A importância do petróleo na economia mundial é tanta que se resiste a aventar a simples hipótese do seu fim repentino. É com um calafrio que se imagina a falência global das sociedades organizadas e o mergulho da civilização numa noite negra pejada de cadáveres de milhões e milhões de infelizes impedidos de aceder a bens de primeira necessidade ou vítimas de hordas humanas caídas na animalidade pura e em luta desenfreada pela sobrevivência.
Não só o seu fim, todavia, é motivo de preocupação e angústia. Basta recear a interrupção temporária de fornecimentos ou a possibilidade de garantir o fluxo contínuo do seu abastecimento. A economia mundial tem inscrito o crescimento ininterrupto, no seu código genético, e esse crescimento é factor de diversificações permanentes, elas próprias determinantes de necessidades acrescidas e potenciadoras de renovado crescimento.
A premência destes factos explica muito do que hoje se passa no mundo, sendo que a perplexidade causada pelo fenómeno do terrorismo é geradora de interpretações geralmente pautadas por um senso comum imediatista e simplificador promovido por uma comunicação social sempre pronta a alardear uma isenção que não resiste ao crivo de uma análise séria.
Compreende-se o mecanismo que conduz fatalmente da premissa que é a incontornável necessidade da fonte de energia ao corolário que é a inevitabilidade da guerra. Os interesses dos detentores do recurso natural ou não coincidem com os daqueles que carecem desse recurso ou estes últimos pretendem colmatar a sua carência em condições excessivamente penalizadoras para os primeiros. Tais contradições só são resolúveis numa síntese superior incompatível com a natureza do sistema em que vivemos.
É, pois, natural que a imperiosa necessidade de garantir o acesso ao petróleo e o correlativo escoamento para as economias desenvolvidas leve a intervenções militares comummente apresentadas e justificadas como acções em prol dos direitos humanos e da democracia. Se, depois, estas guerras boas desembocam no caos, num infindável cortejo de refugiados e na proliferação do terrorismo, os responsáveis políticos e a comunicação social ao seu serviço encarregar-se-ão de explicar as causas de tais ocorrências como consequência de leituras fundamentalistas do Corão, do exacerbamento de conflitos étnico-religiosos e de fanatismos vários.
Numa visão optimista e decerto idealista, a partilha de recursos naturais como o petróleo poderia e deveria ser feita com base no interesse comum da humanidade e com benefícios iguais para todas as partes. O diálogo privilegiado com cleptocracias de visão egoísta, logo estreita, permite a estas auferir dividendos faustosos, condenando grandes massas humanas à indigência e assegurando aos seus interlocutores fornecimentos abundantes a preços convenientes.
Nada de mais natural, ainda, do que o clima de entente cordiale que as potências ocidentais mantêm com o regime saudita e as relações tensas que as mesmas mantêm, por exemplo, com a Venezuela. Afira-se a natureza de um e de outro regime, nomeadamente através desse indicador infalível que é o da repartição das riquezas, e ter-se-á uma ideia clara do que realmente move a política internacional.
As dificuldades criadas à exportação ou à livre circulação do petróleo por este ou aquele Estado soberano considerado demasiado cioso dessa soberania determina a implementação de medidas correctivas. Se, momentaneamente, não estão criadas condições suficientes para a intervenção militar directa, procede-se sub-repticiamente, pela calada da acção subversiva, financiando e industriando as oposições democráticas. Os actos provocatórios habilmente congeminados e não necessariamente ostensivos condicionam fortemente a opinião pública; a comunicação social, por seu turno, diligencia adequadas doses de propaganda.
Duas conclusões parecem resultar das modestas teses que precedem:
O sistema em que vivemos vai continuar a gerar a guerra e o terrorismo, flagelos de que só a sua substituição nos livrará;
A finitude dos recursos naturais exige que se comece a pensar em termos de decrescimento – planeado e sustentado, obviamente.
N.B. - O autor omitiu aspas que a perspicácia do leitor não deixará de vislumbrar aqui e ali.
