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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Contos por Cordas, de Julieta Lima − um hino à vida

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Quando, em Agosto de 2013, tive a oportunidade de ler Porta sim Porta não, de Julieta Lima, descobri uma escritora de fibra, de pés assentes na terra, na sua terra de Olhão, e senhora de um instrumento linguístico exemplar. Escrevi, então:

 

"Do ponto de vista da expressão, Julieta Lima revela notável mestria, para começar, no manuseio do sociolecto olhanense (que falta faz um glossário!). Contrariamente ao que por vezes acontece, o falar típico de Olhão não é aqui macaqueado com intenção anedótica, nem sequer como adorno ou ingrediente linguístico para consecução da cor local. Não. A imbricação entre linguajar, cenários naturais, caracteres das personagens e natureza das acções é tal que todos estes elementos se implicam mutuamente. Por outro lado, a construção dos diálogos e a sua articulação com o discurso do narrador resultam numa toada constante, sem quebras, e numa indesmentível impressão de autenticidade, potenciada pela propriedade da linguagem – qualidades que terão ficado patentes em algumas das citações semeadas neste texto e que justificam uma referência a este livro em qualquer vindoura História da Literatura Portuguesa."  (http://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt/35749.html)

 

Três anos e meio volvidos, vêm agora a lume os Contos por Cordas, a firmar-me nas convicções da altura, mas também a demonstrar que a autora, no volume inaugural da sua ficção (já muito antes publicara No Orvalho das Horas, livro de poesia), tão "focada" nas gentes do mar, podia, com idêntica agilidade, dar vida a personagens de outros meios, ainda que sempre dentro do perímetro dos concelhos de Olhão, Faro e Loulé e, na maioria dos casos, senhores do tal sociolecto inconfundível, caracterizado por inúmeros regionalismos e corruptelas, quer do português normativo quer dos próprios regionalismos[i]. Como é óbvio, este glossário tão específico da região, e mesmo da sub-região, confere à escrita de Julieta Lima um colorido que desempenha papel de relevo no clima geral em que se inscreve a acção das suas personagens, na medida em que o adensa, lhe imprime autenticidade e transporta o leitor para um universo que já não é exactamente aquele a que está habituado.

 

O manuseio da língua (aspecto inquestionavelmente importante para se aferir a qualidade de uma escrita, sendo que a de Julieta Lima evidencia uma exímia utilizadora de um português castigado, para além de fortemente subsidiário, como ficou dito, do falar regional), não é o único aspecto a considerar num acervo de dezassete contos de temáticas variadas que não fogem, no entanto, ao enquadramento local. O que sobreleva, em quase todos eles, e confere ao conjunto grande unidade, é o gosto pela vida, mesmo se o avançar da idade pode fazer do corpo uma causa de sofrimento.

 

É o que se vê no conto "Responso da velha". Quando parece que já nada é possível, a personagem não deixa de assinalar que as perdas da idade são compensadas com um "ver mais": "Eu, por vezes, esqueço-me que tenho voz. Chamo o cão. Afinal a minha voz é a mesma, o sangue é o mesmo, porém, descubro que os meus olhos enfraquecidos passaram a ver mais." (p. 117)

 

"A cirurgia", mostra-nos um filho interesseiro a sujeitar o pai a uma vasectomia, não fosse o ancião "arranjar-lhe irmãozinhos" (p. 33), porque "era pacato, mas que porra, desde que a empregada brasileira chegara parecia-lhe ter perdido a idade. Ouvia-a cantar todo o santo dia, era novamente mimado na limpeza das roupas, nos cozinhados sempre apetitosos e um dia deu com ele a ser homem outra vez, nos braços dela" (p. 31).

 

Em "Anátema", Guiomar, viúva pela segunda vez, é dissuadida pela irmã Solange, mas igualmente pela sua experiência pessoal penosa, de renovar a experiência do matrimónio. A determinação de não casar dura algum tempo... até à chegada do David. Com a chegada do pescador de Matosinhos, a vontade de viver plenamente a vida, contra tudo e contra todos os que a isso se opõem, faz-se mais forte do que o conforto da renúncia.

