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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

ETNOCENTRISMOS

"Quando um clérigo iraniano, senil, animalizado pelo fanatismo, decretou a pena de morte a certo autor inglês, por uma questão literária de contornos religiosos, criou um CASUS BELLI, uma ocasião de guerra. A resposta deveria ter sido, de imediato, um ULTIMATUM. Sendo necessário, com consequências enérgicas. Lamento – mesmo – ter de ser eu a dizer isto.

Mas não foi assim que se considerou. Entendeu-se que era uma questão menor. Metia apenas um escritor. Contemporizou-se. Havia negócios em curso e em perspectiva. Para a mentalidade mafiosa que predomina na EU os negócios contam. Os princípios são fantasias de intelectuais. A ocultação (a censura) de obras de arte por ocasião da visita de outro clérigo da mesma seita é uma cedência vergonhosa. Atinge-nos e diminui-nos a todos. Obscenidade, no sentido mais literal da palavra.

Mário de Carvalho, Mdc, no facebook, 28/01/2016"

 

Surpreende-me ler o autor do excelente A liberdade de pátio propugnar o uso da força militar como meio (seguramente expedito, menos claramente eficaz) para combater os inimigos da liberdade de expressão do pensamento e de criação artística. Não que eu os defenda. E digo-o com a clara consciência de que nada do que aqui direi levará os estrénuos defensores da liberdade de pensamento a deixar de pensar que não passo de mais um desses biltres de uma certa esquerda que, de tão obcecada pelo papão do imperialismo ou pelas virtudes do multiculturalismo, está sempre disposta a desculpar as malfeitorias dos pobres e humilhados muçulmanos, tornando-se, assim, sua cúmplice. Dou-me por excomungado ab initio, sem apelo nem agravo.

 

Dito isto, porque me surpreende a posição assumida por Mário de Carvalho, escritor que muito prezo? Surpreende-me, porque, sendo alguém superiormente culto, me parece, nesta circunstância, adoptar uma postura em tudo igual à do cidadão menos culto, o cidadão que, perante uma manifestação de intolerância de uma cultura diferente, raciocina segundo os termos da sua própria cultura, incapaz de equacionar as premissas culturais em que o estranho, o outro, o diferente se movimenta. Chama-se a isto etnocentrismo, como Mdc sabe melhor do que eu, e "o etnocentrismo é uma doença cultural que ataca a faculdade de discernimento e o comportamento em face de outras culturas diferentes da própria e leva, necessariamente, ao preconceito cultural e social", na definição de Bernardo Bernardi, conhecido antropólogo, que acrescenta: "A cultura de pertença surge de facto ligada a termos de comparação mais ou menos censuráveis e em medida discriminatória; é rude, bárbaro, incivil, aquilo que é praticado pelos outros; é sempre bom aquilo que cada um pratica de acordo com a educação que lhe é própria"[1]. Chegados aqui, adivinho duas perguntas: o etnocentrismo é exclusividade dos incultos? o clérigo muçulmano não é etnocêntrico?

 

À primeira, respondo que não. O homem culto (e, aparentemente, até o superiormente culto) pode ter manifestações de etnocentrismo. Vemo-lo a toda a hora na rua, na TV e no facebook. E tem essas manifestações de indignação que radicam no etnocentrismo porquê? Porque não é fácil produzir juízos de natureza ética abstraindo-nos de tudo o que constitui a nossa identidade cultural, para mais quando essa identidade é a resultante de séculos de História durante os quais as manifestações de intolerância e de crueldade que hoje verberamos nos outros foram sendo paulatinamente postergadas em razão do avanço das Luzes. Guerras de religião, perseguições, cruzadas, Inquisições, autos-de-fé, colonialismos, fascismos vários, neocolonialismos, xenofobias e racismos foram (por vezes, são ainda) o nosso doloroso quinhão cristão e ocidental. O processo histórico fez com que nos livrássemos de algumas dessas cangas mais cedo do que outros povos, sem o que talvez estivéssemos hoje a ser duramente criticados por eles e nos mesmos termos.

