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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A liberdade livre da poesia de Adão Contreiras

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             Em muita da poesia da segunda metade do século XX posterior à Presença e na deste século, é frequentemente problemática a identificação de conteúdos significativos passíveis de ser definidos e categorizados de modo a conduzir àquilo a que Greimas, referindo-se, embora, à narrativa, chamou "leitura única"[1], conceito naturalmente avesso à natureza da palavra poética, mas que não deixa de motivar o leitor, ou não fosse a palavra, qualquer palavra, entendida primordialmente como mediadora de um significado. No mínimo, a definição que se arrisca é posta em causa pela ocorrência simultânea de significados que a contrariam ou, pura e simplesmente, se furtam ao nosso entendimento. O comentário debruça-se, assim, sobre múltiplas ocorrências de significados dispersos, assinalando a sua originalidade e a criatividade do autor, mas cinge dificilmente o seu significado global. O poeta comporta-se como um desencadeador de espantos e o leitor sente o encanto que as mais inesperadas associações verbais lhe propiciam, mas, se quiser ir além dessa emoção, esbarra na irracionalidade da construção. Sentidos, encontra lá alguns - mas desgarrados e insusceptíveis de uma síntese inteligível, a não ser que o próprio leitor logre estabelecer e explicitar nexos lógicos que falecem no poema, aventurando-se num terreno movediço, e seguro apenas de que a sua leitura é uma das leituras possíveis. Ora, na medida em que há essa constelação de sentidos dispersos, na melhor das hipóteses agrupáveis por mediação do leitor, esta linguagem poética é eminentemente plurissignificativa: ela potencia a liberdade que é já apanágio comum da poesia, elevando-a à condição de liberdade livre – expressão cunhada por Ramos Rosa em título de obra sua. A poesia de hoje é, assim, um discurso transgressor, "reino de clarões e de sombras, das vozes da expansão e do retraimento"[2], que se caracteriza por sair a cada passo da linearidade sintagmática, quer para fazer incursões no eixo paradigmático das virtualidades, no caso da metáfora, quer para subverter as próprias relações de contiguidade, no caso da metonímia[3], quer ainda para estilhaçar qualquer veleidade de leitura lógica e as próprias condições da gramaticalidade. E é pelo carácter transgressor do discurso poético que me aproximarei, mais uma vez, da poesia de Adão Contreiras, com a qual, carregando nas tintas para mais impressiva tornar a apreciação, diria que tenho uma relação de amor e ódio. Treinado a fazer com o texto aquilo que geralmente se designa por "descodificar" ou "desconstruir", isto é, a pôr a nu as suas fundações e o seu travejamento (aquilo em que ele assenta e aquilo que lá está), mas também as suas virtualidades (aquilo que, não sendo imediatamente identificável, pode, no entanto, insinuar-se como possibilidade interpretativa), a poesia sujeita-me e sujeita-nos provavelmente a todos à tormentosa prova de nos iluminar fulgurantemente com as tais associações vocabulares surpreendentes – muitas vezes a sugerirem as associações de objectos díspares na pintura surrealista – para, no instante seguinte, nos deixar mergulhados na escuridão de um significado que se furta irremediavelmente ao procedimento silogístico e às exigências da racionalidade. Se o deslumbramento suscita adesão, a ilogicidade motiva frustração – donde a minha alusão antitética. Porém, como no casal de antagónicos perfis idiossincráticos que se reconcilia na complementaridade, assim a minha relação com a poesia de Adão Contreiras se salda por um compromisso convivial – tolo seria o amante que desdenhasse a parceira deslumbrante em nome de um apego ilimitado aos cânones aristotélicos. Para além do mais, "tudo o que o poema disser / deve estar escondido // neste poema / não há lugar para iluminações // as palavras naufragarão / antes da luz // a significação será uma / abundância virtual" – preceitua o poema "há uma quimera em todos os lugares da abundância"[4] – e "desnudar a poesia é querer que a noite seja iluminada", quando "somente a sombra das palavras poderá iluminar o texto", conforme nos ensina o poema da p. 75 deste Mostruário.