 

Nem a Dona Morta de "O funeral", amortalhada no seu caixão, resiste ao vislumbre de Armando, o amante com quem almeja casar e cuja presença na igreja, acompanhado da mulher e dos filhos, desencadeia uma violenta arruaça do mulherio: "Vou ressuscitar, não posso estar morta com ele aqui. Podemos apanhar amanhã o Rápido para Lisboa, depois damos o salto para Paris...

"De repente o anjo avermelhou-se indignado e colocou as suas mãos piedosas na minha fronte, afastando as moscas, enquanto murmurava em tom celestial «Está o enterro enfegado e a barreca armada.» E começaram os insultos a erguer-se como o Levante na barra." (p. 60)

 

"O baile", em seis páginas de assinalável fôlego narrativo, sempre no mesmo tom e registo[ii], constrói uma Maria do Carmo vibrante de vida e indiferente ao espelho que "lhe devolvia uma beleza escondida não se sabe onde, pois o reflexo era o de uma velha cómica, com cabelos de palha [mas de cujos] olhinhos azuis, encolhidos entre miríades de rugas, irradiava o brilho da liberdade que lhe vivia na alma" (p. 100).

 

Igual determinação a de "O bancário", velho e demente, que prossegue incansavelmente a sua tarefa contabilística, até encontrar o tostão em falta "numa das fichas amarelentas" (p. 109).

 

Até a amendoeira Fraldisqueira, "amendoeira louletana, com linfa de moira e de romana, que logrou arregaçar a raiz e convencer o inconvencível vento a levá-la onde quis" (p. 121), vítima daquele urbanismo desenfreado de que o Algarve é pródigo (denunciado neste conto e em "Pica Chouriças"), confessa, no momento em que o "grande balde mecânico" se dirige para ela: "Tive pouco tempo, mas chegou para perceber as conversas com o vento e os astros sobre a morte e o tempo." (p. 139)

 

Porém, Julieta Lima percorre outros caminhos, afastando-se aqui e ali do código regionalista. Em "Sete forcas", há uma incursão pelo fantástico e em "Pica Chouriças", pelo surrealismo. "Consoada" é a emoção feita conto, ainda assim com alguma ironia e visão crítica do progresso à mistura. "Um presépio de prata" denuncia a mentira e a hipocrisia de uma vida que mantém ritos destituídos da verdade que presidira à sua fundação. "Xerazade" esclarece o que está na origem de As Mil e Uma Noites, repondo a verdade dos factos (!...): "começo por contar à minha maneira a Xerazade, porque é uma história infame" (p. 77). "Carta a um homem do mar" é um poema de um lirismo plangente: "Quantas vezes vi eu a noite partir-se em estilhaços e a luz apagar-se na sombra das tuas idas." (p. 43). "(A)Migo" convoca um olhar condolente para com a sorte de um pobre cão: "Chorei, ai se chorei no meu cesto, um choro de cão feito de silêncio e resignação", (p. 40). Trata-se de uma temática recorrente em Julieta Lima: já em Porta sim, Porta não, no conto "Dona Bibas", a autora significara o seu respeito enternecido pelos animais concedendo a voz da narração à cadela Formiga. No caso, é a cadela quem propicia a exteriorização dos sentimentos mais nobres dos homens; Migo, porém, é abatido, porque se tornara incómodo para a família. Impossível, lendo "Migo", não recordarmos "Nero" e demais Bichos, de Miguel Torga, ou a raposa Salta-Pocinhas, de Aquilino. Em todos, o mesmo respeito por todos os seres que partilham com o homem o pedacito de universo a que se chama Terra. E se é certo que não se faz necessariamente boa literatura com bons sentimentos, nada autoriza a dizer que é com os maus que ela se faz[iii].

 

É frequente a despromoção das realizações literárias ancoradas num tempo e num espaço definidos sem ambiguidade. Dizem-se datadas, de âmbito restrito, distantes da universalidade que caracterizaria os grandes monumentos literários. E, contudo, local e global, particular e geral não se implicarão mutuamente? O pescador olhanense que labuta pela sobrevivência não será apenas a versão que nos é mais familiar do pescador de todas as eras e de todos os lugares − do Bangladesh à Lapónia − ou, muito simplesmente, a versão local do homem tout court, do homem que vive, que luta e que sofre? Qualquer um deles poderia dizer, com Terêncio: "sou um homem: nada do que é humano me é estranho".