 

À segunda pergunta respondo, evidentemente, que sim. Mas faço uma ressalva inaceitável para muitos: se o etnocentrismo de um ocidental adulto, normal e culto se me afigura deslocado, ou não tivesse ele recebido a vacina das Luzes a que atrás me refiro, já o etnocentrismo e até a intolerância de comunidades cujo trajecto histórico divergiu do nosso me parece entendível.

 

O meu relativismo cultural não obsta ao reconhecimento da superioridade inerente a uma cultura que consagra a dignidade intrínseca do ser humano, a igualdade dos cidadãos perante a lei (se bem que as desigualdades económicas a prejudiquem seriamente) e um vasto conjunto de liberdades (embora frequentemente mais formais do que reais), tal como acontece nas nossas sociedades, nem me parece redundar numa variante de etnocentrismo. Há, efectivamente, valores propriamente indiscutíveis, inquestionáveis. Entendo, sim, que comunidades diferentes chegarão necessariamente a essa conclusão em tempos diferentes, e é contraproducente tentar acelerar o processo.

 

Se a experiência histórica nos mostrasse que um bom safanão, conforme se dizia noutros tempos, pode resolver os atropelos aos direitos a que, em 1789, o Terceiro Estado deu força de lei, eu não digo que não iria por aí. Infelizmente, os ultimatos "com consequências enérgicas" a que temos assistido, para além de se servirem de tais atropelos como pretextos para, na realidade, assegurarem a prossecução de políticas de pilhagem de riquezas naturais ou de controlo de posições geoestratégicas e promoverem os negócios dos seus autores, apenas têm agravado substancialmente a situação a que os povos vítimas dos atropelos são sujeitos, provocando renovadas e potenciadas violações de direitos que acabam por alimentar o terrorismo e gerar vagas de refugiados.

 

O recurso ao ultimato para debelar manifestações culturais que justamente repugnam à nossa sensibilidade levar-nos-ia a abrir hostilidades com os numerosos países onde se praticam, por exemplo, os castigos corporais ou o horror da mutilação genital feminina. E se adoptássemos uma perspectiva histórica proléptica, isto é (em língua de gente), se agíssemos por antecipação do porvir, talvez devêssemos proceder semelhantemente com todos aqueles, e não são poucos, que, entre nós, rejeitam horrores como, a título de exemplo, o casamento homossexual ou a adopção por casais homossexuais, porque tudo leva a crer que, dentro de alguns decénios, qualquer limitação de direitos resultante da orientação sexual será vista pelo conjunto da comunidade e não apenas pela vanguarda, como acto de cueldade.

 

A indignação de Mário de Carvalho é certamente legítima e compreensível. Porém, não queiramos ver o Irão transformado num novo Iraque, numa nova Líbia ou numa nova Síria. Já há muito, no mundo, quem nisso esteja interessado.

 

A quem discorda, digo que posso estar errado e que não desdenho ser criticado. Mas abomino o insulto.

 

E que Mário de Carvalho não me leve a mal. Apenas me lembrei de que era bom trocarmos umas ideias sobre o assunto.

 

[1] Bernardo Bernardi, Introdução aos Estudos Etno-Antropológicos, Edições 70, Lx.ª, p. 45

Do difícil equilíbrio no discurso político

Se é verdade que, em política, não há alternativa que não seja repetirmo-nos ou cairmos em contradição, também é verdade que repetir ou manter coerentemente as grandes orientações ideológicas e enunciar consistentemente um conjunto de medidas decorrentes dessas orientações não tem que ser feito segundo um figurino imutável e, sobretudo, o discurso de um candidato, por maior que seja a sua consciência da missão a cumprir, a sua preocupação do rigor e a sua recusa da demagogia, não tem que reproduzir até à exaustão fórmulas programáticas despojadas das suas próprias marcas de afectividade, como se não passasse de mero instrumento de divulgação ou mero porta-voz de um plano delineado em instância superior. A emoção, longe de ser um estorvo à manifestação da razão, é seu adjuvante, dá-lhe a eficácia a que a pura racionalidade dificilmente poderá aspirar, pelo menos no contexto de uma mensagem que visa, naturalmente, a persuasão. Tem razão António Damásio, quando diz que a emoção é "uma componente integral da maquinaria da razão"[1], como tinha razão Marcelo Rebelo de Sousa quando dizia, a propósito das medidas do anterior governo que provocaram forte contestação e a rejeição popular, que o problema estava na forma de comunicação do executivo. Por muito más que elas fossem, se devidamente "explicadas" ao povo, este acabaria por aceitá-las pacificamente[2].

