PARA A DECIFRAÇÃO DO CAOS, de MANUEL MADEIRA
Exercício arriscado, o de comentar o último livro de poesia de um poeta de 91 anos sem ter lido nenhum dos anteriores. Vou, ainda assim, correr o risco de chegar a conclusões que, eventualmente, o conhecimento da sua anterior produção poderá invalidar, atendo-me ao que estes dezoito poemas de Manuel Madeira me sugerem ou indiciam quanto a um percurso que, de tão longo, dificilmente terá escapado aos mais variados incidentes e que tem certamente muito mais facetas do que aquelas a que me vou cingir.
Creio que há, em Decifração do Caos, editado pela Lua de Marfim em Janeiro último, duas linhas de sentido que se "actualizam" (no sentido de concretização no plano do discurso que a linguística dá ao termo) ora em poemas distintos, ora no mesmo poema. A primeira destas isotopias, ou conjuntos de redundâncias internas, enforma os poemas que se debruçam sobre o processo da criação poética e a relação do poeta com a palavra; a segunda é a da sua circunstância histórica (sua, do poeta).
- O processo de criação poética e a relação do poeta com a palavra
Esta reflexão acontece nos seis primeiros poemas e no décimo primeiro. Assim, em "Sentimentos calcinados", poema de abertura, o poeta como que lamenta a incomunicabilidade entre a realidade extralinguística e o signo não-motivado – "símbolo de nada", pois "entre as palavras e as coisas / existe um abismo que nunca se preenche" –, ao mesmo tempo que exalta a "ternura do insólito", ingrediente de eleição na feitura do poema. A demanda da génese da poesia está patente em "Ao encontro das causas das coisas", que esclarece o leitor sobre o aturado trabalho de rebusca da consciência e dos "sentimentos soterrados na mente", que o poeta desenterra "como o cavador [...] esperando que a memória e o tempo multipliquem os grãos / constituídos de emoções e de palavras / conteúdo e continente onde guardo a produção". "Para a decifração do caos", poema que dá o título ao livro, é também o poema em que o poeta, cartesiano, enuncia "o princípio da negação do que se afirma [...] para dar sentido à dúvida, sempre mais real que a afirmação". Infelizmente, e salvo melhor interpretação, a primeira estrofe ficou truncada e ao predicado inicial ("Começo por pôr em causa...") falta o complemento directo que lhe daria a plenitude de sentido e que apenas podemos presumir, sendo certo que as nossas hipóteses se revelam impotentes para aspirar à capacidade metaforizante do autor. Em qualquer caso, subsiste, como moral do poema, a afirmação de que a dúvida e a "perscrutação do silêncio" desvendam "abismos como os da alma humana". "Como se faz um ninho", classifica-o o poeta como "poema concreto" construído com "as emoções telúricas, [...] matéria prima abstrata". Trata-se de um poema que justapõe alegoricamente a "hercúlea experiência" das aves construtoras de ninhos ao labor do poeta "a construir sílaba a sílaba uma nova estrutura / da raiz ao topo destes versos insólitos". Vem, depois, o "Ensaio sobre a linguagem", poema verdadeiramente ensaístico que historia os alvores da linguagem humana: "Antes da palavra, só o gesto e o grito habitavam / as galáxias do ser que palpitavam mudas [...]". O registo metafórico, que impregna parte do poema e profusamente ilustra o engenho de Manuel Madeira, é preterido na última estrofe, a favor do discurso objectivo e didáctico. Esta disposição para o didactismo é especialmente notória no último poema desta série, "Negação da negação ou a obra inacabada", que é uma lição sobre a arte de poetar: "Reconstruimos o real que absorvemos pelos sentidos / como matéria prima indispensável à obra idealizada / que depois de trabalhada nos estaleiros da mente / onde sofre golpes e torções na forja e na bigorna / para adquirir formas revestidas de certezas, / surge extravagante e às vezes tão diferente do previsto / que a não reconhecemos como sendo desejada [...] // Escrevo por exemplo a palavra pedra / que junto à revelia da lógica com a palavra amor / para com elas formar um conjunto original / depois de aglutinar estas duas matérias, / que tanto poderá significar uma pedra de amor / como pelo contrário um amor de pedra, ou ser apenas uma síntese impenetrável / de amor empedernido como a eternidade / que só a ausência de convenções concebe. // [...]". Finalmente, "Aventura das palavras" é um poema que exalta a epifania da palavra, palavra que, no "minuto seguinte ao caos inicial" dá ao poeta "o contorno do invisível".