 

É esta humanidade que Contos por Cordas nos traz, na senda de Aquilino. No mestre, como em Julieta Lima, "o amor pagão das coisas naturais, a alegria de abrir os sentidos humanos à vida sobre a terra, dentro dos limites da nossa existência carnal"[iv], fazem da literatura um hino exaltante à vida.

 

25 de Fevereiro de 2017

Fernando Martins

 

[i] Alguns exemplos: "charengar" por "charingar", "geneta" por "gineta", com abertura da vogal pré-tónica; "aquile" por "aquilo", "isse" por "isso", "amanhade" por "amanhado", "fuse" por "fuso", com ensurdecimento da pós-tónica; "desburacar" por "esburacar", com adição protética; "baineta" por "baioneta", com síncope vocálica; "desolhô-me", por "desolhou-me", "pêxe" por "peixe", com monotongação do ditongo.

 

[ii] A lembrar o conto "Blacamán o Bom, vendedor de milagres" de Gabriel García Márquez, in A Incrível e Triste História de Cândida Eréndira e da Sua Avó Desalmada, Contos Completos, D. Quixote

 

[iii] "J'ai écrit et je suis prêt à récrire encore ceci qui me paraît d'une évidente vérité: «C'est avec les beaux sentiments qu'on fait de la mauvaise littérature.» Je n'ai jamais dit, ni pensé, qu'on ne faisait de la bonne littérature qu'avec les mauvais sentiments." André Gide, Journal, Gallimard

 

[iv] António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora

 

A Caverna de Deus, de Fernando Esteves Pinto - um belo romance (com fragilidades)

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 "nas mãos dele sou como um livro que um crítico rancoroso recenseia com o objectivo de perspectivar somente os defeitos, desprezando aquelas páginas em que a nossa vida foi espantosa e excitante." A Caverna de Deus, p. 86

 

 

 

 

 

A leitura do último romance de Fernando Esteves Pinto, galardoado com o Prémio Literário Cidade de Almada, vem confirmar qualidades inegáveis do autor − grande capacidade inventiva, mestria narrativa bem evidente no agenciamento dos episódios e dos diálogos, marcada propensão para o desvendamento dos esconsos do psiquismo, estilo frequentemente judicativo −, ao mesmo tempo que reedita uma característica menos abonatória da sua escrita, a saber, uma escolha vocabular aqui e ali menos pertinente e uma sintaxe intricada, algumas vezes responsável por uma deficiente legibilidade da mensagem. Nesta abordagem, certamente mais rápida do que seria desejável, tentarei "pespectivar" quer as qualidades quer o que se me afigura como defeitos, sem rancores, que nada justificaria, mas também não cedendo ao panegírico fácil que a amizade poderia induzir, e tendo presente que o exercício a que me entrego, mais do que prática gratuita de fórmulas vazias, procura, ainda que modestamente, cumprir a função pedagógica que julgo cometida à crítica, através da análise imanente do texto, sem, contudo, esquecer que a criação literária é sempre manifestação de uma experiência de vida num espaço e num tempo que inevitavelmente marcam o autor.

 