 

Dizendo isto, não defendo nem MRS, nem o recurso à mentira envolta em manto diáfano de fantasia, nem a implementação de políticas lesivas dos legítimos interesses do povo enfarpeladas com palavreado bonito que as torne facilmente administráveis sem risco de convulsão. Dizendo isto, defendo apenas que a mensagem política produzida em contexto de campanha eleitoral deve, à sua componente de informação e esclarecimento – o seu princípio activo, digamos assim – associar doses convenientes de excipientes capazes de tornar a beberagem suportável e, mais do que isso, apetecível.

 

Muito embora todas as sondagens e até o mais elementar cálculo do bom senso para aí apontassem – e passo aqui todos os factores amplamente discutidos em todos os media e por toda a gente, dentre os quais avulta, evidentemente, a promoção de que Marcelo Rebelo de Sousa foi beneficiário ao longo dos anos – não deixa de ser descoroçoante o débil resultado do candidato que mais consistentemente inventariou os problemas que afectam a sociedade portuguesa, identificou as suas causas e enunciou as respectivas soluções.

 

Edgar Silva tem uma considerável experiência em matéria social, particularmente no domínio do acompanhamento de crianças pobres na Madeira. Contudo, que terá transparecido dessa sua experiência pessoal de enorme importância para os eleitores que o conheceram pela televisão? Muito pouco, suponho, porque o candidato privilegiou enunciados relativamente abstractos (pese embora a concretude dos factos a que diziam respeito), quando as fórmulas descarnadas do canhenho ideológico careciam de ser amassadas com a sua sensibilidade própria e com as emoções do dia-a-dia.

 

Presumo que, por esta altura, não andarei longe da acusação de defesa da demagogia. Não. Não creio que Jerónimo de Sousa seja populista quando diz, a propósito da caricata referência de Marcelo à contenção de despesas na sua campanha: "com as calças do meu pai também eu sou homem". O que Jerónimo de Sousa faz é descodificar uma mistificação, vertendo-a numa linguagem acessível a todos e em que, mais do que a fria objectividade do discurso elaborado, sobreleva a repulsa pela manipulação das consciências e das emoções em que Marcelo é exímio. Ele podia estender-se numa lengalenga demorada e algo semelhante às prolixas explanações deste texto. Provavelmente, ninguém lhe daria atenção. Pelo contrário, recorrendo ao condensado aforismo, não só explica tudo como deixa em quem o ouve uma marca afectiva semelhante à do sorriso e do abraço fraterno. E até a comunicação social tão pouco disposta a fazer-lhe favores lhe louva o dizer faceto.

 

Não se trata de arranjar candidatas ou candidatos "engraçadinhos". Desses, tivemos alguns, e é verdade que um deles não ficou muito atrás de Edgar Silva, o que é revelador do estado de alienação política e indigência intelectual de parte do eleitorado, qualidades partilhadas, desgraçadamente, por uma parcela bem mais significativa. Do que se trata é de encontrar o justo equilíbrio entre o imperativo de denunciar, informar e esclarecer, por um lado, e a imprescindibilidade de calar fundo no afecto dos concidadãos. A menos que se pretenda abandonar progressivamente a frente de luta eleitoral, dando-se por bom o slogan "élections, piège à cons"[3].

 

 

[1] António Damásio, O Erro de Descartes, Europa-América, p. 14

[2] Marcelo Rebelo de Sousa, TVI, todos os domingos

[3] Jean-Paul Sartre, 1968...

Eleições e varas tortas

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Seria temerário e, talvez, redutor dizer que, exceptuando Edgar Silva, os candidatos à presidência da república são todos iguais. Na sua esmagadora maioria eles poderiam, provavelmente, receber um rótulo tão abrangente quanto o é o de “social-democrata”, desde que esta área do pensamento e da práxis política se permeabilizou de tal modo aos ditames do neo-liberalismo que é hoje difícil destrinçar um “socialista” ou um “social-democrata” de um representante da direita liberal. Apesar disso, existem entre eles diferenças de sensibilidade perante as magnas questões da justiça social, e as suas agendas político-sociais apresentam igualmente especificidades que reflectem a complexidade do mundo em que vivemos. E, contudo, pôr a tónica nessas diferenças, estratégia própria de qualquer contendor empenhado nas campanhas eleitorais, conduz geralmente à obliteração do essencial, que é aquilo que esses candidatos têm em comum, a saber: o objectivo de reformar e de gerir o sistema, mal-grado as suas injustiças e desmandos. Neste contexto, dizer que se é a esquerda da direita ou a direita da esquerda pode significar alguma coisa, em termos de posicionamento circunstancial, mas pouco significa em termos substanciais.

 

Entende-se, assim, a excepção feita a Edgar Silva. Como todos os outros, ele está obrigado a cumprir e a fazer cumprir a Constituição, no caso (improvável) de ser eleito. Não só improvável como, sobretudo, inviável, nas actuais condições, seria a tentativa de alterar o statu quo, no sentido de “abrir caminho para uma sociedade socialista”, conforme preconiza o Preâmbulo da lei fundamental. Contudo, de todos eles, Edgar Silva é o único que perfilha princípios segundo os quais o capitalismo não é reformável. Marisa Matias, a simpática candidata do Bloco de Esquerda, sempre apresentado como partido da extrema-esquerda ou da esquerda radical, é tão reformista quanto os outros.

 

Ora a premissa da perspectiva transformadora (a da verdadeira radicalidade) afigura-se-me imprescindível para o exercício de uma magistratura que vise uma efectiva consecução da justiça social e não a implementação de paliativos que, sendo importantes para quem deles beneficia – como, de resto, acontece com a filantropia – não curam as chagas da incultura, da desigualdade, da injustiça, do desemprego, da pobreza, da corrupção.

 

Nestas circunstâncias, por estas razões e por convicção, votarei Edgar Silva no próximo dia 24. Numa eventual segunda volta, espero poder votar no candidato que mais garantias dá de cumprir e fazer cumprir a Constituição ‒ Sampaio da Nóvoa. Bem ciente do baldado intento de endireitar a sombra à vara torta.

 

7 CONTOS ILUSTRADOS

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Com capa de Inês Ramos e prefácio de Miguel Real, a Lua de Marfim publicou sete contos de sete autores naturais do Algarve ou aí residentes, cada um deles ilustrado por um artista plástico. Se a minha impreparação no domínio das artes plásticas me aconselha absoluto silêncio quanto à apreciação dessas ilustrações, arrisco uma referência à capa, geralmente ignorada nos textos de crítica literária, que se justifica plenamente, uma vez que, no caso vertente, a expressividade do grafismo (caracteres de vários tamanhos imitando um cursivo algo flamejante) anuncia um conteúdo ficcional rico em fantasia. Por sua vez, o prefácio de Miguel Real procede a uma criteriosa ponderação, catalogação e avaliação dos sete contos, não poupando nos elogios aos sete contistas. Fiel ao método de aproximação do texto pela via do esquadrinhamento, um pouco à maneira do cronista-mor, eis o que se me oferece dizer sobre estas narrativas.


O tema do surgimento inopinado de uma galé romana cheia de legionários, no estuário do Guadiana, em pleno século XXI, no conto "Os Romanos", de António Manuel Venda, com ilustrações de José Bivar, sugeriria, talvez, uma abordagem à maneira do realismo mágico ou nos moldes da literatura do fantástico. Qualquer das opções implicaria uma "encenação" criteriosa do anacronismo, nomeadamente através de uma caracterização cabal da embarcação e dos soldados, abstendo-se o narrador de manifestar a sua surpresa, sobretudo no primeiro caso, e sem solução de continuidade no discorrer narrativo. Por outras palavras, a estranheza que, naturalmente, se deveria sentir deveria ser mantida em surdina, como se o insólito fosse apenas uma das faces do real. O narrador de "Os Romanos" descarta esta possibilidade, optando por uma estratégia narrativa oposta: "Era tudo muito estranho para mim. Um barco cheio de romanos aproximava-se do molhe." (p. 10). É, pois, assumidamente que o insólito, enquanto tal, irrompe no discurso narrativo. Tal opção é legítima, claro, e não inviabilizaria a consecução de uma boa história, sob duas condições: primeiro, que o narrador fosse suficientemente convincente para que o leitor entrasse no jogo; segundo, que a ficção fosse servida por uma escrita ágil, densificada pela conotação e isenta de inoportunos bordões coloquiais ("na volta", "à balda", "à maluca").