Quando os grandes media se esforçam por separar causas e efeitos na escalada do terrorismo jihadista, é necessário recordar mais uma vez o papel determinante das agressões imperialistas nesse processo, em diferentes locais do mundo e em diferentes condições históricas e culturais. A destruição física e nacional e os genocídios que desencadeiam geram as condições para que a barbárie surja como resposta à barbárie. E, como é sabido, o imperialismo e seus aliados não só a geram como a alimentam.
Em 1969, ao transmitir ordens do presidente Richard Nixon para um bombardeamento “maciço” do Camboja, Henry Kissinger, disse: “Qualquer coisa que voe sobre tudo o que se mova”. Quando Barack Obama trava a sua sétima guerra contra o mundo muçulmano desde que recebeu o Prémio Nobel da Paz e François Hollande promete um ataque “impiedoso” sobre os escombros da Síria, a histeria e as mentiras orquestradas fazem-nos quase nostálgicos da honestidade assassina de Kissinger.
Como testemunha das consequências humanas da selvajaria aérea – incluindo a decapitação de vítimas, com suas partes a engrinaldarem árvores e campos – não fico surpreso pela reiteração do desprezo para com a memória e a história. Um exemplo impressionante foi a subida ao poder de Pol Pot e do seu Khmer Rouge, o qual tinha muito em comum com o actual Islamic State in Iraq and Syria (ISIS). Também eles foram implacáveis medievalistas que principiaram como uma pequena seita. Também eles foram o produto de um apocalipse de fabricação americana, desta vez na Ásia.
Segundo Pol Pot, seu movimento consistia em “menos de 5000 guerrilheiros fracamente armados inconstantes quanto à sua estratégia, tácticas, lealdade e líderes”. Uma vez lançados os bombardeiros B-52 de Nixon e Kissinger, no âmbito da “Operação Menu”, o supremo demónio do ocidente mal podia acreditar na sua sorte. Os americanos despejaram o equivalente a cinco Hiroshimas no Camboja rural durante os anos 1969-73. Eles arrasaram aldeia após aldeia, retornando para bombardear os escombros e os cadáveres. As crateras deixaram gigantescos colares de carnificina, ainda visíveis do ar. O terror foi inimaginável. Um antigo oficial do Khmer Rouge descreveu como os sobreviventes “perambulavam em torno, mudos, durante três ou quatro dias. Aterrorizadas e meio enlouquecidas, as pessoas estavam prontas a acreditar no que lhes diziam… Foi o que tornou fácil para o Khmer Rouge convencer o povo”. Uma Comissão de Inquérito do Governo Finlandês estimou que 600 mil cambojanos morreram em consequência da guerra civil e descreveu os bombardeamentos como a “primeira etapa numa década de genocídio”. O que Nixon e Kissinger começaram, Pol Pot, seu beneficiário, completou. Sob as suas bombas, o Khmer Rouge cresceu até se tornar um formidável exército de 200 mil homens.
O ISIS tem um passado e presente semelhante. De acordo com a maior parte das avaliações académicas, a invasão de Bush e Blair do Iraque levou à morte pelo menos 700 mil pessoas – num país que não tinha antecedente de jihadismo. Os curdos haviam feito acordos territoriais e políticos; os sunitas e xiitas tinham diferenças de classe e sectárias, mas estavam em paz; casamentos mistos eram comuns. Três anos antes da invasão, viajei de carro extensamente pelo Iraque sem medo. No caminho encontrei pessoas orgulhosas, acima de tudo, de serem iraquianas, herdeiras de uma civilização que para eles parecia presente.