            Antes, porém, desta abordagem, que já segui na análise dos dois volumes anteriormente publicados por AC, importa sublinhar a peculiaridade do presente, que se manifesta no título e na composição dos poemas. Estamos perante um "mostruário", isto é, perante algo que apenas mostra uma parte, pequena, mas suficiente para se ficar com uma ideia do todo. Trata-se de um artifício, de um inofensivo embuste, visto que os poemas estão lá, mas o carácter mistificatório da designação é atenuado pela verificação de que o travejamento aparente dos poemas sugere, de facto, a ideia de textos inacabados, de rascunhos com "notas", "tópicos", "exemplos", "hipóteses", "sinopses", "dicas", como se estivéssemos perante um manual de instruções ou perante um edifício de estrutura aparente, como em Le Corbusier. A título de exemplo, atente-se no seguinte poema, que aponta expressamente para a possibilidade da sua criação como resultado das indicações fornecidas pelo autor no próprio texto, com o que, aliás, o poema existente parece relegado para o limbo da virtualidade:

            "não cai das nuvens o suor das palavras / Nota: / poema para ser construído sob / o silêncio da aurora / e / com / palavras metálicas / que suportem o peso do corpo / haverá uma chuva de pedras / quando do texto se soltarem os alicerces"[5].

            Esta particularidade, conforme se verá, não é meramente formal. Ela determina a configuração de grande parte dos poemas que integram o livro e imprime-lhes um carácter metapoético: estamos perante poesia que se debruça sobre a própria poesia, para se questionar, para avaliar o seu alcance e os seus limites.

            Tentando, pois, decifrar o que nem sempre é decifrável, procurarei iluminar com alguma luz as obscuridades que este "triturador de imagens"[6] e "velejador de palavras"[7] dispôs no seu "reino de clarões e de sombras". São grandes os riscos que tal tarefa comporta, a começar pelo da descodificação simplista, pois "desnudar a poesia é querer que a noite seja iluminada"[8]. O leitor pode sempre contorná-los, prescindindo da leitura deste exercício e optando por "deixar-se encandear pelo brilho emanado do sol que são as obras de arte"[9]

 

  1. O sentimento da palavra

            A contagem de palavras cuja excepcional frequência é percebida a partir de uma simples leitura do livro dá-nos o seguinte quadro:

 

 

Signo

N.º de ocorrências

1.º

poema

131[10]

2.º

palavra

88

3.º

poeta

84

4.º

tempo

34

5.º

corpo

29

6.º

amor

27

Beijo (nome ou verbo)

16

8.º

eterno

9

9.º

texto

8

10.º

vocábulo

5

           

Considerando a possibilidade de agrupamento destas palavras em campos lexicais, teríamos o seguinte:

 

 

Campo lexical

N.º de ocorrências

1.º

da criação poética (palavra, poema, poeta, texto, vocábulo)

320

2.º

do amor (corpo, amor, beijo)

 

72

3.º

do tempo(tempo, eterno, futuro)

 

43

 

            A estatística afigura-se-me suficientemente expressiva para se poder concluir que a matéria-prima essencial destes poemas é mesmo o poema, a palavra e o trabalho poético, com o que Adão Contreiras volta ao rumo traçado inicialmente por Página Móvel com Texto Fixo, que tive a oportunidade de definir como "arte poética", depois de se ter dele apartado em Ouro e Vinho, poesia da experiência, mais próxima do real quotidiano. Com efeito, muitos dos poemas que compõem o Mostruário podem ser incluídos numa secção a que chamarei "O sentimento da palavra", em acepção idêntica à que correntemente se usa, na análise literária, a propósito do "sentimento da natureza". Se esta última designa a particular percepção e correspondente verbalização que poetas e escritores foram tendo e fazendo do mundo exterior, ao longo dos séculos (natureza cenário, natureza reflexo de estados de alma, natureza confidente,...), a expressão "sentimento da palavra" significará, para efeitos desta análise, a apreensão muito sua que o autor revela da entidade "palavra". Atente-se nos seguintes excertos:

    • "não cai das nuvens o suor das palavras / [...] poema para ser construído [...] / com / palavras metálicas / que suportem o peso do corpo[11];
  • "as palavras / devem ser trituradas / e / separadas as substâncias ácidas"[12];
  • "a palavra 'amor' deve ser tridimensional / ficar pendurada junto ao coração / ao peito / com um alfinete-de-dama / pela noite fora"[13];
  • "notoriamente um poema cansado / [...] será de palavras / em fúria"[14];
  • "tristes palavras irrequietas / quando com elas querem / congelar o tempo"[15];
  • "o poeta [...] concentra-se nas palavras alagadas / de suor"[16];
  • "as palavras têm o corpo desesperado / se na ambiguidade das cavernas flutuam"[17].

