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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O autor e a obra – problemas da criação literária

Paul Valéry escreve, em Tel Quel I:

 

"O escritor diz sempre mais e menos do que aquilo que pensa. Tira e acrescenta ao seu pensamento. O que ele escreve acaba por não corresponder a nenhum pensamento real.

É mais rico e menos rico. Mais extenso e mais breve. Mais claro e mais obscuro.

Razão pela qual aquele que pretende reconstituir um autor a partir da sua obra constrói necessariamente uma personagem imaginária."[1]

 

Temos um postulado: o discurso literário difere, infalivelmente e sempre, das virtualidades que podem ter estado na sua origem. Deste postulado, infere-se, depois, a inviabilidade do conhecimento do autor através da obra. Por comodidade de análise, adoptarei esta divisão no que seguirá, estabelecendo, contudo, alguns graus de diferenciação. Tomando o termo "escritor" na acepção geral de produtor dum discurso escrito possuidor de características consignadas na poética e sedimentadas na sensibilidade colectiva, considerarei três casos distintos: o da (auto)biografia, o da ficção e o da poesia.

 

No discurso biográfico, o escritor opera uma leitura sobre um "texto" bem definido que lhe pré-existe, procedendo à sua reescrita simultânea. A margem de liberdade do escritor é aqui particularmente restrita e, se é verdade que a omissão como a prolixidade lhe são sempre facultadas, não é menos verdade que ele se move entre os limites do real que pretende representar, sob pena de produzir um texto cujas relações referenciais se esfumam, quando o seu objectivo é, neste caso, a representação dos factos da vida de alguém (um indivíduo, em sentido restrito; uma colectividade, em sentido lato, coincidindo estão o discurso biográfico com o discurso histórico).

 

No caso da ficção, é evidente que nos afastamos da função cognitiva, informativa e referencial que caracteriza o discurso biográfico. Ao referente material, que impõe a sua evidência, sucedem agora referentes que podem ser puras representações mentais, lembranças, ideias, reminiscências oníricas,... Perante tal material, o escritor pode ainda, teoricamente, optar pela fidelidade e esmerar-se em reproduzir no seu discurso o próprio pensamento, tentativa que, a ser levada às últimas consequências, tende a aproximar-se da corrente de consciência, complicada com a reflexão sobre os próprios signos actualizados pelo discurso, o que equivale a conferir à linguagem o estatuto de personagem, como, segundo Butor, acontece no Ulisses de Joyce e é o que acontece também no "novo romance". Ora a pretensão de uma coincidência total entre o texto-vida e o texto-escrita é uma pura impossibilidade, por razões evidentes (a vida resumir-se-ia então à escrita). Todavia, a ideia de Valéry pode entender-se de modo diferente: o escritor sentar-se-ia à sua secretária (ou, pelo menos, diante da folha branca), com ideias e um plano preconcebidos, os quais iriam sendo alterados à medida que avançasse na respectiva actualização. Isto equivale a dizer não só que se exclui a pretensão da totalidade, mas ainda que os meros segmentos escolhidos são logo alterados, simplificados ou complicados, abreviados ou acrescentados, enriquecidos ou empobrecidos, clarificados ou obscurecidos. O postulado refuta, pois, a hipótese de o acto produtor do discurso ser mera escrita das representações mentais pré-existentes e a razão de tal fenómeno está intimamente ligada à própria dinâmica do processo língua/fala e às relações que se estabelecem entre os signos. O que Saussure disse a propósito do discurso falado, ao ser transposto para o discurso literário, dá-nos, a par do código linguístico (armazém de signos), o código cultural (armazém do que se poderia definir globalmente como ideologia, no sentido que Althusser dá ao termo[2], como sistema de representações); a par do acto da fala (que promove a actualização de determinados signos), o acto da escrita literária, que promove a actualização da ideologia. Ora o acto de comunicação (oral ou escrita) passa necessariamente por duas actividades complementares, uma ligada ao eixo paradigmático, a que Jakobson chamou actividade metafórica, e que consiste na escolha entre as possibilidades que o sistema oferece, outra ligada ao eixo sintagmático, a actividade metonímica, que leva à combinação dos signos[3]. É fácil compreender que a primeira destas actividades é momentânea, enquanto a segunda é contínua. Aliás, as relações que unem os signos entre si no eixo paradigmático são virtuais, enquanto as relações estabelecidas a nível de sintagma são efectivas e observáveis.

 

No meio de tudo isto, perdemos um pouco de vista o escritor, mas cingiremos de novo o problema que nos ocupa, verificando que, a cada passo, a actividade do escritor o leva a deter a sua caminhada metonímica para se questionar sobre a próxima escolha. Como diria Alzira Seixo, "metáfora é paragem, poesia"[4], é o momento de pausa que permite a contemplação antes que prossiga o "discurso-discorrer" metonímico. Avançando assim, por passos, o escritor vai revendo a sua estratégia inicial que pode ser inflectida numerosíssimas vezes, uma opção feita aqui implicando (por vezes mecanicamente) uma série de outras opções. E estas opções não são de ordem exclusivamente estratégica, pois que a tal pausa metafórica e poética pode arrastar e arrasta efectivamente o escritor para discursos aparentemente alheios à linearidade do discurso primeiro, discursos esses que só foram possíveis uma vez iniciado o processo complexo da escrita, e que nada faria prever antes de os signos-dados terem sido lançados na folha branca, porque foram a sua escolha e a sua inscrição nessa folha que determinaram a abertura de novos rumos.

