [...] Que a terra volte a ser terra, um vale de lágrimas, mas jamais um antro de depravação. Dizei todos amém.

            E todo o povo disse amém (pp. 182-183)."

Moisés não conheceu Freud, mas parece antecipar o conceito de superego.

           

           Feito este sobrevoo da história, debrucemo-nos sobre aspectos da expressão. Contrariamente ao que sempre faço, comecei a ler estas três novelas pelo meio, isto é, pela segunda, de 1943, por estar muito curioso quanto ao tratamento que Mann dera a um tema que eu próprio me atrevi a glosar[2]. Tinha ainda como referência o conto de Eça "Adão e Eva no paraíso", e, talvez por ter esta referência tão próxima, a leitura das primeiras páginas da novela de Mann deixou-me desconsolado. Não sendo a originalidade da história, na circunstância, factor pertinente de análise, restava-me ponderar o vigor do estilo e a profundidade do pensamento. Deparei-me com páginas de escrita quase baça e sem relevo, que nunca se alcandora à excelência queirosiana. De tal modo que não pude deixar de pensar no facto de que, tratando-se de uma tradução do alemão, a responsabilidade poderia não caber a Mann, mas à tradutora. Acontece que a tradutora, Gilda Lopes Encarnação, é também a autora do posfácio do volume. Ora este posfácio é um texto magnífico. O que afasta a hipótese aventada quanto a eventuais defeitos da tradução. Perante isto, sobra uma possibilidade dolorosa: a de a minha apreciação pecar por rigorismo. Pois seja. Vergo-me ao peso das probabilidades. Mas, ainda assim: parece-me difícil acreditar que o prémio Nobel não tivesse topado a inconveniência de usar repetidamente os mesmos adjectivos, "conturbado" e "atormentado", por exemplo, para qualificar, respectivamente, o nascimento e a personalidade de Moisés: "Teve um nascimento conturbado, por isso amava apaixonadamente a ordem, o inviolável, a norma e a interdição (p. 103). [...] O pai não era pai e a mãe não era mãe – tão conturbado fora o seu nascimento" (p. 107); "Moisés era um homem muito atormentado e assim haveria de continuar por todos os tempos – o mais atormentado de todos os homens sobre a terra (p. 133). "Moisés tinha, por conseguinte, a seu cargo a missão de fazer justiça e de ensinar o que a justiça significava, o que o tornava um homem muito atormentado" [...] Moisés era decerto o mais atormentado de todos os homens sobre a terra" (p. 146). Também me parece improvável que Mann não tivesse encontrado melhor expressão do que "eixo de convergência" para classificar "a ideia [dos hebreus] de selarem uma aliança com o Deus de Moisés" (p. 118), e que tivesse usado uma expressão alemã equivalente, em nível de língua, à nossa "ficar a ver navios", em contexto bíblico, por muito que a ironia subtil esteja subjacente à narrativa: "[...] o povo estava convencido de que fazer justiça significava sempre dar razão a todas as partes, não querendo conformar-se com a ideia de que alguns podiam também não ter razão e ficar a ver navios. [...] não ter razão não significava impreterivelmente ter de ficar a ver navios [...]." (p. 145) Que dizer enfim de um parágrafo que parece ter-se inspirado num relatório de análises químicas: "[...] a água tinha um sabor mais do que desagradável, em virtude de certos minerais nocivos que continha, o que provocou uma amarga deceção e renovadas imprecações contra Moisés. Este, que a necessidade tornara engenhoso, colocou, porém, uma espécie de filtro na nascente, conseguindo reter, se não todos, pelo menos grande parte dos aditivos perniciosos, o que resultou num verdadeiro milagre e converteu a algazarra em louvores de júbilo, reforçando, e em muito, a sua reputação." (p. 134)

 

            Lamento sempre que, no trabalho de edição, não haja quem se disponha a "colocar uma espécie de filtro na nascente, conseguindo reter, se não todos, pelo menos grande parte" das imperfeições que um original possa conter. Não quero, contudo, deixar de reconhecer que, a partir de certa altura, o sentimento de que a narração não descola da sua lisura sem chama, porque demasiados atilhos a prendem à fonte bíblica, se atenua substancialmente, o que me parece decorrer de uma relativa autonomização da personagem Moisés em relação ao seu modelo bíblico. E convenho que as últimas palavras de Moisés são judiciosas: a terra continua a ser um vale de lágrimas – se não também, antro de depravação – com o povo (quase) todo a dizer amém, o que não deixa de ter uma bizarra ressonância, numa altura em que algumas sondagens eleitorais apontam para uma vitória da coligação que vergastou o país nos últimos quatro anos.

