Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Curt'os Contos, de Paulo Moreira

image_2016-02-19_10-57-07.jpg

 

Os sonolentos caminhos de pedra rasgados por mãos desejosas

Suavíssimas visões de infernos repletos de luz

Cavalares rimanços de dados debruçados em cantos de mim

 

Tudo isto retalhos de prosa

Casarios de gente parada

 

São adagas que voltam no tempo

São imagens que foram criança

 

Estão cravadas em mentes assim

 

Curt'os Contos, p.7

 

O poemeto transcrito, que abre o livro Curt'os Contos de Paulo Moreira, poderia ser lido como anúncio, metafórico é claro, do que vem a seguir. Ele fornece também uma primeira chave de descodificação. Sem se entrar em pormenores analíticos porventura excessivos no âmbito dum comentário breve, poder-se-ia ver nele uma alusão a um árduo percurso de busca, de indagação, numa memória recheada, tanto quanto esfumada. A busca em causa é desejada e bem sucedida: ela conduz a "visões" que fundem, antiteticamente, a luz, a suavidade, os "casarios de gente parada", as "imagens que foram criança" com a dureza da pedra, a contundência da adaga e o horror do inferno. Síntese difícil, mas conseguida, é o que provam estes contos breves. Antes deles, nova chamada de atenção prefacial: "Pretextos" informa o leitor de que a démarche do autor passa por "inventar as palavras que foram inventadas [...] Transformar as palavras em mar e afogar-me em deleites de sons e seus ritmos embarcando em aventuras imateriais [...]". Está dado o tom: aqui, as palavras reinventam-se e partem à aventura; qualquer semelhança com o mundo em que vivemos talvez seja pura coincidência.

 

Se bem que já dentro do conjunto de contos propriamente dito, "Um escrito surrealista" parece vir ainda advertir o leitor para o que vai ler. Mas fá-lo, desta vez, com os condimentos da narrativa, equilibrando muito adequadamente rápidos apontamentos descritivos com a narração e o diálogo. Ondas cerebrais, um enforcado, três gatos fuzilados, uma cabeça tetraédrica são algumas das bizarrias que povoam um miniuniverso regido por um Conselho Utópico que Thomas Morus não deixaria de verberar.

 

Seguem-se vários contos igualmente curtos e igualmente equilibrados no seu agenciamento sintagmático, dotados daquele condimento, outrora considerado canónico e hoje não tanto, que é a surpresa do epílogo: "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce" põe em cena uma personagem em construção, presa de um Destino volúvel e quezilento, mas finalmente comovido, e de tal modo que se afoga nas suas próprias lágrimas; "Física da matéria condensada", talvez o único destes textos em que se poderia assinalar uma certa superfluidade discursiva; "Audição", que é, pelo contrário, um caso de exemplaridade, quer do ponto de vista do fluir narrativo, quer do ponto de vista da expressão, sem excrescências nem superfluidades; "Sol de Verão", cuja personagem se vê privada do Sol por motivo de incumprimento fiscal.

 

Há um conjunto de textos em que é singularmente expressivo o sentimento angustiante de um divórcio entre o mundo físico, incluindo o próprio corpo, e a consciência desse mesmo corpo, como se este fosse o objecto de que aquela seria o sujeito. É o caso de "A morte", experiência onírica de morte e renascimento, e de "Conservação", na linha do anterior, com a particularidade da progressiva desintegração física.

 

Há, também, contos ainda mais fantasiosos do que os anteriores e, cumulativamente, muito enigmáticos e avessos a tentativas de interpretação. Tal acontece em "Linha do Norte", que deixa o leitor perdido num amontoado de descrições e de reflexões breves, de nexos insondáveis, terminando com esta irónica exaltação: "Bem-aventurados os elos desconhecidos de ligação". É também o caso de "Experiências" e de "Caminhos". Todos eles estão já próximos do género ficção científica.

 

"Loucura", com três partes bem distintas, é aquilo a que talvez pudéssemos chamar "história de proveito e exemplo", ainda que a esta falte, obviamente, a explicitação moralizante, de bom tom no século de Trancoso. Ela começa com um texto de registo emotivo e de carácter intimista, e aparentemente confessional, que exprime a angústia do ser solitário balanceado entre o racional e o emocional. A sua segunda parte é constituída por um poema que exprime emotivamente o sentimento da irredutível individualidade do sujeito poético imerso num universo hostil. A narrativa que constitui a conclusão do tríptico, contrastando com as duas primeiras partes, é de carácter aparentemente jocoso. Aparentemente só, porque, lida para lá da sua superfície, ela ilustra os estragos causados pela impossibilidade de comunicar – nada menos do que a loucura.

 

Estavam certos Agustina Bessa-Luís, Dinis Machado, Maria Ondina Braga, Fernando Dacosta e José do Carmo Francisco quando, em 1987, recomendaram a publicação destes Curt'os Contos de Paulo Moreira.