 

 

            Vemos que a palavra poética é percepcionada pelo autor ora como objecto dotado de propriedades físicas e químicas, tais como a consistência e a cor, ora como ser vivo e quase humano, dotado de uma identidade própria e de uma autonomia que o deslocam da sua função de signo, dotado das faces significante (imagem acústica ou visual) e significado (ideia), e lhe conferem, por assim dizer, a natureza de referente (objecto real), para recorrer à nomenclatura saussuriana. Quando lemos, neste Mostruário, "o suor das palavras", "palavras metálicas", "palavras trituradas", "palavra tridimensional pendurada junto ao coração", etc., talvez já não estejamos perante metáforas sugestivas das diferentes cargas emotivas que a palavra poética transporta. Parece-nos, com efeito, que a palavra se libertou da sua função mediadora (de significação) para ser um fim em si mesmo. E, no entanto, este indefinível "referente" ou "objecto" é ainda designado por um signo cujo significante é a palavra "palavra" e cujo significado será a ideia que dela fazemos, colocados perante sintagmas tais como os que citei anteriormente ("o suor das palavras", etc.). Ducrot e Todorov explicam que "um significante sem significado é simplesmente um objecto, é mas não significa; um significado sem significante é o indizível, o impensável, o próprio inexistente"[18]. Como compaginar esta concepção com a do poeta, que afirma: nos escombros da musicalidade das  vogais / todo o significado cria um abuso de poder"[19]? Ao leitor de poesia, colocado perante tais significantes sem significado, signos reificados, caberá a tarefa de escolher entre uma démarche que poderíamos chamar heurística (que significa isto?), por um lado, e a sua alternativa (como está construído?, que imagens suscita?), por outro lado. Sendo certo que uma atitude menos cerebral e mais sensitiva lhe abrirá as portas de um mundo reinventado que viola todas as leis do nosso e em que a liberdade é finalmente livre. Como se diz no poema da p. 45, "mesmo sitiado por um nevoeiro abundante",

 

"na formulação poética / as palavras serão indistintas / tanto poderão dizer: / hoje como amanhã / por exemplo: / ontem comprarei / ainda que não tenha havido / um cacho de bananas. "

 

ou no da p. 58, "não sei se é dor", "poema de palavras muito concretas", que explicita mais ainda a reificação ou coisificação da palavra, dando a dor a consistência da pedra, assimilando angústia a um copo vazio e identificando em ardor "uma mola de roupa pendurada / num fio de dor". Ou ainda no poema que enuncia, desta forma singela, a experiência fantástica da presentificação do Outro pela simples nomeação (pronomeação, neste caso): "se digo tu, é em mim que inicialmente existes"[20].

            Noutros casos, porém, a palavra não cede logo a este processo de coisificação. Ela resiste um momento, conservando a sua natureza mediadora da comunicação, mas traveste-se, mesmo assim, com a roupagem fulgurante da metáfora. "toda a palavra é um cometa", diz o poema da p. 72, e o leitor, que assiste, quedo e mudo de espanto, ao desfilar daquele corpo luminoso pelo firmamento, não deixa de racionalizar, depois, reconhecendo o tropo e convindo que também a palavra, a palavra-signo, é algo que nos deslumbra pelas suas virtualidades significativas ou pelo seu poder evocador.