 

            Finalmente, volto ao posfácio de Gilda Lopes Encarnação para referir a circunstância de "A lei" ser geralmente considerada uma "alegoria do poder" e, mais particularmente, "uma alegoria da libertação face ao Terror, podendo o Egito ser comparado à Alemanha nazi e o faraó a Hitler" (p. 271). Lida como alegoria ou como paródia bíblica, e mal-grado as imperfeições que julgo lá encontrar, vale a pena o tempo investido.

(http://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt)

25/09/2015

 

[1] De facto, uma região de "baixios e juncais pantanosos [que] formavam, em certas ocasiões, uma comunicação direta entre os lagos Amargos e o golfo marítimo, que se podia percorrer a pé, evitando, dessa forma, a travessia das terras do Sinai. A única condição necessária a este fenómeno era que soprasse um vento forte do Oriente que fizesse recuar as águas do mar e abrisse uma passagem à multidão – graça que Javé quis outorgar aos fugitivos do Egito" (p. 129).

[2] "Génesis", in O Doce Aroma do Jasmim, actualmente no prelo.

O Homem Irracional, de Woody Allen

– entre a comédia e o drama

           

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Nada de particularmente original na história da aproximação entre Abe Lucas e a aluna Jill. Recordando Georges Gusdorf, “o acto pedagógico, em cada situação particular, ultrapassa em muito os limites dessa situação, para pôr em causa a existência pessoal no seu conjunto” (Professores para Quê?, Moraes editores). É, pois, natural a sedução reciprocamente exercida, ainda que involuntária e inconscientemente, pelas duas personagens. Quanto ao discurso filosófico que Abe debita, por necessidade diegética e pelas circunstâncias inerentes à situação em que se relacionam as personagens, suspeito que três ou quatro generalidades existencialistas não sejam de molde a satisfazer quem é do ofício, mas é óbvio, também, que Woody Allen não se propôs escrever um tratado de filosofia.

            O tema do acaso que comanda as nossas vidas, vagamente glosado pelos protagonistas, acaba por ter uma demonstração cabal na peripécia que conduz ao desfecho: a pequena lanterna ganha, por acaso, numa tenda de feira, cairá, por acaso, da carteira de Jill e é nessa lanterna que, por acaso, Abe escorregará, o que determina a sua queda.

            Numa vertente mais especificamente moral do discurso filosófico, a decisão de Abe quanto à eliminação física do juiz Spangler parece ser consistente com a postura da personagem e nomeadamente com a sua busca de um sentido para a vida. É nesse sentido que tal decisão se afasta do conceito de acto gratuito. Se este último se define pela ausência de uma motivação autêntica, a eliminação do juiz apresenta-se sob a capa de uma motivação superior – discutível, claro, mas com algum sentido, a começar pelo da ponderação do mal menor. Nestas circunstâncias, é uma decisão que se inscreve no plano da racionalidade, plano em que a ilegitimidade do acto não obsta à sua compreensibilidade. Já a atitude final de Abe para com Jill deserta do domínio das considerações de ordem filosófica para ser inteligível, apenas, à luz da cobardia, do egoísmo e da irracionalidade – donde, talvez, o título do filme. A maior parte do discurso fílmico mostra-nos, com efeito, um homem cuja racionalidade sobrepuja de tal maneira a afectividade que o leva à neurose. Com a tentativa de eliminação de Jill, estamos já no domínio da psicose.

            Interrogo-me sobre os desfechos que se ofereciam a Woody Allen: passar por cima dos indícios do crime (quase) perfeito e deixar Abe e Jill prosseguirem a sua idílica caminhada?, fazer vingar a tentativa de eliminação de Jill, permitindo a Abe continuar a desfrutar de uma vida para a qual encontrou finalmente um sentido?, fazer de Jill a discípula incondicional que interioriza a lição do mestre e se lhe rende? De todas as hipóteses, a mais moral é seguramente a de Woody Allen. Gide escreveu que a má literatura se faz com bons sentimentos, mas esclareceu que tal não significava que a boa literatura se faz apenas com maus sentimentos (Diário). Woody Allen fez um bom filme com bons sentimentos (certamente, porque não apenas). "O Homem Irracional" é um filme esteticamente bem conseguido, que revela a inteligência do realizador e argumentista, e em que os bons desempenhos de Joaquin Phoenix e de Parker Posey são um pouco ofuscados pela vibrante juventude de Emma Stone.