Bush e Blair explodiram tudo isto em bocados. O Iraque é agora um ninho de jihadismo. A Al-Qaeda – como os “jihadistas” de Pol Pot – aproveitaram a oportunidade proporcionada pela carnificina do “Pavor e Choque” (”Shock and Awe”) e da guerra civil que se seguiu. A Síria “rebelde” oferecia ainda maiores prémios, com as linhas de abastecimento de armas, de logística e de dinheiro da CIA e dos estados do Golfo a passarem pela Turquia. A chegada de recrutas estrangeiros era inevitável. Um antigo embaixador britânico, Oliver Miles, escreveu: “O governo [Cameron] parece estar a seguir o exemplo de Tony Blair, o qual ignorou conselhos constantes do Foreign Office, MI5 e MI6 de que a nossa política no Médio Oriente – e em particular nossas guerras no Médio Oriente – haviam sido um impulsionador importante no recrutamento de muçulmanos na Grã-Bretanha para o terrorismo aqui”.
O ISIS é a resultante daqueles em Washington, Londres e Paris que, ao conspirarem para destruir o Iraque, a Síria e a Líbia, cometeram um crime gigantesco contra a humanidade. Tal como Pol Pot e o Khmer Rouge, os ISIS são as mutações do terrorismo de estado ocidental administrado por uma elite imperial corrupta que não recua diante das consequências das suas acções. Sua culpabilidade não é sequer mencionada nas “nossas” sociedades, tornando-as cúmplices daqueles que suprimem esta verdade crítica.
Passaram-se 23 anos desde que um holocausto envolveu o Iraque, imediatamente após a primeira Guerra do Golfo, quando os EUA e a Grã-Bretanha sequestraram o Conselho de Segurança das Nações Unidas e impuseram “sanções” à população iraquiana – reforçando, ironicamente, a autoridade interna de Saddam Hussein. Foi como um cerco medieval. Quase tudo o que sustinha um estado moderno estava, no jargão, “bloqueado” – desde o cloro para tornar seguro o abastecimento de água até lápis escolares, peças para máquinas de raios X, analgésicos comuns e drogas para combater cancros anteriormente desconhecidos – decorrentes do pó dos campos de batalha do sul contaminados com urânio empobrecido (Depleted Uranium). Pouco antes do Natal de 1999, o Departamento do Comércio e Industria em Londres restringiu a exportação de vacinas destinadas a proteger crianças iraquianas contra a difteria e febre-amarela. Kim Howells, subsecretário de Estado parlamentar no governo Blair, explicou a razão: “As vacinas infantis”, disse ele, “poderiam ser utilizadas em armas de destruição em massa”. O governo britânico pôde escapar impune a tamanho ultraje porque as reportagens dos media sobre o Iraque – grande parte delas manipuladas pelo Foreign Office – culpavam Saddam Hussein por tudo.
Sob um falsamente humanitário Programa Petróleo por Alimentos, foram atribuídos US$100 a cada iraquiano para viver durante um ano. Este número tinha de ser suficiente para pagar toda a infra-estrutura da sociedade civil e serviços essenciais, tais como energia e água. “Imagine”, contou-me o secretário-geral Assistente da ONU, Hans Von Sponeck, “estabelecer aquela ninharia contra a falta de água potável e o facto de que a maioria das pessoas doentes não tem recursos para tratamento e o trauma absoluto de sobreviver dia a dia, eis um vislumbre do pesadelo. E não se engane, isto é deliberado. No passado não quis utilizar a palavra genocídio, mas agora é inevitável”. Desgostoso, Von Sponeck demitiu-se da Coordenação Humanitária da ONU no Iraque. O seu antecessor, Denis Halliday, um igualmente qualificado alto responsável da ONU, também se demitiu. “Fui instruído”, disse Halliday, “a implementar uma política que satisfaz a definição de genocídio: uma política deliberada que efectivamente a definição de genocídio: uma política deliberada que matou de facto bem mais de um milhão de indivíduos, crianças e adultos”.
Um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância, Unicef, descobriu que entre 1991 e 1998, na altura do bloqueio, houve mais de 500 mil mortes de crianças iraquianas com menos de cinco anos de idade. Um repórter da American TV perguntou a Madeleine Albright, embaixadora dos EUA nas Nações Unidas: “Será que valeu a pena pagar este preço”. Resposta de Albright: “Nós pensamos que valeu a pena”.