 

  1. O poeta e o trabalho poético

            Lêem-se os poemas do Mostruário e o que, desde logo, interpela é a despromoção do Eu poético: o sujeito afasta-se do proscénio e reduz a reflexividade (ser objecto de si mesmo) a um tendencial grau zero, ora porque a primeira pessoa gramatical se esbate muito rapidamente na impessoalidade, como acontece no primeiro poema:

 

" a cratera do tempo cospe-me do absoluto / nota: / o poema tem em conta /a inoperância das emoções / num sujeito intemporal / tópicos: / todos os sentimentos nebulosos trazem castrações ao cérebro? / o tempo é a saliva do absoluto? / após um profundo sentimento resta uma cratera sentimental?"

 

ora porque se conceptualiza num plano de conjunto em que pouco mais vale, se é que vale, do que o sem-número de objectos que invoca, caso do poema da p. 45, "mesmo sitiado", já parcialmente citado, que é, aliás, emblemático do que o autor entende por poesia e em que dá uma belíssima definição do ofício de poetar:

 

"mesmo sitiado por um nevoeiro abundante / tenho um horizonte sem grades // nota: // poema duma catastrófica iminência // não devem ser usadas palavras como: // mel, açúcar, batata doce, canela // na formulação poética / as palavras serão indistintas / tanto poderão dizer: // hoje como amanhã // por exemplo: // ontem comprarei // ainda que não tenha havido / um cacho de bananas."

 

            A despromoção a que me venho referindo resulta também do distanciamento irónico do sujeito poético em relação a si mesmo, característica já presente em Texto Fixo em Página Móvel. No poema da p. 50, "sobre a água em brilho", disseca-se assim a angústia do poeta:

 

            "sobre a água em brilho vejo um universo insólito / Nota: / poema sobre a angústia do poeta / porquê? / porque na procura de um poema sólido / o poeta só encontrará / a evaporação dos líquidos / o trilho solene da aventura / no carril [carreiro?] duma formiguinha preta / o descalabro dum tinteiro espargido / com longos cristais de silêncio / o topónimo morto / não fará parte do mapeamento"

 

            Por um lado, o Eu cede mais uma vez lugar ao impessoal "o poeta"; por outro, a ironia transparece num enunciado que recorre ao vocabulário da física (os estados sólido, líquido e gasoso), para realçar a inútil pretensão de solidez no poema, quando tudo o que lhe serve de motivo é efémero, e resulta também da equiparação antitética da marcha da formiguinha no carreiro a uma aventura solene (oposição entre a pequenez do indivíduo e a grandeza da aventura humana?). Porém, as dificuldades próprias da criação poética surgem, a seguir, noutro registo: é o sentimento angustiante (descalabro, desgraça) da possível incapacidade para fazer sair do tinteiro (metonímia, por "escrita") o poema, que os cristais de silêncio aspergem (impasse criativo), ainda que – nota comum em AC – o resultado final seja positivo: na geografia do poeta, só a vida tem lugar e direito a topónimo. O poema da p. 71, "vivo numa lentidão sonhadora", parece retomar a temática da angústia do poeta e de uma certa má-consciência causada pelo seu pontual alheamento perante "a fome dos outros":

 

" vivo numa lentidão sonhadora // nota:// é um poema sem sol / as palavras devem despejar chuva / o poeta sofrer de um amor sonâmbulo / sem restauro / mesmo que invocando as ninfas // qualquer verdade dita em segredo / será comida pela fome dos outros / o poeta observará com agudeza / a palidez das formigas no carreiro // dirá, por exemplo: // canso-me de olhar e só vejo formigas / brancas com orelhas de burro! // por exemplo"

 

            Porém, esta despromoção é circunstancial e não susceptível de ser estendida à generalidade da actividade do poeta, que, por sua vez, entra num jogo de luz e sombra. Do lado luminoso, um elenco de definições de poesia e do ofício de poetar que merece menção pormenorizada:

  • "mesmo sitiado por um nevoeiro abundante / tenho um horizonte sem grades"[21];
  • "não sou poeta, sou um triturador de imagens"[22];
  • "sou um cavalo branco aos coices com as palavras"[23];
  • "sou um velejador de palavras"[24].