 

Estamos a tocar de perto o terceiro caso que me propus abordar: o da poesia. Debruçando-se sobre a própria mensagem, tornando-a terreno de eleição e ponto de incidência essencial da actividade produtora, o poeta logra um tipo de relação com os signos que o distingue notavelmente do escritor comum. Com efeito, a sua sensibilidade, em certo sentido mais aguda e, em todo o caso, mais permeável à emoção, vai criar um terreno favorável à contaminação de relações e à "projecção do eixo paradigmático no sintagmático", projecção esta que caracteriza a função poética, segundo Jakobson[5]. Ora esta projecção parece ser o resultado dum conhecimento particular das palavras, reivindicado nestes termos por Ruy Belo: "Conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. Mas só eu – eu e os meus irmãos – sei em que medida sou eu que sou domado por elas. A iniciativa pertence-lhes. São elas que conduzem o meu trenó sem chicote, nem rédeas, nem caminho determinado antes da grande aventura."[6] Esta automotivação da mensagem, este discurso gerador de si próprio só por atalhos poderia conduzir à figura do autor. Voltando a citar Ruy Belo: "Alguém que me procure tem de começar – e de se ficar – pelas palavras. Através das várias relações de vizinhança, entre elas estabelecidas no poema, talvez venha a saber alguma coisa. Até não saber nada, como eu não sei."[7]

 

Com isto, parece ficar confirmada a tese de Valéry sobre a construção de uma personagem imaginária. O parti pris de recusar o veículo obra para chegar até ao autor aponta para as tendências modernas da crítica literária, avessas ao positivismo pretérito e orientadas fundamentalmente para a análise imanente do texto.

 

[1] "L'écrivain: Il en dit toujours plus et moins qu'il ne pense. Il enlève et ajoute à sa pensée. Ce qu'il écrit enfin ne correspond à aucune pensée réelle.

C'est plus riche et moins riche. Plus long et plus bref. Plus clair et plus obscur.

C'est pourquoi celui qui veut reconstituer un auteur à partir de son œuvre se construit nécessairement un personnage imaginaire." Paul Valéry, Tel Quel I

[2] "[...] como diz Althusser, uma ideologia é um sistema de representações (ideias, mitos, conceitos, religiões, costumes, etc.) [...]" Nelson de Matos, A leitura e a crítica, Estampa, Mafra, 1971, p. 32

[3] Roman Jakobson, "Dois tipos de afasia", in Essais de linguistique générale, Points, Editions de Minuit

[4] Alzira Seixo, "Reflexão sobre a escrita", in Discursos do Texto, pp.26/27

[5] Roman Jakobson, Linguistique et Poétique.

[6] Ruy Belo, "Não sei nada", in Homem de Palavra(s), Assírio e Alvim, Lx.ª, 2011

[7] Idem

O secretário -geral da UGT e o senhor Honrado

Há dias, numa entrevista para a Antena 1, o secretário-geral da UGT, Carlos Silva, antecipando-se ao PR e a António Saraiva, presidente da CIP, Confederação dos Patrões, igualmente oriundo da UGT, declarou: "Não me parece que efetivamente as forças à esquerda do PS dêem a garantia de estabilidade em relação ao futuro. Há dúvidas. Portanto, o PS só conseguirá fazer maioria se tiver maioria na Assembleia, quer do PCP quer do BE. É uma maioria instável que na minha opinião não dará garantias que no futuro a governabilidade seja assegurada por quatro anos."

 

Lembro-me de o ter ouvido, na mesma ocasião, e para que dúvidas não surgissem nos espíritos dos ouvintes, afirmar categoricamente que era "um homem de esquerda".

 

Carlos Silva, como João Proença, como outrora António Saraiva, que perfilham idênticas opiniões quanto a um hipotético governo do PS apoiado pela esquerda, são representantes de um "sindicalismo" forjado pela classe dominante para assegurar a reprodução ininterrupta dos mecanismos da exploração capitalista, como o prova o seu sistemático alinhamento com os governos e as confederações patronais. Estas declarações proferidas por quem tão facilmente transita de um campo para o outro e se comporta como mandatário do sistema, são, pois, naturais e insusceptíveis de causar indignação.

 

Há, contudo, na referência elogiosa à "estabilidade" que apenas o governo de direita, com o apoio, claro, do PS, está em condições de proporcionar, referência imediatamente seguida da proclamação de pertença à esquerda, uma curiosidade que não deixa de honrar o "sindicalista". Carlos Silva sentiu necessidade de esclarecer que o seu apoio a um governo de direita, apoiado pelo PS, não invalidava a sua condição de "homem de esquerda", esclarecimento que trai, apesar de tudo, um conflito, uma censura da sua consciência de classe (uma consciência de classe decerto mortificada, amarfanhada e encafuada sob toneladas de acordos de concertação social nefastos para os seus associados) e a sua convicção muito entranhada (tanto que pena como carrejão para aflorar à superfície) de que ser de esquerda é estar do lado dos trabalhadores e não do lado dos exploradores.

 

Ademais, esta circunstância suscita o debate desde há muito travado, nos meios políticos esclarecidos e de visões largas, sobre o que é afinal ser de esquerda e ser de direita, na pós-modernidade. Numa época em que partidos de esquerda – dizem – defendem medidas comummente consideradas de direita e vice-versa, que sentido fará manter esta terminologia obsoleta?

 

O poder da palavra é imenso, que o digam os criadores, poetas à frente, que tudo transfiguram graças a artifícios que não estão ao alcance do comum dos mortais. Não é bem disso que se trata, contudo, no caso vertente, pois a apropriação de determinado léxico é feita, neste caso, com dolo e, longe de visar a emoção estética, visa sim a mistificação e o logro.

 

Não posso deixar de fazer uma analogia entre estes factos da vida política e do domínio ideológico e factos da vida social. Tomemos um ladrão a quem na pia baptismal foi dado o nome de Honrado e que, por sinal, até se comporta honradamente com os seus amigos e vizinhos, além de que mata a fome à bicharada abandonada lá da rua. Por muito que ele proclame "Eu sou Honrado" e por muita simpatia que possa inspirar aos seus amigos e vizinhos, a sua condição de ladrão persiste, é essa que o auto policial e o processo penal assinalarão como relevante, ainda que as suas outras qualidades lhe possam servir de atenuante e pese embora toda a solidariedade dos vizinhos e amigos que atestam veementemente a sua honradez.