N' A Caverna de Deus, o artifício narrativo da viagem de comboio serve para colocar frente a frente duas personagens atormentadas, se bem que em graus diferentes − Constança e o próprio narrador. Abre-se aqui um parêntesis para uma divagação a requerer alguma indulgência de quem a lê: admitindo-se o postulado de que a ficção e a poesia de Fernando Esteves Pinto constituem, para lá da variedade dos enunciados diegéticos ou das formulações poéticas, um prolongado monólogo interior do escritor e poeta, isto é, se aceitarmos como verdadeira a asserção de que, nas personagens por si criadas como na sua poesia, o autor projecta as suas próprias interrogações e inquietações, no intento de chegar ao conhecimento de si mesmo (postulado que me atrevo a escorar no conhecimento de um "corpus" já com alguma amplitude), estas duas personagens, narrador e Constança, surgem-nos, em certa medida, como alter ego do autor. Idêntico processo estará na génese de numerosas obras literárias, é certo, mas a idiossincrasia do criador e, nomeadamente, um certo grau de ensimesmamento serão factores determinantes deste "investimento" . A observação é, porventura, pouco conveniente e de discutível pertinência, ou não saíssem todas as personagens das entranhas de quem as cria, no dizer de Urbano Tavares Rodrigues. Há, no entanto, na obra de Fernando Esteves Pinto, marcas significativas de um relativo divórcio em relação a um quotidiano sentido como banal, nada entusiasmante e, por vezes, desesperante e deprimente. Até o nome Constança, cognato de "constância", sugere a permanência, a imutabilidade − aqui, de um quadro mental depressivo: "ela era uma mulher afectada pela vida e que encontrara na escrita as respostas que lhe foram negadas pelas pessoas com quem se relacionava. E a escrita o que é que fez dela? Jogou-a para fora da realidade. A escrita que ela tanto amava tinha sido a causa principal das suas crises existenciais" (p. 21). Acresce que os desabafos de Constança sobre poetas que ela não tem em boa conta parecem ecoar certas polémicas protagonizadas pelo autor: "pior do que isto só aquelas porcarias de imitação dos que se julgam grandes poetas, quando na verdade não passam de bons alunos de poesia, tão entretidos que ficam a remexer as cinzas do Rimbaud com os ossinhos do cérebro. [...] os sacanas vão aos bolsos do Verlaine e sacam à toa os versos do gajo...", pp. 22 e 23. Parêntesis fechado.

 

O tempo da viagem é preenchido com um diálogo pautado por múltiplas referências culturais, em que Constança e narrador passam em revista os seus fantasmas, as suas obsessões, as suas contradições, tudo isto bem amassado em considerações de índole filosófica: "Ah, eu sei o que está a pensar: que estou metida numa tragédia. Estamos todos metidos numa tragédia. [...] a tragédia está no topo da condição humana" (p. 13).

 

Uma espécie de mise em abîme confere a Constança, um papel que se assemelha ao do narrador, uma vez que grande parte da narrativa é ocupada com o relato que ela faz da sua experiência pessoal, acrescido do facto de ela própria ser escritora e de haver aqui e ali transcrições do livro Identidade, de que é autora. Temos, assim, uma narrativa a que chamaremos de primeiro grau, que é a do narrador propriamente dito, artista plástico autodidacta, na qual se inscreve a da personagem Constança, escritora, de quem o narrador diz: "Sei quando procuro apenas divertimento. Sinto quando uma mulher possui algo mais do que as características que me levam a julgá-la como um passatempo. Na verdade, desejava conhecer aquela mulher" (p. 18). O romance − romance de personagem e marcadamente psicológico, ponto assente desde já − é, na verdade, muito subsidiário do processo de conhecimento daquela personagem, isto é, constrói-se à medida que a personagem se dá a conhecer, e é quase só pelo que diz, quase nada pelo que faz, que Constança se revela. Todavia, o conhecimento adquire no decorrer da narrativa uma qualidade e uma importância que ultrapassam o simples processo de acumulação de informação a respeito de alguém.

 

É no capítulo oitavo − significativamente, num conjunto de dezasseis − que, a propósito da interrupção da gravidez a que Constança é sujeita por imposição de outro artista plástico, Luciano, seu companheiro, a expressão "caverna de Deus" surge pela primeira vez. Associada a três outros termos − cova, Deus e vagina − a expressão é enigmática e ambígua, mas o narrador ajuda-nos a identificá-la, por uma lado, na anatomia feminina, com o acesso ao espaço natural da criação, da génese da vida, e, por outro lado, metaforicamente, com a interioridade, com o recesso mais íntimo do ser e da sua individualidade. Assim, a conotação sexual da "caverna" sofre a concorrência da acepção mais neutra, se bem que de alcance não menos profundo, de acesso ao conhecimento do outro, entendido este conhecimento como processo de desvendamento, de intrusão e, no limite, de violação do último reduto do eu alheio, isto é, de confiscação ou captura da alteridade: "[...] nem sequer eu sei esclarecer muito bem a definição que o Luciano atribuía à 'Caverna de Deus' porque isso contempla uma intimidade excepcional que nenhum de nós pode adquirir neste momento", p. 125. Este me parece ser o cerne da narrativa e, por assim dizer, o seu móbil, funcionando a efabulação como "revelador", na acepção da fotografia tradicional, isto é, como banho que faz aparecer a imagem no papel impressionável. Claro que, sem efabulação, não haveria romance; apenas, talvez, mais um tratado sobre os meandros do nosso psiquismo. Mas, justamente, Fernando Esteves Pinto, cujas qualidades de ficcionista têm créditos garantidos, parece não prescindir dos seus dotes de pensador dado às coisas da psicologia e da filosofia.