 

 

  1. Antes da poesia, a vida

 

            Poder-se-á perguntar: se esta poesia se debruça sobra a palavra, sobre a poeticidade, sobre o trabalho poético, sobrará alguma coisa para a vida? É evidente que a vida não se esgota na reflexão sobre a palavra e a poesia, como não se esgota na filosofia, e que as condições materiais da existência não têm que ficar de fora no processo criativo que, aliás, e em grande parte, elas determinam. Ora a poesia de Adão Contreiras – mesmo neste volume que, conforme já referi, retomando o rumo inicialmente seguido em Página Móvel, se afasta das vivências e do telurismo que Vítor Cardeira identificou em Ouro e Vinho[25] – não se esquece do real concreto, que ciclicamente retoma como que para nos lembrar que recusa encerrar-se em torre de marfim e que o seu percurso existencial é feito de mãos dadas com aqueles que trabalham, que sofrem e que lutam por um mundo que, sendo melhor, será também mais poético. É o que se pode ler, ainda que na linguagem cifrada que é necessariamente a da conotação, nestes passos:

 

  • "a quantidade de massa monetária em circulação / deve ser igual à quantidade de angústia / que sopra no quintal do vizinho"[26], "o sentido da vida está na relação com os outros"[27], "eu, o outro e o mundo, a trindade terrestre"[28] e "bastará ao poeta ser poeta / levantar as palavras do chão / sem fazer poeiras de mistérios / ter anseios lado a lado / com o vizinho"[29], textos que convocam a presença do Outro, lhe endereçam uma mensagem de solidariedade, e enunciam a recusa de uma poesia melancólica e emasculada;
  • "Falam de liberdade como quem oferece arroz-doce às criancinhas // [...] / prenhe de asas de borboletas / está o inferno //quando a liberdade está no meio / as pontas sofrem um estremeção // não há chocolate que não assombre a caridade"[30]. Impossível não se ler aqui a condenação de um discurso e de uma prática que se arvoram em paladinos do bem comum quando de facto promovem a manutenção do statu quo;
  • "gritos na alvorada acordam exércitos de sonhos"[31], que, sendo uma "fábula épica", proclama "a supremacia das Mãos / sobre o Destino" e, assim, rejeita a fatalidade;
  • e, enfim, estas magníficas declarações de amor à realidade: "todo o real é uma inundação dos sentidos"[32] e "nos subúrbios da manteiga cresci rente às ervas // nota: // ter-se-á   em conta neste poema / que o poeta jamais se alimentou  dos néctares / ou iguarias dos deuses"[33].

 

  1. O amor

            O tema do amor, se bem que presente, neste e nos anteriores volumes de poesia publicados por AC, não é, manifestamente, um dos seus leitmotivs. O seu afloramento, sempre fugaz, caracteriza-se por uma enorme discrição, como se esta manifestação da subjectividade mais íntima pudesse macular o rigor geométrico por que o poeta pretende pautar o seu génio criativo. Acontece, assim, que, ao verso "as aves sonham quando te beijo", sucede uma "nota", como chamada à ordem: "poema que não poderá ser lido / em dias de vendaval"[34]; no poema da p. 39, encontramos "o beijo esquecido no escuro [que] vira ode nos sôfregos peitos", isto é, a recordação do afago é imediatamente recuperada como matéria de criação poética, furtando-se a desenvolvimentos indiciadores de comprazimento sensual, o que o poema da p. 42 parece confirmar, ao dizer "abro-me ao insucesso se dando beijos levito". Mas o lirismo é também usado como instrumento de recuperação da experiência passada, como viático da memória. Assim, no poema da p. 44, "amor não é amo-te / mas a sombra / que a minha mão / fez sobre a tua // naquele dia / em que o silêncio / pairou sobre as nossas cabeças". Ele é também uma linguagem que se busca, num tempo que não lhe é propício: "num tempo matemático quais os algarismos do amor?"[35]. Ou uma oportunidade para afirmar a imprescindibilidade do amor, condição da própria vida: "empresto ao corpo um tempo de morte se digo amei..."[36]. Ou ainda um instante de contrição – " olvidando-te / fico com o murmúrio mínimo / que nos traz de degrau em degrau / à superfície do remorso"[37] – logo ultrapassado por um divertimento em torno da tristeza: "triste corpo triste eu / aqui estando neste estar", que não passa de "um poema sobre o acto de mastigar"[38].