 

Os meios políticos esclarecidos e de visão larga, muitos comentadores encartados e até académicos incensados comportam-se como os vizinhos e amigos do nosso ladrão, embora com intenções menos nobres. Juram a pés juntos que estar com a direita e ser de esquerda é próprio destes novos tempos, que o esquematismo catalogador é redutor do pensamento e da realidade, enfim, que esquerda e direita são designações vazias de conteúdo. Claro que podiam esforçar-se por confrontar as medidas pontuais e as orientações estratégicas propugnadas por uns e por outros com os grandes valores que, pelo menos desde a Revolução Francesa, são considerados património daqueles que estavam com o Terceiro Estado ou, pelo contrário, daqueles outros que se batiam pela manutenção de um regime de privilégios reservados a uma minoria parasitária. Concedo que tal confronto exige alguma concentração e sobretudo uma honestidade intelectual que a muitos deles falece. Por isso, comportam-se como os amigos do senhor Honrado, sustentando que pode roubar à vontade, já que o nome ninguém lho tira.

Reinar depois de morrer

Todos conhecemos a história trágica dos amores de Pedro por Inês que António Ferreira (séc. XVI) pôs em cena na Castro. O êxito da tragédia foi tal que, até hoje, muitos têm sido os dramaturgos, poetas, músicos e cineastas que aí foram colher inspiração para, em Portugal e no estrangeiro, produzirem outras peças de teatro, poemas, óperas, filmes e séries de televisão. Reinar después de morir é o título, aqui decalcado, da peça do escritor espanhol Luis Vélez de Guevara, publicada em meados do século XVII, como La reine morte é o título da peça de Henry de Montherlant publicada em meados do século XX.

 

Durante muito tempo, assistimos em Portugal a uma curiosa representação por parte do senhor PR: sempre que estavam em causa acontecimentos que pudessem afectar a credibilidade ou a actuação do (seu) governo, manifestava a sua preocupação, agia no sentido de lhe dar renovado fôlego; sempre que eclodiam sinais de que as políticas implementadas por esse (seu) mesmo governo causavam estragos sérios na vida dos cidadãos e na viabilidade do país, talvez inspirado no romance As Intermitências da Morte, de José Saramago, fazia-se de morto. Como esta última circunstância era pouco menos do que diária, o senhor PR, em quase dez anos, esteve quase sempre morto.

 

Num momento em que a tensão dramática da vida política nacional está próxima do clímax, suspeito que o PR vai dar novo fôlego, não ao romance do escritor que odiava (o pavor causado pela possibilidade de um governo alternativo insuflou-lhe irrefreável ânsia de viver), mas à desditosa história da nobre galega. Dando posse a um governo morto e, provavelmente, deixando-o no trono por alguns meses, teremos então, em Portugal, um estranhíssimo quadro institucional: na Presidência da República, um morto-vivo, isto é, alguém que morre e desmorre consoante as conveniências; no governo, um cadáver que, embora adiado, não deixará de nos incomodar com os seus eflúvios infecto-contagiosos.

 

Que tal o Dia de Finados para a tomada de posse?

O voto dos deputados

O recente apelo do PR à insubordinação dos deputados do PS, na votação do próximo programa de governo e do próximo Orçamento, invocando a sua consciência pessoal, e instigando-os, implicitamente, a não se deixarem vergar a lógicas de disciplina partidária, tem sido criticado na óptica da inconveniência institucional. Por outras palavras, censura-se ao PR imiscuir-se na vida interna de um partido, tentando condicionar os seus deputados. Sem discordar da crítica, entendo que ela é de alcance limitado e que as reacções que suscitou, no fundo, assentam num pressuposto, igualmente implícito, que une críticos e criticado. Vou tentar explicar.

 

O grupo parlamentar de um partido político é, creio, constituído por pessoas que se apresentaram perante os eleitores com determinado programa, presumindo-se que são, colectivamente, seus co-autores, ou, pelo menos, que se identificam com ele – caso contrário, que sentido faria empenharem-se numa campanha eleitoral cujo objectivo é divulgar as ideias desse programa junto dos cidadãos? Paralelamente, os cidadãos eleitores que votam nesse partido fazem-no porque concordam com aquelas ideias e porque confiam que as pessoas que as defenderam durante a campanha eleitoral vão continuar a fazê-lo no parlamento. Seria absurdo os candidatos a deputados apresentarem-se aos eleitores dizendo concordar apenas com parte do programa eleitoral, terem dúvidas em relação a outra parte e deixarem para mais tarde a sua decisão quanto a votarem ou não favoravelmente medidas supervenientes. Nesta perspectiva, o grupo parlamentar é mais do que a soma das consciências individuais de cada um dos deputados que o compõem e só existe, enquanto grupo, precisamente porque o congrega a consciência grupal, que é mais do que a individual. Pergunto-me se seria aceitável para o cidadão eleitor verificar que dos dez, vinte, cinquenta ou cem deputados do partido em que votou, houve dois ou três, ou vinte ou trinta, que, num exercício narcísico de afirmação de convicções pessoais, decidiram votar contra a orientação colectiva, enquanto outros ainda, eventualmente, se abstiveram. Nem num partido personalista isso seria praticável.

 

No desenvolvimento desta linha de raciocínio, chega-se naturalmente à pergunta "que fazer, quando se discorda?". Impõe-se uma solução: se o deputado não pode respeitar o compromisso assumido para com os seus eleitores e para com o seu grupo parlamentar numa questão conjuntural (admitamos que se trata de algo que mexe com o mais fundo da consciência e da individualidade de cada um), que se faça substituir; se a sua incompatibilidade se manifesta naquilo que é estruturante de determinada estratégia política (recusa de um programa de governo ou de um Orçamento), que se demita – a lista de deputados tem, para além dos efectivos, os suplentes, que estão lá para suprir as desistências.