Já em "Coração da Cidade", de Fernando Esteves Pinto, ilustrado por Paulo Serra, mais do que a "história" (no sentido de acção), o que sobreleva é a análise psicológica, com a particularidade acrescida de se tratar de um psicologismo frequentemente enigmático, pejado de mistério, perscrutador dos esconsos mais recônditos daquilo a que, por manifesta comodidade linguística, se convencionou chamar a "alma" humana. Esta demanda da interioridade é, aliás, comum a outras obras de FEP, nomeadamente o romance O Carteiro de Fernando Pessoa, onde se alia a uma ironia muito subtil, de tão impessoalizada, a reflexão permanente sobre inúmeros pormenores, reflexão essa que se espraia por períodos extensos. Neste conto, a pesquisa interior é motivada pela iminência do relacionamento íntimo e produz passos como este: " (...) compreenderemos objectivamente a nossa disposição quando uma mulher se propõe desafiar-nos para uma relação ocasional? Haverá nisso algum factor estimulante que fará a ligação com o nosso estado emocional? Não creio. Pode existir excitação, fantasia, ritmo cardíaco acelerado, expectativa, exibicionismo intencional, mas tudo isso é o físico a identificar-nos com a sua pornografia exemplar. É a emoção estética do corpo. A representação sentimentalizada da nossa própria fraqueza. Irracionalmente transmite-se a imagem de alguém moralmente insaciado, imaginando-o a possuir a pessoa que está na sua frente, com a cumplicidade inocente que nunca se confessa no próprio acto" (pp. 37/38). A esta capacidade introspectiva, o A. alia um trabalho sobre a linguagem de que resultam imagens inspiradoras: "Parámos a olhar o rio Guadiana. Tinha um grafismo de luzes na corrente das águas, e sempre numa coreografia incómoda e fria" (p.39). Trata-se, enfim, de um conto em que lateja o sentimento do trágico vivenciado por duas solidões que convergem para logo divergirem, no espaço da cidade moderna, ainda que a do conto não seja propriamente uma metrópole.


Formado em História e conhecedor da literatura oral e tradicional do Algarve, Fernando Pessanha faz o seu narrador, também ele historiador, deslocar-se a Tânger para efeitos de um congresso, em "O sétimo céu e as meninas de Tânger", ilustrado por Gilda David. À sua chegada, a agradável surpresa de um grupo de jovens beldades cuja presença sensual cria no bar do hotel ambiente propício ao advento de um episódio superveniente de As Mil e Uma Noites. O discurso flui com naturalidade, de um só fôlego, e apenas as referências ao relacionamento íntimo mencionado na narrativa encaixada de Samira, uma das beldades, provocam um indesejável efeito de ruído, pois não andarão longe do registo hard-core próprio da literatura erótica. Estranha-se, aliás, que tais referências surjam num contexto (o da cultura árabe muçulmana) em que a mulher é tradicionalmente subalternizada e confinada à passividade sexual. Ou será que o autor desta consideração anda enganado?


Conforme Miguel Real observa no prefácio, "Filho da Mãe", de Paulo Moreira, ilustrado por Inês Ramos, é um conto realista. Por pouco, quase neo-realista. Com efeito, trata-se de uma história verosímil, contrariamente às demais da antologia, evocativa de um meio social pobre e de uma infância afectada pelo estigma da prostituição, e vertida num discurso fluente. Em termos de técnica narrativa, o conto ganharia em qualidade se o narrador, usando de maior discrição, se abstivesse de caracterizar directamente a mãe do protagonista. Do mesmo modo, a carga simbólica do epílogo, com o protagonista prostrado na cama da mãe, é prejudicada pela referência explícita à "posição fetal", que torna demasiado evidente a sugestão do retorno ao útero.