            No meio destas ocorrências, todas elas contidas, irrompe, no poema da p. 73, " a pele do intelecto são as palavras", este apelo provocatório: "poupe energia nas células do cérebro / faça sexo com as palavras / comprando o dicionário dos vocábulos eróticos / "Erotoletring", logo seguido de outra alusão irónica à intimidade, na p. 80, "puro sol desabrochando": "para fazer amor / [o poeta] despe-se sem avisos / ao Ministério Público". Talvez esta contenção, pontualmente infringida, se deva ao facto de que "todos os versos / devem pairar sobre uma angústia / do verbo amar"[39], quer dizer, talvez esteja aqui em causa a sempre problemática transitividade do verbo (na sua consumação extralinguística), o que parece transparecer do delicado lirismo deste "título": "as lágrimas da minha pele soletram os nomes do teu corpo"[40], ou do poema da p. 112, que dispõe amor e poesia em colunas de deve e haver, perguntando-se, em termos de dialéctica contabilidade, "entre o amor e a poesia qual é a dívida"? Contrariando, porém, a disforia de alguns poemas, o da p. 126, "beijocas!... é o melhor para dar de vaia ao amor", afirma-se "[...] um poema sem ódio / nivelado pelo cheiro a alfazema /sem ondas que lancem para o interior dos amantes / sentimentos encortiçados // beijocas nos joelhos / beijocas nos umbigos / aqui e ali // beijocas sem atritos devastadores / nem mesmo pequenos socalcos / nas lágrimas // o poeta deve ouvir atento / com os ouvidos das válvulas / do coração / os ruídos do verbo amar: / eu amo mesmo com nevoeiro / tu amas mesmo com nevoeiro [...]"

 

  1. O tempo

            Vimos que o Tempo é o terceiro tema na ordem de frequência das ocorrências. Vindo a seguir a palavra e a amor, impunha-se averiguar de que maneira ele era vivido pelo poeta. Ora um sobrevoo rápido das referidas ocorrências mostra-nos, creio, que "a experiência mais fundamental da consciência humana"[41] não tem, para AC, as características que Mircéa Eliade identificou na percepção que dele tem o homo religiosus: heterogeneidade, descontinuidade, reversibilidade, recuperabilidade, circularidade, "espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos"[42]. Pelo contrário, o Tempo dos poemas deste Mostruário é "a duração temporal profana". Claro que, como o diz ainda Mircéa Eliade, o homem não religioso também "conhece uma certa descontinuidade e heterogeneidade do Tempo. Também para ele existe o tempo predominantemente monótono do trabalho – e o tempo dos regozijos e dos espectáculos, numa palavra o tempo festivo. [Há, contudo, uma diferença essencial: o homem religioso] conhece intervalos que são sagrados, que não participam da duração temporal que os precede e os segue, que têm uma estrutura de todo diferente e uma outra origem, porque é um tempo primordial, santificado pelos deuses e susceptível de ser tornado presente pela festa. Para um homem não-religioso esta qualidade trans-humana do tempo litúrgico é inacessível. Isto é o mesmo que dizer que para o homem não-religioso o Tempo não pode apresentar nem rotura nem mistério [...]"[43]

            O Mostruário abre com o verso "A cratera do tempo cospe-me do absoluto". Vejo neste verso inaugural a proclamação de que o poeta se sente projectado (cuspido) para a existência por esta entidade implacável ("o absoluto"), que reúne todas as características antagónicas do tempo sagrado, já que se apresenta como homogénea, contínua, irreversível, irrecuperável e linear. O poema da p. 77 aponta na mesma direcção quando diz "tristes palavras irrequietas / quando com elas querem / congelar o tempo" e se o da p. 84, "os poetas cristalizados", prescreve "deve-se começar por / libertar o tempo / dos cristais da memória" é apenas porque "os poetas cristalizados / não engravidam os nomes", o que significa que estamos no domínio da metáfora e da liberdade livre, onde tudo é possível. É ainda esta concepção do tempo avessa a qualquer tingimento religioso que transparece do poema da p. 109: "se a dimensão do tempo me abraça / porque não ir lentamente em direcção ao real?". Aqui, a explicitação do apego ao concreto é óbvia; é do tempo profano, do tempo histórico, do tempo da acção que se trata, e o poema da p. 123, "o vinho consubstancia no corpo a voz do eterno", com a referência algo jocosa à embriaguez, que nos leva a esquecer as humanas limitações, a começar pela da nossa finitude, vem lembrar que, se "a voz do eterno" é "consubstanciada" "no corpo", o agente dessa consubstanciação é o vinho, a embriaguez, a ilusão. Há, de facto, um deus que por aqui passa, mas esse deus é de fábula e por Diónisos foi conhecido dos antigos.