 

Voltando ao princípio, uma crítica que se limita à denúncia da ingerência do PR na vida interna de um partido ou da Assembleia deixa de fora o capital de confiança dos eleitores nos seus representantes. Ora o regime em que vivemos é o da democracia representativa. Se o PR a alveja, os críticos do PR devem lembrar-lho.

Cavaco Silva, modelo de coerência

O PR foi coerente, há que reconhecê-lo. Eu diria, quase – há que louvá-lo, pela assunção inequívoca de uma postura antidemocrática, claramente a caminho do fascismo. Estruturalmente reaccionário como é, seria surpreendente Cavaco Silva optar pela solução alternativa, indigitando o líder do partido mais votado dentro da maioria parlamentar de esquerda declaradamente decidida a inviabilizar o governo PSD/CDS. Não por esse partido ser o PS, mas por esse partido se ter "coligado" com o BE e sobretudo com o PCP. Claro que aquilo que se avizinha (a manutenção do governo de direita em gestão durante uns meses) é algo que se aproxima muitíssimo da definição do fascismo como ditadura terrorista. A democracia burguesa desmascara-se de cada vez que vê a sua hegemonia periclitar e só não assume a sua expressão fascista enquanto consegue assegurar a sua sobrevivência por meios (mais) pacíficos. Na actual conjuntura, a capacidade demonstrada pelos partidos à esquerda do PS de influenciarem determinantemente a política governamental, pelo menos na sua dimensão nacional (fiscalidade, política salarial, legislação laboral, etc., que não na vertente dos chamados "compromissos europeus"), configurava uma real perda de poder da classe dominante. Daí o frenesim em que toda uma chusma de comentadores-políticos e políticos-comentadores se empenhou ultimamente, brandindo o fantasma do comunismo e o espantalho do apocalipse. Graças à decisão e ao esclarecedor discurso de Sua Excelência, todos sabemos agora com que contar: ou votamos de acordo com os superiores interesses da clique dirigente ou nos rendemos à triste evidência de que o nosso voto é uma arma de pacotilha.

 

Entretanto, findo este primeiro acto, a cortina abre-se de novo amanhã para o segundo acto da comédia. Cena I: eleição do presidente da AR. Não tenho nenhuma dúvida em relação ao sentido de voto dos 17 deputados do PCP. Acredito que o mesmo acontecerá com os do BE. Mas haverá alguém que possa dizer o mesmo em relação aos deputados do PS? Para cúmulo, o voto é secreto, isto é, permite que aquele tipo em quem eu sempre confiei me possa trair sem que eu saiba que me traiu e possa, daí em diante, continuar a beneficiar da minha confiança.

 

Comédias destas talvez ainda possam fazer rir alguns. Corrigir os costumes, não tanto.

Transeuntes, de Vítor Gil Cardeira - prosa enxuta e expedita

 

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Se a célebre máxima de Buffon "o estilo é o homem" quer dizer que a feição da nossa escrita revela aquilo que somos (parece que não foi bem isto que ele quis dizer, mas é esta a interpretação mais corrente e a que me convém), é de crer que Vítor Gil Cardeira é um homem frontal e sem papas na língua. A prosa de Transeuntes é, de facto, daquelas que não perdem tempo com o rendilhado, a filigrana, o rodeio. A sua trajectória é linear e tem a força certeira da seta. O vocabulário híbrido, com irrupção frequente do plebeísmo ou pelo menos de signos denotativos de realidades menos agradáveis, contribui decisivamente para tal efeito.

 

Transeuntes é um livro que se pode ler a correr, porque as trinta e três breves narrativas que o compõem (será este número mero acaso?) se não compadecem com tempos mortos e parecem atrair-nos para o desfecho, como vórtice no seu movimento giratório. Lê-se a primeira, "O cabo Santos", e logo se repara na mancha gráfica repetida nas sete seguintes: uma mancha gráfica marcada pelo espaçamento duplo entre parágrafos de uma largura que lhes dá o aspecto das estrofes na poesia. Intenção deliberada? É de crer que sim, que o acaso, na literatura, é longamente premeditado. E é por estes parágrafos-estrofes que o autor distribui apontamentos narrativos como pinceladas breves. Esta segmentação é abandonada a partir da nona narrativa, sem razão aparente, ainda que se mantenha sempre a largura da mancha. Não obstante o abandono da segmentação "estrófica", a démarche narrativa não sofre alteração: a impressão deixada pelos primeiros parágrafos de "O Cabo Santos" perdura nos demais textos: sucessão de apontamentos vertidos numa sintaxe sincopada, parca em articuladores do discurso, quase sem subordinação e nada pródiga em coordenação. A título de exemplo, dois excertos, um do primeiro, outro do último texto:

 

          "Os soldados marchavam no seu passo de ganso sem nunca acabar. À frente o General, mão colada na testa. Óculos escuros.

          Foi então que reparei no botão que certo soldado, alto e de queixo aprumado, deixou cair na ampla avenida.

          O General tremeu. Os olhares sagazes dos convidados seguiram o rebolar do botão pelo asfalto duro e liso." (p. 6)

          "São cinco horas da manhã na cidade. O vento parou um pouco. Entre as sombras gigantes das árvores, passeio confusamente anos acumulados de solidão.

          É triste a impossibilidade de regressar. Regressar a um lugar onde as coisas se ligavam logicamente, formando um corpo coeso e inteligível.

          As ruas arrefecem do longo dia de Verão, é, no entanto, discutível se eu o sinto, porque não há pássaros acordados na noite." (p. 94)

 

Quando, no último dos parágrafos desta citação, se lê "porque não há pássaros acordados na noite", a subordinada surpreende e quase suscita uma correcção: "— Então, Vítor Cardeira! Aqui, não era caso para escrever: 'é, no entanto, discutível se eu o sinto. Não há pássaros acordados na noite." ? Sim, porque há uma toada induzida pela leitura que vem de trás. Essa toada cria expectativas sintácticas, uma vez por outra frustradas.

 

Note-se que o estilo sincopado não é obra exclusiva da sintaxe. Se, nos dois excertos precedentes, a coesão semântica do discurso assegura a permanência e a continuidade da linha narrativa (há unidade de tempo, de espaço, de acção, mantendo-se as personagens), já, por exemplo, o texto n.º 9, "Sabedoria pentagonal", tende a estilhaçar qualquer veleidade de leitura unívoca. Com efeito, projecta-se aqui o leitor ora num sentido ora noutro, entendendo-se aqui sentido na dupla acepção de significado e de localização geográfica:

 

          "Fixei os olhos no canto da janela. Saiu daquela paisagem e foi-se debruçar para o mar e vi uma gaivota mergulhar em vírgula numa embarcação decadente que violara as vidraças. Tentei não reparar que as persianas faziam malha no centro das nuvens em forma de guarda-chuva. Consegui com isso uma leve impressão no céu da boca que me causava a mais terna sensação de mal-estar já sentida por um semiafundado espectro de fantasma de ourives. [...]" (p. 30).

 

Repare-se como o discurso define um espaço doméstico (o canto da janela, as vidraças, as persianas) imediatamente alargado à paisagem envolvente (o mar, a gaivota, a embarcação, as nuvens) espaços estes familiares e instituidores de uma realidade que nada tem de inverosímil. Um primeiro índice de afastamento em relação a esta zona de conforto descritivo-narrativo está na omissão do sujeito das segunda e terceira proposições ("Saiu daquela paisagem e foi-se debruçar para o mar"). Perguntamo-nos: "quem saiu?, quem se foi debruçar? O canto da janela? Uma parte de mim mesmo que se autonomiza, deixa o canto da janela e se debruça para o mar? Depois, a gaivota "mergulha em vírgula", representação metafórica de um voo a descrever uma curva que, aliada à "malha" feita pelas persianas "no centro das nuvens em forma de guarda-chuva", sugere insistentemente inscrições pictóricas em tela. O sujeito da enunciação conduz o foco narrativo a seu bel-prazer, fixando agora o doméstico e familiarmente apreensível e logo o incognoscível numa leitura denotativa, como seja a embarcação que "viola as vidraças" ou a "terna sensação de mal-estar já sentida por um semi-afundado espectro de fantasma de ourives".

 

Narrativas – tenho eu designado os textos que fazem Transeuntes. Talvez convenha precisar que, se a narratividade está presente em todos, há uma oscilação entre o discurso predominantemente narrativo que é, por exemplo, o do primeiro texto, e a poesia narrativizada como é, também a título de exemplo, o caso dos textos n.º 14,15 e 22. Em qualquer dos casos, porém, a verosimilhança do narrado é totalmente desvalorizada, uma vez que a realidade é sempre curto-circuitada pela irrupção de traços oníricos, fantasiosos, alheios aos nexos lógicos, volatilizando a mensagem ou, em todo o caso, excluindo a univocidade da leitura. O discurso narrativo-poético constrói-se no patamar do surreal. Acontece, como no texto n.º 6, "Um macho de dez tostões", que uma parte da história, embora rapidamente desviada do curso realista, é legível, em termos de conformidade com os imperativos da racionalidade. Rapidamente, contudo, esses nexos esfumam-se, neste caso com a entrada em cena das gaivotas e da "mulher das tempestades bonanceiras". No fim, suspeitamos que o que essa mulher nos deixa é um "imenso oceano" de perguntas nas nossas "mentes de cobardes" incapazes de a acompanhar num voo pelo absurdo.

 

Outra característica relevante de significativo número destes textos é o cruzamento, a intersecção de histórias, ou, pelo menos, a inclusão de segmentos narrativos que, podendo pertencer à mesma narrativa principal, não estão suficientemente indiciados para que o leitor os sinta como a ela pertencentes, conforme se pode verificar em "Caramelos nas orelhas", texto n.º 13, pequena história de um aluno desatento e mal comportado em que as mais diversas anotações "parasitam" o curso da acção.

 

Há dois textos, o n.º 18, "O carregador de almas", e o n.º 33, "São cinco horas da manhã na cidade", que reputo de emblemáticos por explicarem, obliquamente, é certo, a relação da escrita de Vítor Cardeira com a realidade e a conflitualidade que parece subjazer ao seu processo criativo, nomeadamente nestes passos: "Apenas um pesadelo seria mais real do que um exilado com a Lua criminosamente bela ao fundo" (p. 56) e "Há um universo de coisas desconexas entre mim e o que pretendo dizer. Um não acabar de estímulos irreversíveis que nunca vou voltar a lembrar: aliás a memória é um instrumento ao serviço do passado e eu sou um deserto sem vegetação primitiva" (p. 95). Por outro lado, no primeiro destes textos, menciona-se a figura do pai do exilado, personagem facilmente sobreponível ao pai do autor, a quem o livro é dedicado, ou não tivesse sido "a única pessoa que [o] entendeu" (dedicatória). Mas vai mais longe, insinuando-se como manifesto literário. A certa altura, lembra a mordacidade do Manifesto anti-Dantas: "Para não morrer, o melhor é esquecer a repugnância que os anjos projectam e saltar até que as pernas se verguem ao cansaço e os tecidos obscuros da alma rejeitem a compaixão que sufoca, quando é chegado o fim da cruzada contra a imbecilidade." (pp. 57-58). Esta mensagem de rejeição do academismo dilui-se, depois, na ambiguidade com que é tratada a natureza da arte: " A destreza com que os burgueses se enganam a si próprios, em nome da ciência, que os impede de viver como os génios, comove. Os defeitos das sombras inquietas parecem empecilhos na longa caminhada para a mentira, esse estado em que a arte parece estagnar por satisfeita e que, sem explicação, apaixona os artistas verdadeiros" (p. 58).