Em "Facelist", de Paulo Kellerman, ilustrado por Reinaldo Barros, o protagonista relata ao seu psicanalista uma experiência a que procedera a fim de testar o interesse dos seus concidadãos pela comunicação com o outro. O resultado parece decepcionante, mas, afinal, apenas o método não foi o mais adequado. O diálogo, escrito em tom ligeiro, mas sustentado e homogéneo, impregnado de ironia tranquila e distendida, insinua-se como metáfora dos paradoxos comunicacionais no mundo dos nossos dias.


"Aquilo" de Pedro Afonso, ilustrado por Sara Ceriz, tem, em comum com "Os Romanos", o insólito e a falta de consistência. Onde António Manuel Venda vê uma galé romana, Pedro Afonso vê uma laranja, que podia ser mecânica, mas é apenas uma "bola de luz" que contraria a gravidade. Se a galé desaparece com a mesma facilidade com que aparece, já a laranja de "Aquilo" (que é, de resto, "aquilo"), suga o corpo do protagonista "para fora de si, como que se espalhando por todo o lado". Embora reconheça que passara já várias vezes pela mesma experiência, o protagonista diz-se "aterrorizado". Porém, o leitor, embalado pela leitura de registo realista das duas primeiras páginas, tem sérias dificuldades em entender a natureza sobrenatural do estranho fruto e, definitivamente, não alinha com a ficção, cujo alcance lhe escapa.


Há, felizmente, um anjo que vem em seu socorro, no conto de Vítor Cardeira "O amor é uma fuga sem fim", ilustrado por Adão Contreiras, conto este que encerra a antologia. Trata-se de um anjo parcialmente desasado e, por via dessa imperfeição, destinado a voos mais rasteiros do que aqueles que, habitualmente, estão cometidos às celestiais criaturas. A narrativa relata, com efeito, a aventura de um anjo que, despeitado pelas mofas dos seus semelhantes, decide abalançar-se a uma vida terrena, pena nas profundezas da terra como qualquer mineiro, conhece os encontros e desencontros do amor humano, enfim, humaniza-se, faz-se homem. Trata-se de uma ficção com óbvia carga simbólica, que ressuma exuberante ironia, recheada de apontamentos resultantes de uma observação atenta do ser e do estar do homem. O insólito da personagem é rapidamente desmentido pelo seu comportamento, em nada, ou quase, distinto do humano. Contudo, o epílogo aparece envolto numa névoa de ambiguidade que contrasta com referências de cunho libidinoso, perfeitamente explícitas, em passos anteriores do conto, e a frase final deixa-nos uma dúvida: houve mesmo metamorfose ou, contrariamente à asa, facilmente amputada, o sexo revelou-se um bico-de-obra? De facto, o anjo "agora compreendia a infinita discussão dos homens sobre o sexo dos anjos" (p. 127), mas o leitor não percebe bem se, em troca da asa perdida, o anjo ganhou todos os atributos dos homens.


Dos sete autores antologiados, quatro eram já meus conhecidos – Fernando Esteves Pinto (FEP), Fernando Pessanha (FP), Paulo Moreira (PM) e Vítor Cardeira (VC). A leitura destes seus contos vem confirmar as diferentes qualidades de todos: escritas reflexivas de FEP e de VC, discursos mais focados no encadeamento das acções em FP e PM; obsessiva auscultação dos subterrâneos do psiquismo em FEP, comentário divertido da comédia humana em VC; pendor para a fantasia erotizante em FP, apego conspícuo ao real em PM. Quanto aos três outros autores, novas leituras permitirão uma apreciação mais judiciosa.


Não termino sem renovar a habitual referência ao trabalho de revisão: que ele seja convenientemente feito, evitando-se gralhas e desencontros sintácticos que perturbam a comunicação.

 

(Uma versão condensada deste texto foi publicada no Jornal do Baixo Guadiana de Fevereiro 2016)