Maria Manuel, de Paulo Moreira

– uma boa história com um narrador menos hábil

  

 

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A história desta novela de Paulo Moreira é simples: uma jornalista na casa dos trinta anos, Ana, desloca-se com o filho João ao Minho, a fim de visitar uma tia, Maria Manuel ou, familiarmente, Tia Mané, irmã de seu pai, já falecido, e fá-lo a pedido de Mariana, criada ou governanta da tia. Já em casa da parente, com quem sempre mantivera um relacionamento esporádico e parco em afecto, Ana conhece Luís, rapaz dos seus vinte anos, filho de Mariana e afilhado de Mané. Circunstâncias acidentais travam uma aproximação entre Ana e Luís que parece querer desembocar num relacionamento íntimo e toda a acção decorre em torno da convivência temporária entre estas cinco personagens, que conversam sobre as suas vidas e interesses ou que, simplesmente, brincam – caso de João, que faz de Luís cúmplice dos seus jogos de criança. O leitor é informado pelo narrador das circunstâncias em que Mariana engravidara e educara o filho sob a protecção de Maria Manuel e de um seu amigo médico, o Dr. Ludovico, entretanto falecido. São essas circunstâncias que levam à suspeita da possibilidade, nunca totalmente esclarecida, de Luís e Ana serem filhos do mesmo pai, o estouvado João, bon vivant, então residente em Amesterdão, mas frequentemente em viagem. É também pelo narrador, e pela própria, que ficamos a saber da gravidez indesejada de Ana, aos quinze anos, e do aborto então praticado – com a cumplicidade de Maria Manuel e do Dr. Ludovico, na mesma casa onde agora se encontra – cerca de vinte anos antes, ou seja, pela mesma altura em que Mariana se encontrava grávida de Luís. Esta gravidez interrompida é ferida por sarar: motivo de angústia para Ana e de antipatia para Mariana. A deslocação da enfermeira Sara, a mesma que participara na interrupção da gravidez de Ana, a casa de Maria Manuel, a pedido da sobrinha, propiciará a descoberta de que Maria Manuel, afinal, é um homem, o que parece não causar grande perturbação em ninguém.

            Embora simples, a história lê-se com interesse, um interesse que resulta essencialmente da consistência das personagens, pese embora a afectação ou inverosimilhança de algumas falas. As personagens têm nesta narrativa alguma densidade e colam facilmente à imagem que temos de uma criada e mãe solteira de há uns anos, e de uma jornalista divorciada e sem grandes dificuldades na vida. E, no entanto, um conjunto significativo de inabilidades narrativas leva o leitor a tropeçar mais do que o tolerável na sua leitura. Uma dessas inabilidades consiste na inadequação do nível de língua do narrador. Num discurso, em geral, neutro, muito denotativo e desprovido de preocupações de ordem estilística, surdem aqui e ali expressões próprias do registo coloquial e plebeísmos que, noutro contexto, passariam despercebidos, mas que aqui sobressaem, insinuam uma displicência descabida e induzem um efeito de ruído. A título de exemplo:

            "[...]nem Ana nem o namorado pareciam muito entusiasmados com a ideia de levar avante o projecto de ter um bebé, coisa que, aliás, não lhes passara pela cabeça quando tinham dado umas quecas, na tenda de campismo, em Mil Fontes, nas férias da Páscoa." (p. 25, com reforço na pág. 36); "[...] António já estava muito entretido com uma outra rapariga com um ar muito mais prafrentex que o seu." (p. 34); "Os dois machos [Luís e João] ficaram em silêncio." (p. 62); "Os adultos pouco falaram, preferindo dar todo o tempo de antena ao miúdo [...]" (p. 67); "O certo é que, à pala da sua história, o miúdo conseguiu que lhe oferecessem um gelado [...]" (p. 144); "depois de uma primeira tentativa falhada lhe atenderam o telefone." (p. 159)

            Claro que o narrador pode abdicar do seu registo objectivo para adoptar pontualmente a visão e o idiolecto de qualquer outra personagem. Contudo, essa alteração do seu estatuto costuma ser preparada por intervenções prévias em que a caracterização dessas personagens funciona para o leitor como signo precursor. Não creio que isso se verifique, por exemplo, nos dois exemplos que seguem, pois as personagens Sara e Pedro não foram suficientemente caracterizadas: "Sara pensou mais uma vez que não estava a gostar do aspeto da coisa" (p. 89); "[Pedro] era pessoa muito prática e não gostava de conversa de chacha." (p. 99)

            Não menos perturbadora da fluência e do prazer da leitura é a tendência do narrador para explicar tudo, incluindo aquilo que o leitor pode facilmente inferir ou que acabaria por descobrir, ou ainda pormenores de duvidosa relevância ou pertinência, roçando por vezes o caricato ou o precioso:

            "A pergunta, tão pertinente mas ao mesmo tempo tão incomodativa, e por isso considerada inconveniente pelos adultos [...]" (p. 55); "Assim passaram uns longos instantes, completamente em silêncio, até que, por pura coincidência, se mexeram ao mesmo tempo [...] Ana levantou os olhos do chão e, por mero acaso, pousou o olhar na faca de Mariana pousada na bancada." (p. 59); "Pelo tempo decorrido (e pelos sons que chegavam ao exterior) Ana podia deduzir que o jovem fora unicamente urinar [...]" (p.72); "Ana voltou então para o leito e procurou retomar – sem grande sucesso, diga-se – o sono" (p. 77); "Após os normais cumprimentos de fim de chamada telefónica, Mariana acrescentou [...]" (p. 83); "Nisto, soou o telemóvel de Ana e esta viu que se tratava do Dr. Beltrán. Comunicando ao companheiro de viagem de quem era a chamada, atendeu-a" (p. 120); "nenhum de nós procurou saber se ela sabia que nós sabíamos e calou-se, depois de se ouvir nesta última frase, que lhe fizera recordar uma outra que ficara nos anais da política nacional" (p. 176).

            Há, depois, aspectos relacionados com a expressão em que o leitor esbarra com enorme frequência. O caso mais gritante é talvez o do uso imoderado dos demonstrativos "este" e "o mesmo", em vez do pronome pessoal ou do substantivo. Para exemplificar com uma só página, a 30, atente-se nestes passos:

            "Depois de se rir do humor negro de Francisco, muito provavelmente motivado pelo excesso de trabalho em pleno mês de Agosto, Ana acabou por se esquecer rapidamente deste [porque não "dele"?] e começou a pensar no seu trabalho de jornalista. Ainda só estava de férias havia menos de uma semana e este [porque não "o ex-marido"?] ainda lhe vinha à cabeça facilmente. [...] Depois de abrir a porta da cozinha para dizer a Mariana que ia sair um pouco, Ana começou a caminhar pelo jardim até ao grande portão gradeado que permitia a entrada de carros e, abrindo o mesmo [porque não "abrindo-o"?, porque não "abriu-o"?], saiu para a rua." Ocorrências semelhantes nas páginas 34, 59, 85, 89, 97, 111, 122,124, 132, 133, 136, 156, num inventário que peca por defeito.

            Ainda no domínio da expressão, o recurso reiterado às construções "no que" e "ao que" produz um efeito de eco que inevitavelmente distrai o leitor.

            "[...] e riu-se abundantemente, no que foi acompanhado por Ana" (p. 113); "[...] e riu-se, no que foi acompanhado por Luís" (p. 115); "[...] o miúdo não resistiu a ligar a sirene da ambulância, no que foi imediatamente repreendido pelo motorista" (p. 122); "[...] João pedia-lhe para que o deixasse entrar lá dentro, ao que o motorista acabava por aceder [...]" (p. 149). Outras ocorrências nas páginas 116, 154, 168 e 169.

            Continuando com este inventário, correria o risco de tornar o meu texto (ainda mais) fastidioso. Por essa razão, refreio a sanha crítica, enunciando sucintamente mais dois ou três aspectos a merecerem reparo. O primeiro deles é o recurso intensivo ao parêntesis, sem que se possa vislumbrar nesse uso e na consequente preterição da vírgula algum acréscimo de sentido ou efeito estilístico: páginas 7, 8, 25, 26, 78, 79, 84, 144, 166; o segundo é o uso de aspas no discurso reportado (indirecto), conforme se verifica nas páginas 28 e 166; finalmente, há solecismos difíceis de entender, embora correntes na comunicação social ("como se se tratassem de jogadores de futebol", p. 65; "quem parecem mesmo parvos são os rapazes", p. 66, e "ele ficou muito triste pelo Luís não estar aqui", p. 170).

            Maria Manuel é uma narrativa que revela capacidade de efabulação, mas a que falta, a meu ver, pendor reflexivo. Suspeito que a familiaridade do autor com a arte dramática possa ter fortemente influenciado esta característica, isto é, a propensão para a multiplicação dos diálogos e para a acção, em detrimento da reflexão. A literatura dos nossos dias, porém, não está refém de cânones, e o hibridismo de géneros tornou-se banal. Seja como for, aguardo com interesse o próximo livro de Paulo Moreira, certo de que terei menos oportunidades de exercer este olhar crítico.