 

Aproveitando esta reflexão sobre a arte, postulo que há sempre nela uma dimensão política, no sentido mais lato do termo, naquele que mais o aproxima do social. O escritor, o poeta não escreve só porque isso lhe dá prazer; escreve também porque sabe que o vão ler e não escreveria se tivesse a absoluta certeza de que nunca ninguém o leria. Ora, se com a escrita visa chegar ao outro e com ele chegar a alguma sorte de entendimento, é bom que esse objectivo eminentemente ligado à polis e à comunidade dos homens não seja frustrado por um enunciado que defrauda o fluxo da mensagem, isto é, a sua compreensibilidade. Em Transeuntes, apesar dos numerosos escolhos, a mensagem passa. Pelo caminho ficam, decerto, clareiras de significado, lugares em que, para o leitor, a significação cede o passo a impressões tingidas de emoção. Mas o que é a poesia senão esse jogo dialéctico em que o significado fulgura por um instante e logo se desvanece perante o fulgor da imagem que se demuda em emoção?

 

Tento encontrar possíveis inspiradores de Vítor Cardeira nas nossas letras: Nuno Bragança?, Luiz Pacheco?, Mário Henriques Leiria? Talvez eles todos e mais alguns. Ou talvez nenhum. Mas julgo incontornável o parentesco com os cultores do super-realismo, sobrerrealismo ou surrealismo, pois os procedimentos a que me refiro anteriormente, nomeadamente a contiguidade entre onírico e real e a intersecção de linhas narrativas desconexas e insólitas traem o recurso à técnica do automatismo. Por outro lado, a permanente transgressão das leis físicas e a irrealidade dos factos relatados em Transeuntes são de molde a justificar a sua aproximação à literatura fantástica. Citei atrás Mário Henriques Leiria, um dos numerosos cultores do género. No seu conto "fc, o banho e não só", a personagem escorre pela válvula da tina, juntamente com a água do banho. O que me parece distinguir o procedimento de Leiria do de Cardeira é que o primeiro coloca a sua personagem numa situação com tudo de verosímil (a banalidade de alguém que se mete na banheira depois de ter aberto a janela "por causa do gás") e assinala de maneira inequívoca o motivo que espoleta o fantástico (a abertura da válvula da tina): "Então ouviu flup e a válvula da tina abriu-se sozinha, com lentidão. Que coisa!"[1]; as personagens (os transeuntes) de Vítor Cardeira ou estão permanentemente mergulhadas no inverosímil ou transitam do verosímil para o inverosímil e vice-versa sem solução de continuidade e sem que o leitor se aperceba de que houve ruptura. Ou seja: num caso, temos dois planos perfeitamente distintos: o do verosímil e o do inverosímil; no outro, temos dois planos que se interpenetram e fundem permanentemente: é a mulher que entra no bar do costume e aperta a mão a uma salamandra semi-nua; é o cão que segue o narrador e lhe pede um cigarro; é o homem acomodado na vida que está a mudar de espécie e se atira na brisa cumprimentando o crocodilo, etc., etc., etc.

 

Convirá ainda, e enfim, explicar a identificação da prosa de Vítor Cardeira com a poesia, identificação essa a que procedi há dois parágrafos. Não é, obviamente, pelo particular aspecto da sua mancha gráfica, embora haja nisso uma certa carga sugestiva. O mais importante, contudo, está no enfraquecimento e truncagem da narratividade, isto é, daquilo que, no discurso, configura a história. Acontece quase sempre que a expectativa do leitor é defraudada: o narrador lança escassos dados de uma acção cujo percurso é rapidamente interrompido, desviado ou convertido em devaneios pejados de imagens transfiguradoras, como acontece nos excertos que seguem:

 

          "Eu estava ali sentado. Uma mesa redonda sem fim, cheia de beatas de cigarros e de ilusões enlatadas num frasco de açúcar.

          Às vezes entravam melgas gigantes. Traiçoeiras. Vestidas da cor das manhãs sem Sol.

          [...]

          Foi então que chegaram ao pé de mim elefantes a jogar petanca. Como ninguém lhes sorriu, sentaram-se e pediram café.

          [...]

          Aí, na Mauritânia ou em Singapura, comi uma lata de sardinhas e estraguei os dentes todos. Dei-os então a uma menina de caracóis de luar. Pensei que eras tu.

          [...]" (pp. 33 e 35)

          "Eu era uma alucinação imensa rebolando na praia, e quando o Sol já queria alargar os horizontes, dirigi-me a casa dançando melodias árabes por entre vagas alcoólicas. Alterosas." (p. 74)

 

Na Introdução à Antologia do Conto Fantástico Português, já citado, E. M. de Melo e Castro escreve: "tal como nota Kingsley Amis no prefácio de The Lucifer Society, a literatura fantástica desempenha a função de uma 'válvula de escape', tanto para quem a escreve como para quem a lê e consome. Válvula de escape principalmente de 'certas obsessões embaraçosas, angústias neuróticas, medos irracionais, pesadelos privados, etc., que não podem ser libertados por meio de qualquer narrativa convencional'."[1] Pergunto-me em que medida poderá a "prosia"[2] de V. Cardeira funcionar como "válvula de escape". Para ele. E para quem o lê.

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[1] Antologia do Conto Fantástico Português, Edições Afrodite, 2.ª edição, Lx.ª, 1974, p. 551

[2] Idem, p.XI

[3] Neologismo – transparente, suponho, e que talvez agrade a Fernando Esteves Pinto.