Em 2007, o alto responsável oficial britânico pelas sanções, Carne Ross, conhecido como “Mr. Iraq”, disse a um comité parlamentar de selecção: “[Os governos dos EUA e Grã-Bretanha] efectivamente negaram meios de vida a toda a população”. Quando entrevistei Carne Ross três anos depois ele estava consumido pelo arrependimento e a contrição. “Sinto-me envergonhado”, disse ele. Hoje é um dos raros que dizem a verdade sobre como governos enganam e como os media aquiescentes desempenham um papel crítico na disseminação e manutenção do engano. “Nós alimentávamos [jornalistas] com factóides de inteligência desinfectada”, disse ele, “ou os congelávamos do lado de fora”. No ano passado, uma manchete não atípica no Guardian dizia: “Confrontados com o horror do ISIS, devemos actuar”. O “devemos actuar” é um fantasma que se eleva, uma advertência da supressão da memória informada, dos factos, das lições aprendidas e dos arrependimentos ou vergonhas. O autor do artigo foi Peter Hain, o antigo ministro do Foreign Office responsável pelo Iraque no governo Blair. Em 1968, quando Denis Halliday revelou a extensão do sofrimento no Iraque pelo qual o governo Blair partilhava a responsabilidade primária, Hain maltratou-o no [programa] Newsnight da BBC como sendo um “apologista de Saddam”. Em 2003, Hain apoiou a invasão de Blair do Iraque já massacrado com base em mentiras transparentes. Numa conferência posterior do Partido Trabalhista, ele considerou a invasão como uma “questão marginal”.
Agora Hain estava a pedir “ataques aéreos, drones, equipamento militar e outros apoios” àqueles que “enfrentavam o genocídio” no Iraque e na Síria. Isto era, mais uma vez “o imperativo de uma solução política”. No dia em que o artigo de Hain foi publicado, Denis Halliday e Hans Von Sponeck por acaso estavam em Londres e foram visitar-me. Eles não estavam chocados pela hipocrisia mortal de um político, mas lamentavam a quase inexplicável ausência de diplomacia inteligente na negociação de uma aparência de trégua. Por todo o mundo, da Irlanda do Norte ao Nepal, aqueles que encaravam o outro como terroristas e heréticos confrontaram-se um ao outro numa mesa. Por que não agora no Iraque e na Síria? Ao invés disso, há um insípido, quase sociopático, palavreado de Cameron, Hollande, Obama e sua “coligação das vontades” quando prescrevem mais violência despejada a partir de 9 km de altura sobre lugares onde o sangue de aventuras anteriores nunca secou. Eles parecem saborear tanto a sua própria violência e estupidez quanto querem derrubar o seu único aliado potencial válido, o governo da Síria.
Isto não é nada de novo, como ilustra o seguinte dossiê escapado da inteligência do Reino Unido-EUA:
“A fim de facilitar a acção das forças liberativas (sic)… deveria ser feito um esforço especial para eliminar certos indivíduos chave [e] prosseguir com perturbações internas na Síria. A CIA está preparada e o SIS (MI6) tentará montar incidentes de sabotagens menores e um coup de main (sic) dentro da Síria, trabalhando através de contactos com indivíduos… um grau necessário de medo… fronteira e choques de fronteira (encenados) proporcionarão um pretexto para intervenção… a CIA e o SIS deveriam utilizar… capacidades tanto no campo psicológico como da acção a fim de aumentar a tensão”.
O texto acima é de 1957, embora pudesse ter sido escrito ontem. No mundo imperial, nada muda no essencial. Em 2013, o antigo ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Roland Dumas, revelou que “dois anos antes da primavera árabe”, disseram-lhe em Londres que uma guerra à Síria estava a ser planeada. “Vou contar-lhe algo”, disse ele numa entrevista ao canal LPC da televisão francesa, “dois anos antes da violência na Síria fui à Inglaterra por outras razões. Encontrei altos responsáveis britânicos, os quais me confessaram estarem a preparar algo na Síria… A Grã-Bretanha estava a preparar uma invasão de rebeldes para dentro da Síria. Eles perguntaram-me mesmo, embora eu já não fosse ministro dos Negócios Estrangeiros, se gostaria de participar… Esta operação tem antecedentes. Ela foi preparada, concebida antecipadamente e planeada”.