- O poeta e a sua circunstância
Conforme referi na introdução, há, depois, a isotopia da circunstância histórica, presente desde o primeiro poema, que tem um fecho marcado pelo desencanto, o que, aliás, vinha já sendo anunciado desde o título, com a metáfora da consumição da esperança pelo fogo de um tempo que não cumpriu as promessas da presumível idade de ouro que terá sido a da Revolução de Abril, leitura que suponho autorizada pelo conhecimento do percurso político do poeta, ainda durante o fascismo: "Sei que este é o tempo das ideias cilindradas / amassadas pela lama que já foi aurífera / que as palavras repetiam com alvoroço e fé. // Sonhamos é certo com as ilusões / que eram douradas e hoje são de chumbo / com as mãos acenando ao passado morto / tamborilando agora nas borlas do destino". Seguidamente, o poema "Só tu me acompanhas poesia", que nos traz à memória a "Ode à Poesia", de Pablo Neruda (" E tu, Poesia, / tão infeliz e tímida antigamente, / foste à frente / deles. E / todos se habituaram / ao teu fato / de estrelas quotidianas, / porque se algum relâmpago / denunciou / a tua ascendência, / tu cumpriste a / tua missão, / e o teu caminho, entre os caminhos dos / homens")[1]. No entanto, se Neruda exalta a combatividade de uma poesia empenhada na transformação social, Madeira lamenta a ausência de um projecto, e a sua alusão final a Jacob e ao Anjo induz outra referência literária, se não de sinal contrário, pelo menos de sinal diverso, a de Régio. Aliás, o poema seguinte, "Durante toda a noite", parece fazer eco aos célebres versos "Não sei por onde vou, / Não sei para onde vou / Sei que não vou por aí!"[2]. Com efeito, ele abre com os versos "Durante toda a noite / procurei uma saída para o labirinto / em que muito cedo me perdi". São três versos que replicam um após outro a disforia da noite, como metáfora do desencanto, a angustiosa dificuldade do labirinto, como metáfora da escolha, e a confissão não metafórica da ausência de rumo. A sua terceira e última estrofe confirma e clarifica a mensagem gravada pela primeira: "Nenhuma luz me guia nenhuma mão me prende / nenhum olhar derrama sobre mim a fé / de encontrar saída de onde / à míngua de rumor perdi o pé". A "míngua de rumor" exprime, mais metonímica do que metaforicamente, o isolamento, o não engajamento num projecto colectivo que, longe de propiciar ao sujeito poético o sentimento da liberdade, antes o leva, como diz, a "cair de borco no abismo do sonho / onde me agito e sofro em suas malhas preso". O poema seguinte, de modo muito mais enigmático e profundamente matizado pelo sentimento da dissolução no cosmos, parece reincidir nesta problemática, desde o título "Solidário / solitário", que contém os dois pólos opostos entre os quais o sujeito poético parece oscilar.
Há, enfim, três poemas que constituem notas algo dissonantes no conjunto, pela forma da expressão, pois se trata de sonetos, e pela substância do conteúdo, pois são transparentes e, por isso mesmo, não carecem de "decifração", estando, aliás, longe do "caos" de que outros participam. São eles "Morte em flor", "Garrett no Limoeiro" e "Drama do poeta Gomes Leal". Quanto a estes três sonetos, diremos apenas que cumprem aquilo que se espera desta forma fixa, isto é, desenvolvem harmoniosamente um raciocínio e fecham com chave de ouro: no primeiro caso, com a bem-humorada expressão do receio de que "o coração, / a sete palmos de profundidade, / não deixe adormecer a vizinhança"; no segundo caso, com a exortação ao poeta para que cante a "liberdade eterna"; no terceiro, com a expressão antinómica da condição do poeta: "brilhar no espaço com um fulgor d'astros, / andando aos trambolhões pela sarjeta!"
O último soneto recenseado sugere-me fortemente o poema "L'albatros", em que Baudelaire compara o poeta a este gigante dos céus. Pousado no convés do navio, o albatroz, ou alcatraz, perde a majestade do voo e vê-se reduzido à condição de desajeitada e infeliz ave: "Le Poète est semblable au prince des nuées / Qui hante la tempête et se rit de l'archer; / Exilé sur le sol au milieu des huées, / Ses ailes de géant l'empêchent de marcher."[3]
Se a condição do poeta é também, de certo modo, a condição humana nos dois extremos do trajecto existencial, o facto é que, com os seus 91 anos e este livro, Manuel Madeira mostra que as suas asas de gigante não o impedem de andar.
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[1] Pablo Neruda, "Ode à Poesia", in O Homem Invisível
[2] José Régio, "Cântico Negro"
[3] Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal