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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

SUBMISSÃO

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No teatro, o encenador escolhe (podendo) o actor que melhor possa encarnar a personagem da peça a levar à cena; no cinema, o mesmo se passará com o realizador. O actor escolhido, num caso como no outro, poderá nada ter em comum com a personagem a quem vai emprestar a sua voz, a sua emoção e a sua expressão corporal, podendo até dar-se o caso de ter uma visão do mundo e uma filosofia de vida em tudo opostas às da personagem em questão. Do mesmo modo, o encenador e o realizador não têm necessariamente que simpatizar com a personagem da peça e com as suas opiniões ou atitudes – outros factores serão determinantes da escolha que fazem: qualidade intrínseca do texto, oportunidade temporal, popularidade do tema e perspectiva de facturação. E no romance, na novela, no conto? Claro que o autor tem, em princípio, total liberdade de escolha dos temas, do tempo e do lugar da acção, da intriga, das personagens, da "ciência" do seu narrador e do seu grau de participação na narrativa. E, não menos claro, o autor, que se presume (sem ironia) um cidadão honesto, pode muito bem pôr-se na pele de um malfeitor da pior espécie e confiar-lhe o foco narrativo da sua ficção. Pode mesmo fazê-lo tão eximiamente que os seus leitores suspeitarão da sua eventual adesão àquele modo de vida. Mas é mais do que provável que os leitores estarão, nesse caso, enganados. O autor apenas deu expressão literária a construções mentais que, sem isso, não passariam de divagações votadas ao desaparecimento. Suponho que, até aqui, os meus leitores concordarão comigo. Pretendo, contudo, levar a minha reflexão um pouco mais além. Imagine-se um autor que, sistematicamente, isto é, em romances sucessivos, urde intrigas em que o narrador dá, de determinado grupo social, de determinada comunidade, uma imagem susceptível de causar inquietação, sendo que tal imagem reproduz, aliás, os mesmíssimos traços que estão já presentes na imagética corrente da comunicação social e que caracterizam, desde há muito, o discurso do senso comum; imagine-se que esse autor constrói sistematicamente personagens femininas, se não relativamente frívolas, pelo menos suficientemente ligeiras para darem a franca impressão de existirem apenas para satisfazer o instinto reprodutor masculino; imagine-se ainda que o autor em questão confia a narração das suas histórias a narradores de primeira pessoa, induzindo a sensação de com eles se identificar, sensação confirmada por declarações do próprio autor; imagine-se, enfim, que esses narradores expendem opiniões que reforçam a ideia já veiculada pelas imagens atrás referidas, isto é: que manifestam preconceitos étnicos e culturais, sexistas e homofóbicos. Poder-se-á dizer que o autor não tem que limitar a um só romance, a uma só novela, a um só conto a experiência da "entrega" da sua história a um narrador desqualificado. É verdade. Pode repetir a sua experiência por quantos quiser. Mas lá que dá que pensar... dá.

 

Como já se percebeu, estou a falar de Michel Houellebecq e do seu último romance. Ressalvando que apenas li os dois últimos romances deste autor – A Possibilidade de uma Ilha e Submissão –, numa breve consulta à Wikipédia constato que, se tivesse lido os outros, sobretudo Les Particules Elémentaires, a minha opinião apenas sairia reforçada.

 

Submissão é um romance com mérito diegético, isto é, é uma história bem contada, bem construída, apta a convocar a atenção do leitor, repleta de condimentos próprios para estimular o interesse e que, exceptuando a particularidade de se situar num tempo que ainda não chegou (2022), respeita muito convenientemente, e apesar dessa inverosimilhança fundamental, os constrangimentos da verosimilhança.

 

Do ponto de vista do estilo, a escrita de Houellebecq é do género despojado. Visivelmente, não é o que o autor privilegia na sua prática literária, e não é por aí que eu lhe assacaria especial acusação. Para recorrer a uma nomenclatura dicotómica que aprendi numa entrevista ao escritor espanhol Carlos Castán (Ípsilon de 3/7/2015), "há escritores do como e outros do quê". Houellebecq faz certamente parte dos segundos, o que não julgo ser motivo de vergonha, ainda que, pessoalmente, sinta uma especial admiração pelos cultores dos recursos da língua. Há, ainda assim, um pormenor da escrita de Houellebecq suscitador de certo incómodo. Trata-se do facto de o autor, não sempre, mas com relativa frequência, alongar períodos que deveriam ser subdivididos. Atente-se neste exemplo: "Acordei às quatro horas da manhã, depois do telefonema da Myriam acabara de ler En Ménage, o livro era sem dúvida uma obra-prima, tinha dormido pouco mais que três horas." Julgo evidente que há aqui quatro ideias bem marcadas, todas elas perfeitamente expressas e relativamente independentes, sendo que as duas últimas poderiam, eventualmente, ser coordenadas: "Acordei às quatro horas da manhã. Depois do telefonema da Myriam, acabara de ler En Ménage. O livro era sem dúvida uma obra-prima e eu tinha dormido pouco mais que três horas." Ainda tentei encontrar em Saramago algo de semelhante, mas parece-me que não: a pontuação de Saramago, tirando a que está relacionada com a modalidade de discurso directo ou com a interrogação, é uma pontuação subordinada às exigências da lógica sintáctica, e os desvios referidos foram transformados em norma pelo escritor, pelo que já não se estranha; em Houellebecq, aquela estruturação surge inopinadamente aqui e ali, sem carácter sistemático, sem que se possa associá-la a um particular e momentâneo estado de espírito. Esta ocorrência aparentemente não motivada e errática funciona, por isso, como ruído.

 

Vamos, porém, a alguns pormenores da história.

 

O narrador de Submissão, François, começa por se apresentar como tendo-se doutorado com uma tese sobre Huysmans, autor que comentará ao longo da narrativa e que lhe servirá de detonador ou pretexto para desenvolvimentos em que avultam as considerações sobre as mulheres. Reflectindo sobre a mudança que esse doutoramento determina na sua vida - fim da juventude e entrada na vida profissional - confessa que essa mudança não lhe "agradava absolutamente nada". Tece, depois, considerações valorativas sobre as artes e, em particular, sobre a especificidade da literatura, "arte maior de um Ocidente que está a acabar diante dos nossos olhos". Nos capítulos seguintes acrescenta-se ao retrato do narrador o traço curto e grosso da sua visão instrumental da mulher – ser subalterno e sempre sujeito à valoração masculina –, introduz-se o tópico da hegemonia da comunidade islâmica e dos pró-muçulmanos em França, debitam-se considerações de índole machista ("nunca me convenci de que seja uma boa ideia as mulheres poderem votar, estudar tal como os homens, aceder às mesmas profissões, etc.") e faz-se a apologia do patriarcado.

 

A temática da eleição presidencial torna-se prevalecente na narrativa, que refere confrontos étnicos em pleno Paris e o receio de uma guerra civil. Acontece a primeira volta da eleição. A Frente Nacional conquista o esperado 1.º lugar, com 34,1%, mas, inesperadamente, o PS é ultrapassado pela Fraternidade Muçulmana (FM). Consciente de que a realidade político-institucional francesa vai sofrer profundas transformações, François estranha a calma despreocupação dos colegas. Não é o caso de Marie-Françoise cujo marido, funcionário da DGSI, sabe das difíceis negociações entre o PS e a Fraternidade. Sucintamente, os dois partidos concordam em quase tudo, excepto no domínio do ensino, porque a FM pretende que todas as crianças francesas tenham ensino islâmico, que os professores sejam muçulmanos e que os programas respeitem os ensinamentos do Corão. Apesar disso, o funcionário acredita que acabarão por chegar a acordo, na base do "desdobramento escolar", a saber: rede pública de ensino laico e rede privada de ensino islâmico, sendo que a primeira, privada de recursos, seria a prazo absorvida pela segunda, mesmo sem recurso a contratos de asociação (...). Pelo sim pelo não, François transfere a sua conta para um banco estrangeiro, o Barclays. A problemática da eleição virá a afectar consideravelmente a própria vida privada do narrador. Com efeito, após nova reflexão sobre Huysmans e a sua categorização das mulheres, a vida monástica, a sua própria degradação física, â medida que a idade avança, e a líbido como sua única fonte de prazer, François recebe Myriam, a jovem namorada judia, em sua casa. Entre duas cenas de sexo, Myriam informa-o de que vai partir para Israel com os pais, o que inquieta François. No mesmo dia, ele encontra a sua faculdade fechada e é um vigilante senegalês seu amigo que lhe afiança que não abrirá nas próximas semanas.

 

Confirmada a nova configuração política da França, François constata que a única mudança significativa é o facto de as mulheres terem todas passado a usar calças com bata sobreposta. Todavia, algum tempo depois, é informado de que não poderá continuar a leccionar numa Sorbonne islamizada. Opta por se aposentar, contrariamente ao seu colega Steve, que se convertera e até o informa de que vai ter uma segunda esposa. O recurso a acompanhantes, inclusive aos pares, não se revela remédio eficaz para o tédio que progressivamente conquista François. A situação política interna revela-se auspiciosa, com o decréscimo da delinquência e do desemprego, se bem que este último factor se deva à saída das mulheres do mercado de trabalho. No ensino, verifica-se uma redução da escolaridade obrigatória para os doze anos de idade – escolaridade primária. Desocupado, entediado, socialmente isolado e doente, François pensa no suicídio. Neste estado de espírito, produz declarações como esta: "A humanidade não me interessava, até me desagradava muito, não considerava de todo os humanos meus irmãos, e ainda menos se tivesse em conta uma fracção mais restrita da humanidade, por exemplo os meus compatriotas ou os meus antigos colegas" (p. 183).

 

Robert Rediger convida François a reintegrar o corpo docente da nova Sorbonne, agora dirigida por si. Sendo condição para tal que François se converta, os dois homens entabulam uma demorada conversa sobre a crença em Deus, o ateísmo e as diferenças entre o cristianismo e o islamismo, passando pela reiterada ideia da decadência da Europa e da submissão da mulher ao homem e deste a Deus, que caracteriza o islamismo e lhe confere a capacidade de proporcionar o máximo de felicidade humana, o que faz dele uma religião superior. François vai a Bruxelas, no rasto de Huysmans. Também na Bélgica os muçulmanos tinham chegado ao poder. Em conversa com Rediger, toma conhecimento de que Líbano, Egipto, Líbia e Síria vão integrar a União Europeia, mas é sobretudo a poligamia que os ocupa. François confessa que, se não tinha grandes expectativas quanto ao futuro da sua vida intelectual, talvez pudesse vir a interessar-se por "outra coisa", que se presume ser o casamento com várias mulheres.

 

O último capítulo do romance é redigido no condicional, mas presume-se que o desenrolar dos acontecimentos aqui enunciado como possibilidade tem fortes probabilidades de se actualizar conforme previsto, ou seja: François aceita o lugar de professor na nova Sorbonne, converte-se ao Islão e sonha com as alunas que virá a desposar.

 

Concluído este sobrevoo da narrativa, impõe-se um apanhado do que, descontada a trama romanesca, aflora como substância ideológica do romance. Deixarei de lado as ocorrências numerosas, cruas e sugestivas das cenas de sexo, bem como o medo de crescer, que, confessado, fica bem à personagem, mas não augura sobre ela nada de muito positivo, o que é confirmado pelo facto de François discutir permanentemente a situação política, reconhecer que o futuro do seu país está dependente do resultado eleitoral, mas em nenhum momento encarar sequer a hipótese de exercer o seu direito de voto. O principal leitmotiv de Submissão é mesmo o do ocaso do Ocidente, presente desde o capítulo inicial e que virá a ser complementado com o da islamização imparável da sociedade francesa e da sociedade europeia, em geral. As considerações de índole machista e a apologia do patriarcado são apenas duas das manifestações mais evidentes de uma assimilação cultural, conseguida graças à apatia e passividade dos Franceses.

 

Neste contexto, a referência à nacionalidade do vigilante senegalês da Sorbonne tende a conferir ao quadro demográfico francês um exotismo capaz de infundir o temor da invasão por estrangeiros, sobretudo muçulmanos e negros. Paralelamente, a relativização recorrente do valor ético e civilizacional do Ocidente cristão e do Islão tende a acentuar a ideia da progressiva aculturação do primeiro a favor do segundo, e a efabulação em torno das vitórias eleitorais sucessivas dos partidos islâmicos enfatiza a ideia da invasão da Europa.

 

Redigido num estilo neutro e avesso a marcas de emotividade, como se a dupla narrador/autor estivesse efectivamente rendida à hegemonia do Islão, Submissão corrobora claramente a ideia amplamente difundida no senso comum da sociedade francesa de que o país está a perder a sua identidade, a favor da cultura muçulmana, quando, na realidade, esta comunidade representa uma pequena parcela das populações dos diferentes países europeus e os autóctones islamizados não passam de uma ínfima minoria. Para quem é regularmente submetido à provação dos discursos xenófobos, Submissão não passa de um trombone desta sinistra orquestra.

 

Voltando à comparação com o encenador e o realizador, Houellebecq não tem necessariamente que simpatizar com a sua personagem: a oportunidade temporal, a "popularidade" do tema e a perspectiva de facturação poderão ter sido factores determinantes da escolha. Infelizmente, a sua escolha leva água a um moinho que mói os grãos da intolerância e faz parelha com a moedura da Frente Nacional.