Os únicos oponentes eficazes do ISIS são demónios reconhecidos do ocidente – a Síria, Irão, Hezbollah e agora a Rússia. O obstáculo é a Turquia, um “aliado” e membro da NATO, a qual tem conspirado com a CIA, MI6 e os feudais do Golfo para canalizar apoio para os “rebeldes” sírios, incluindo aqueles que agora se autodenominam ISIS. Apoiar a Turquia na sua ambição antiga de dominação regional pelo derrube do governo Assad acena a uma grande guerra convencional e ao horroroso desmembramento do estado com maior diversidade étnica do Médio Oriente.
Uma trégua – ainda que difícil de negociar e alcançar – é a única saída deste labirinto. Do contrário, as atrocidades em Paris e Beirute serão repetidas. Juntamente com uma trégua, os principais perpetradores e supervisores da violência no Médio Oriente – os americanos e europeus – devem eles próprios “desradicalizar-se” e demonstrar boa-fé a comunidades alienadas de muçulmanos por todo o mundo, incluindo aquelas domésticas. Deveria haver uma cessação imediata de todos os embarques de materiais de guerra para Israel e reconhecimento do Estado da Palestina. A questão da Palestina é a ferida aberta mais supurante da região e a justificação frequentemente declarada para a ascensão do extremismo islâmico. Osama bin Laden deixou isso claro. A Palestina também representa esperança. Faça-se justiça aos palestinos e começar-se-á a mudar o mundo em torno deles.
Mais de 40 anos atrás, o bombardeamento do Camboja por Nixon-Kissinger desencadeou uma torrente de sofrimento do qual aquele país nunca se recuperou. O mesmo é verdadeiro em relação ao crime de Blair-Bush no Iraque e aos crimes da NATO e da “coligação” na Líbia e na Síria. Com sentido de oportunidade impecável, o mais recente livro de auto-louvação de Henry Kissinger foi divulgado com o seu título satírico, ”World Order”. Numa revista bajulatória, Kissinger é descrito como um “artífice chave de uma ordem mundial que permaneceu estável durante um quarto de século”. Digam isso aos povos do Camboja, Vietname, Laos, Chile, Timor-Leste e todas as outras vítimas deste “estadista”. Só quando “nós” reconhecermos os criminosos de guerra em nosso meio e deixarmos de negar a verdade para nós próprios o sangue começará a secar.
16/Novembro/2015
O original encontra-se em johnpilger.com/articles/from-pol-pot-to-isis-the-blood-never-dried
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ e em http://www.odiario.info/?p=3844
Invariavelmente, a ocorrência de tragédias como a da semana passada em Paris desencadeia um movimento solidário generalizado com inevitáveis repercussões na comunicação social. Se as marcas de pesar, as afirmações da condolência e da compaixão e as garantias de comunhão solidária manifestadas aos familiares das vítimas ou àqueles que de alguma maneira lhes estão ligados, seja por laços afectivos seja por laços de nacionalidade, por exemplo, são perfeitamente naturais na comunidade, já o tratamento, nos mass media, da tragédia e da condolência manifestada por responsáveis políticos e religiosos peca, muitas vezes, por imperícia ou por excesso de zelo. No primeiro caso, incluiria aquelas peças em que o repórter, pungido, pergunta ao familiar, às vezes muito próximo, como se sente com a perda sofrida; no segundo, estão as notícias de que o Presidente da República se diz profundamente comovido, o Primeiro-ministro britânico, chocado e o Papa horrorizado com o atentado horrível, ignóbil, desumano, atroz que acaba de vitimar tantas vidas indefesas e inocentes e que já enviaram a respectiva mensagem a A, B ou C. Chegado aqui, lembro-me sempre daquela norma jornalística: "notícia não é o cão que morde o homem, mas sim o homem que morde o cão". De facto, seria possível o PR, o PM britânico ou o Papa não se sentirem destroçados com o que se passou? Seria possível algum de nós não se sentir profundamente magoado com o sofrimento do semelhante?