 

 

"Poesia a Sul", pureza da arte e cidadania

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A sessão de encerramento do Encontro "Poesia a Sul", Olhão 2015, contou com a presença de Manuel Alegre, no cinquentenário do seu livro Praça da Canção. Na mesa, para além do autor, estavam Carlos Brito, a quem coube a intervenção de fundo sobre o livro de Manuel Alegre, e Fernando Cabrita, organizador da iniciativa. No debate sobre "A poesia e a cidadania", subsequente à sessão inicial e moderado pelo Prof. João Minhoto Marques, esteve ainda presente o poeta espanhol Rafael Vargas. Todas as intervenções versaram, genericamente, o papel da poesia e dos poetas que, como Manuel Alegre, Manuel da Fonseca e outros souberam, "em tempo de servidão", pôr a força da palavra poética ao serviço do povo e apontar caminhos de libertação. Fernando Cabrita encaminhou, depois, o debate para a problemática do aparente afastamento das novas gerações de poetas relativamente às temáticas de índole política e social.

 

Momentos antes do início desta sessão, um amigo poeta também presente, falara-me do último livro de Mário Cláudio, Astronomia, espécie de auto-retrato em que o autor se desnuda de forma despudorada, indo ao ponto de esmiuçar pormenores da sua própria higiene mais íntima. Daí, passara para a poesia de vários poetas contemporâneos, que se debruçam sobre a sua própria pessoa e parecem, como Mário Cláudio, não ter olhos senão para a forma como "ensaboam as orelhas e os sovacos" ou "as nádegas e respectivas adjacências ocultas". Concordante com o meu amigo, recordei-lhe um artigo em que Álvaro Cunhal profliga aqueles que entendem pôr "a arte acima de tudo", falando "de si e dos seus mesquinhos problemas", pois se o artista "fala dos outros e dos seus grandes problemas é um artista que sacrifica a arte a intenções sociais". (Obras Escolhidas, II, p. 251). No mesmo artigo, AC lembra que "o homem que cria a obra de arte e aquele que a aprecia são homens vivendo os problemas da sua sociedade, ligados a ela por todas as fibras do seu ser." (p. 246) e sublinha que, "queiram ou não queiram os artistas, tenham ou não disso a consciência, toda a arte, todas as obras de arte, estão impregnadas de significações sociais" (p. 247). Depois, exemplifica: "Quando, no seu poema, Sá-Carneiro deixava cair um braço e o punha a valsar nos salões do vice-rei; quando na pintura se topam monstruosas distorções ou partes separadas do corpo humano como 'marcas alusivas e poéticas'; quando toda uma corrente da pintura e da escultura manifesta uma verdadeira fobia pela personalidade completa do homem (ao mesmo tempo que um respeito relativamente objectivo perlas coisas inanimadas, pelas mercadorias...) – não se está perante um trabalho criador dos artistas independente do mundo social onde vivem, não se está perante o produto da mera investigação de valores estéticos; está-se perante um reflexo da distorção, deformação e mutilação da personalidade levada a cabo pela divisão do trabalho na economia contemporânea." (p. 250)

 

O debate foi interessante, enriquecedor e motivador. Independentemente de divergências mais ou menos profundas que se possa ter com os seus protagonistas, é incontroverso que Manuel Alegre e Carlos Brito foram denodados combatentes antifascistas e é desejável que o seu exemplo seja seguido pelas novas gerações de artistas. A conversa havida com o meu amigo poeta e as citações de Álvaro Cunhal reavivaram, por seu turno, a minha permanente incomodidade com as escritas que, estando forçosamente "impregnadas de significações sociais", parecem nada "pretender dizer além dos seus valores estéticos intrínsecos" (p. 245, op.cit.), caindo num hermetismo que, mesmo sem obliterar as tais "significações sociais", as condena a um papel modesto no plano da cidadania. Ou não será verdade que apenas uma reduzida elite está em condições de aceder aos seus (hipotéticos) significados?

 

 

Caro Professor Marcelo,

Do seu discurso de apresentação como candidato à Presidência da República apenas ouvi, agora mesmo, uma curta passagem em que o Professor me pareceu justificar a sua candidatura como imperativo moral. Trata-se de pagar a Portugal o que o país lhe deu, e pagar aos portugueses, que tanto têm penado e que esperam por mais justiça e menos desigualdades. Em relação à sua dívida a Portugal, caro Professor, pela ínfima parte que me toca, não só aceito renegociá-la como desde já lha perdoo.

Quanto às injustiças e às desigualdades, lamento ver-me obrigado a uma atitude menos magnânima e a recordar-lhe que o Professor é e sempre foi militante e/ou dirigente de um partido que, nos últimos quatro anos (para nos ficarmos por esses) fez crescer exponencialmente a pobreza, as desigualdades e a injustiça social. Anunciando o Professor, agora, como objectivos da sua candidatura, "o combate à pobreza, a luta contra a desigualdade e a afirmação da justiça social", só posso ver nestas suas declarações uma notável e deplorável manifestação de hipocrisia política.

Sabemos ambos que aqueles eleitores que interpretaram as malfeitorias do seu partido e do respectivo cúmplice democrático e social como justo e merecido correctivo dado ao povo interpretarão a sua seráfica hipocrisia como virtude digna de louvor. Não obstante, confiante na sinceridade da sua crença em Deus e nas penas infernais que esperam os perjuros, endereço-lhe daqui, da minha irritada pequenez, um convite a que, ao menos, tenha remorsos. Aqueles que diz que teria "se não se apresentasse".

E aceite os protestos da minha indignação.