 

            Fechado o périplo crítico, tem a palavra o leitor. E tem-na no sentido mais possessivo, porque Adão Contreiras no-la dá, com a sua irrequietude, a sua materialidade, o seu suor. Para que a fruamos.

 

 

Fernando Martins

 

[1] Greimas, A.J., "Elementos para uma teoria da interpretação da narrativa mítica", in "Novas perspectivas em comunicação", n.º 1, selecção de ensaios da revista "Communications", Editora Vozes, Lda, Petrópolis, Brasil, 1971

 

[2] "[...] ambivalência intrínseca a toda a modernidade poética – reino de clarões e de sombras, das vozes da expansão e do retraimento."Mendes, Ana Paula Coutinho, "A poesia em espiral", texto introdutório da Antologia Poética, de António Ramos Rosa, Dom Quixote, Porto, 2001, p. 25

[3] Roman Jakobson diria: "Le développement d'un discours peut se faire le long de deux lignes sémantiques différentes: un thème (topic) en amène un autre soit par similarité soit par contiguïté. Le mieux serait sans doute de parler de procès métaphorique dans le premier cas et de procès métonymique dans le second, puisqu'ils trouvent leur expression la plus condensée, l'un dans la métaphore, l'autre dans la métonymie." Jakobson, Roman, Essais de linguistique générale, Editions de Minuit, 1963, p.61

[4] p. 64. Não tendo título, os poemas são referenciados, neste texto, pelo seu primeiro verso, ou pelas primeiras palavras do primeiro verso, e pelo número da página em que se encontram. Quando a citação parte do 1º verso do poema, este é referenciado apenas pelo número da página.

[5] p. 40

[6] p. 60, "não sou poeta, sou um triturador de imagens"

[7] p. 94, "sou um velejador de palavras"

[8] p. 75

[9] Crespo, Nuno, "A ousadia da visão", Ípsilon, Público, 24/07/2015, p. 28

[10] Considerando apenas a forma singular e excluindo, por conseguinte, todas as ocorrências de "poemas" ("para poemas simples", "para poemas complexos",...) no início de cada poema.

[11] p. 40

[12] p. 56, "quisera que no longo percurso da voz o abraço dado ao «eu»"

[13] p. 60, "não sou poeta, sou um triturador de imagens"

[14] p. 62, "sou um cavalo branco aos coices com as palavras"

[15] p. 77

[16] p. 83, "a poesia é para todos"

[17] p. 85

[18] Dicionário das Ciências da Linguagem, Dom Quixote, Lx.ª, 1977, p. 128.

[19] p. 137, "os berços selvagens criam papoilas no coração"

[20] p. 66

[21] p. 45

[22] p. 60

[23] p. 62

[24] p. 94

[25] Ver Prefácio a Ouro e Vinho

[26] p. 38

[27] p. 97

[28] p. 99

[29] p. 135, "tenho cansaços mentais onde navegam poeiras do eterno"

[30] p. 67

[31] p. 70

[32] p. 130

[33] p. 133

[34] p. 30

[35] p. 51

[36] p. 61

[37] p. 74, "fico na varanda emprestado ao vento"

[38] p. 76

[39] p. 84 "os poetas cristalizados"

[40] p. 107

[41] Oriol, T. e Mury, G. La Connaissance, Didier, Paris, 1968, p. 433

[42] Eliade, Mircea, O Sagrado e o Profano - a essência das religiões, Livros do Brasil, Lx.ª, s/d., p. 82

[43] Ibidem, p. 83