O discurso condolente – que preenche nas relações interpessoais da comunidade, uma função performativa, isto é, que faz aquilo que diz, que, neste caso, ao enunciar a solidariedade do locutor, efectiva a solidariedade no próprio acto da elocução, independentemente de posteriores desenvolvimentos que dêem a essa solidariedade outra consistência – surge, assim, na sua mediatização, como um discurso postiço, oco, inoperante, e só não desencadeia a gargalhada porque a seriedade do momento desaconselha manifestações susceptíveis de interpretação menos benévola.
Perguntar-me-ão: qual a alternativa? Só vejo uma: a contenção. Que os jornalistas e repórteres se deixem de floreados e se abstenham de comentar, ou tão-só de noticiar o óbvio.
Também me abstenho, aqui, de comentar as diferenças de tratamento das tragédias ocorridas na Europa e nos EUA, relativamente a tragédias de igual ou muitíssimo maior dimensão ocorridas em África, no Médio Oriente, ou em qualquer outro lugar habitado por seres humanos que não conhecem os nossos padrões civilizacionais, a nossa peculiar "way of life". É bem sabido que a proximidade é factor preponderante na percepção. Mas é desejável que nos interroguemos sobre as causas das tragédias evitáveis.
(Publicado no n.º de Dezembro do Jornal do Baixo Guadiana)
"A fúria da natureza não foi nossa amiga. Deus nem sempre é amigo, também acha que de vez em quando nos dá uns períodos de provação. (...) Em Albufeira a força da natureza na fúria demoníaca, embora os ingleses digam que é um ato de Deus, um act of God, nós temos que traduzir de outra maneira”. Calvão da Silva
Conde de Gouvarinho: "Creia o digno par que nunca este país retomará o seu lugar à testa da civilização, se, nos liceus, nos colégios, nos estabelecimentos de instrução, nós outros os legisladores formos, com mão ímpia, substituir a cruz pelo trapézio." Eça de Queirós, Os Maias
Sua Excelência o novel titular da Administração Interna irrompeu-nos ontem pelas pantalhas televisivas adentro com tal convicção e fúria demoníaca que mais parecia ministro para levar a sério do que roberto momentaneamente retirado dum baú de títeres para gáudio de infantes na feira anual da aldeia. Em escassos minutos de parlapié parolo para tolos, indigentes mentais e afins, sacudiu-nos a consciência incrédula com subliminares admoestações para que nos curvemos perante os desígnios da divina providência, ainda quando Deus não é amigo e nos dá períodos de provação, o que pode conduzir-nos à blasfema nexexidade de traduzir de outra maneira as suas divinas (e devastadoras) tropelias.
Uma pessoa assiste a estes espectáculos edificantes e, voltando-se para os seus botões, interroga-se angustiadamente sobre a época em que vive. Será que, sem disso se aperceber, alguma indisposta máquina do tempo a depositou num remoto mosteiro medievo ou num ibérico Tribunal do Santo Ofício? Ocorre-nos, porém, depois, que Sua Excelência é diplomada pela Universidade de Coimbra e seu excelso professor catedrático. No mesmo instante se nos depara, re-porém, a lembrança dos bacharéis de lá saídos e que os nossos Camilo e Eça derribaram com fúria não demoníaca, mas iconoclástica. E esta lembrança arrasta outra – a de personagens inesquecíveis que eles nos legaram. Este ministro cadente vai cair, como um anjo, isto é, como Calisto Elói, ou como o corneado conde de Gouvarinho – coberto de ridículo.
E nem a idoneidade de Ricardo Salgado lhe acudirá.