Os jarretas do PCP e a difícil arte da coerência

Há uns anos, quando as votações no PCP indiciavam uma morte quotidianamente anunciada por todos os comentadores da lusa praça, o Professor Marcelo, nosso probabilíssimo próximo PR, dizia assim num dos canais de TV: "ou o PCP se moderniza, como fizeram outros partidos comunistas – o italiano, o francês,... – ou morre". Todos sabemos qual foi a sorte dos PCs que se "modernizaram": desapareceram ou tornaram-se irrelevantes. O que faz todo o sentido. Como faz sentido que o Prof. Marcelo e tantos outros os queiram ver "modernizados". "Modernizar", na acepção de toda esta gente bem intencionada significa acatar a inevitabilidade da economia de mercado, a inevitabilidade das políticas neoliberais, a inevitabilidade das desigualdades, a inevitabilidade da corrupção, ou seja, a abjuração e consequente conversão à doutrina da renúncia, e isto porque a natureza humana é o que é e não há volta a dar-lhe. Temos a desigualdade, a fraqueza e o egoísmo inscritos nos genes para todo o sempre – assim foi decretado pela santa madre Igreja, por Fukuyama e pelos senhores deste mundo.

 

É verdade que a política é a arte dos consensos, e consenso implica cedência. Mas entendamo-nos: se a cedência necessária para se chegar ao consenso é de tal envergadura que o cedente abdica daquilo que o distingue do parceiro de negociação, então não temos cedência, mas sim, genuinamente, desistência e traição. Foi esse o destino dos partidos comunistas que se "modernizaram", seria esse o destino (tão desejado) do PCP. Sim, porque um PCP tão "moderno" e cooperante com agentes políticos que promovem a privatização de sectores estratégicos da economia, que amputam as pensões aos trabalhadores reformados, que inventam propinas e portagens, que aprovam códigos laborais lesivos dos interesses legítimos de quem trabalha, que se aliam ao imperialismo euro-americano na agressão militar a países soberanos e que aceitam o pagamento ad aeternum de uma factura infame imposta ao povo pelos representantes da finança internacional seria uma cópia a papel químico do partido que, mantendo o qualificativo de socialista na sua designação, tem uma prática, no fundamental, idêntica à dos partidos de direita. Ora, sendo assim, que interesse teriam os eleitores em votar na cópia, se o original já está tão treinado no desempenho dessas políticas?

 

Altamente improvável, portanto, que os jarretas do PCP abdiquem das suas ideias anacrónicas e nada apelativas. Um mundo justo e fraterno, sem exploradores nem explorados, pautado pela repartição justa das riquezas, pelo respeito do outro e do ambiente, orientado para a cultura integral do indivíduo; um mundo em que as diferenças de género selem uma efectiva igualdade entre homens e mulheres; um mundo em que as fronteiras tendam a desaparecer, à medida que a soberania de uns deixe de ser obstáculo à soberania dos demais, um mundo assim seria, quem duvida?, um mundo infinitamente menos moderno e menos aliciante do que este nosso mundo do empreendedorismo pró-activo, da concorrência estimulante, da competição excitante, da meritocracia dos vencedores, do quadro de honra talhado à medida dos valorosos alfa. Aliás, a própria terminologia de "exploradores e explorados", de "repartição justa das riquezas", e por aí adiante, dá calafrios, de tão obsoleta. Neste nosso admirável país novo de cofres cheios e crescimento económico anémico, mas cada vez com melhores cores, o que há é empresários denodados e colaboradores atentos e venerandos que resistiram estoicamente à crise e aprenderam a não viver acima das suas possibilidades.

 

Estamos, pois, chegados a uma encruzilhada, que não é de Deus, na ocorrência. Os resultados eleitorais e a idiossincrasia política do Presidente da República deixam supor que teremos proximamente um governo PSD/CDS a necessitar do apoio parlamentar ou, pelo menos, da condescendência do PS. No discurso da noite das eleições, já António Costa iniciou a manobra de acostagem: nada de maiorias negativas com a malandragem que insiste em discutir os direitos dos credores. Ontem e hoje, as declarações vindas a lume parecem apontar no mesmo sentido, o sentido do prosseguimento da mesma política, agora miudamente aligeirada, graças ao garrote aplicado nos últimos anos. Veremos nos próximos dias ou semanas se as tonitruantes condenações da política da direita não irão desembocar em abstenções, que, de violentas, apenas terão os efeitos devastadores nas condições de vida e na confiança dos cidadãos. Aconteça o que acontecer, uma sondagem à minha consciência indica-me que o Partido Socialista ganhará as eleições em 2019. Margem de erro: 50%.

Passos Coelho e o amuleto

            Há mais de quarenta anos que não uso gravata. Durante todo esse tempo, aconteceu-me, uma ou outra vez, quando ia tirar fotografias tipo passe para o B.I., por exemplo, levar uma gravata no bolso, que atava ao pescoço diante do fotógrafo. Um homem com gravata é outra coisa; fica logo uns 23% mais convincente, que a gravata é um precioso valor acrescentado.

            Lembrei-me disto a propósito de Passos Coelho que, segundo consta, deambula agora, eleitoralmente, de crucifixo na algibeira. Como eu, com a gravata, parece que só de lá o tira em circunstâncias especiais, quais sejam posar para a câmara de televisão. Se fica mais ou menos convincente do que um homem sem gravata, não sei, mas é pena que não leve o fervor religioso um pouco mais longe, dispondo-se a fazer-se crucificar, como é costume nas Filipinas, assim expiando os seus pecados. Haviam de ver-me, então, fazer de Pilatos: daí lavava as minhas mãos, sem deixar, obviamente, de amnistiar Barrabás.

            Por muito que me condoa com o sofrimento alheio, não me é dado comungar com cristãos que, em matéria de milagres, não logram mais do que a multiplicação da pobreza ou a transformação do vinho em água, e cujo reino (deste mundo) assenta na infelicidade do próximo. Apesar disso, na ocorrência (refiro-me à crucificação), não lhe faltaria com o sudário nem lhe negaria uma sede de água (aquela mesma que ele quer privatizar). Infelizmente, receio que os cortes no orçamento da Saúde inviabilizassem as manobras de ressuscitação, por falta de desfibrilhadores.

            Amém.

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