Espírito natalício e iconoclastia
Estamos naquele momento do ano em que a comunidade impõe a cada um dos seus membros um comportamento consentâneo com o figurino que a tradição desenhou. Chama-se, geralmente, ao figurino espírito natalício. O espírito natalício caracteriza-se pela ocorrência de um conjunto de fenómenos concomitantes: passagem de música alusiva nas rádios, reportagens nas televisões, pletora de enfeites nas montras das lojas e nos supermercados, abundância de brinquedos e de doçaria à venda, muita luz nocturna, muita cintilação, muito brilho. A estes fenómenos, a que chamarei “ambientais” (eles criam um ecossistema alternativo, uma espécie de quadro natural de segundo plano em que a própria vida se despega das suas amarras terrestres para se “espiritualizar”), há que acrescentar um segundo conjunto: as emoções e os sentimentos que os membros da comunidade experimentam como reacção ao primeiro. Trata-se de uma generalizada ânsia de exteriorizar o amor pelo próximo, a começar pelos que o são mais naturalmente, aqueles a quem se está ligado por laços de sangue, mas também aos amigos e até a simples conhecidos que, em circunstâncias diferentes, não mereceriam qualquer marca de deferência. O cidadão imerso no espírito natalício sente-se impreterivelmente impelido a ser atento e venerando, e mal reprime a vontade quase indómita de depor um ósculo na face de cada transeunte. Com os mais próximos, a manifestação dos melhores sentimentos passa necessariamente pela oferta. Oferecem-se roupas, electrodomésticos, chocolates, telemóveis, viagens, massagens e tratamentos diversos, discos, livros, eventualmente a conversão a um credo, enfim, todos os bens transaccionáveis que a civilização aprendeu a produzir no decurso dos séculos. E pobre daquele que, avesso à dimensão mercantil do espírito natalício, se arroga o direito de não pactuar com a marosca: leva do embate os epítetos de antipático, associal e somítico. Como bónus, tem ainda direito ao sentimento de culpa. Porém, logo que as luzes se apagam e o jingle bells se esvai, o espírito natalício murcha e fenece. Desvanecido o encanto, o cidadão anónimo voltou a ser o potencial inimigo com quem mais vale usar de cautela. O que não significa que o espírito natalício não tenha produzido, para além de um volume acrescido de negócios, o reforço dos laços de pertença à comunidade: durante este curto lapso de tempo, todos se sentiram passageiros de uma mesma embarcação e co-responsáveis por ela.
Há, obviamente, a par do profano, muito de religioso no comportamento de quantos compartilham do espírito natalício, e não necessariamente por ser o Natal uma festividade cristã. Se alargarmos o âmbito semântico de “espírito natalício” a qualquer outra situação em que os membros de determinada comunidade comunguem de semelhante ânsia de exteriorização, teremos de concluir que, em todas essas situações, o que os leva a isso é o sentimento de que estão ligados, ou religados, entre si. O sentimento da ligação, ou comunhão, é o que caracteriza a religiosidade, entendida não apenas como ligação ao sobrenatural, na versão mais corrente, mas igualmente na dimensão humana e no plano da horizontalidade – do homem para o homem.
Nestas circunstâncias, por muito que o iconoclasta se debata com seus pruridos de coerência, raramente escapa à tentação de exprimir votos de circunstância. Com alguma sorte, poderá protelar o seu enunciado até às proximidades da passagem do ano, ocasião em que as referências natalícias se desvanecem, sendo, então, possível expressar aos amigos votos de um bom ano novo.
É o que faço, desde já.