 

Tortuosa, talvez, esta explicação. É que lhe falta uma referência capital: a arte. A relação de Luciano com Constança é mediada pela arte, ou, melhor, pela concepção particular que Luciano dela tem e que se poderia qualificar de "totalitária". Luciano submete a sua vida, a de Constança e a dos outros às "exigências" que ele endossa à expressão artística. Invertendo os termos da aristotélica imitação da natureza, ele pretende fazer da natureza uma imitação da arte ("A vida é a metáfora da máquina fotográfica", p. 120; "[...] parecera a Constança que a sua gravidez fazia parte dum processo criativo, experimental [...]", p. 121) e reclama o direito a usar a natureza como matéria-prima. O romance perfila-se, pois, como drama existencial em que a vida é sacrificada aos ditames de uma arte erigida em religião, instrumento do processo de conhecimento e da concomitante anulação da individualidade do outro, concepção a que parece não ser alheio o conhecimento pessoal que o autor teve do pintor austríaco Otto Muehl, citado no texto e de quem uma rápida consulta à Wikipédia permite ficar a conhecer pormenores pouco edificantes.

 

Voltando à estrutura do romance, é, naturalmente, na narrativa de primeiro grau que o narrador encaixa as suas próprias evocações experienciais, a começar pelas referentes à sua amizade com Harry, artista plástico britânico, mas também as da sua adolescência no seio de uma família modesta. E são precisamente estas últimas − as recordações da relação conflituosa com seu pai e da afeição pela mãe, sujeita à provação de uma colostomia e a quem o narrador tributa cuidados afectuosos − as que calam mais fundo (passe o cliché) na sensibilidade do leitor. Com efeito, é como se o discurso do narrador se desprendesse nelas da frequente urdidura etérea para se atardar antes na consideração do palpável. É neste criador descido à Terra que se sente a vibração de uma verdade sem sofisma, afastada a preocupação de um esquadrinhamento psicológico à outrance.

 

Finalmente, e para dar cumprimento ao que me propus fazer, uma referência ao que A Caverna de Deus contém de menos positivo.

 

Um romance é um universo de palavras, um edifício verbal, um microcosmo de signos, e ao romancista se exige que se comporte como um arquitecto preocupado com a viabilidade da sua construção, isto é, com a sua "legibilidade", com a sua possibilidade interpretativa, por muito "aberto", na acepção de Eco, que possa ser. N' A Caverna de Deus, cuja estrutura ficcional revela grande perícia, há algumas gralhas, deslizes sintácticos, uma adjectivação por vezes discutível, casos de duvidosa propriedade e de superfluidade vocabular que poderiam (deveriam!) ter sido evitados, mediante uma revisão que se não limitasse, aparentemente, à correcção ortográfica. Destas ocorrências se dará conta ao autor, na esperança de que possam servir numa eventual reedição.

 

Romance de um tempo marcado pela instabilidade, pela incerteza e pelo questionamento, A Caverna de Deus expõe uma consciência em crise, debatendo-se com a falta de perspectivas, que julgo poder atribuir à fracção intelectual, particularmente sensível às vicissitudes da existência, de uma pequena burguesia incapaz de vislumbrar a luz ao fundo do túnel das transformações sociais e que, por isso, se refugia na memória e renuncia ao presente ("recordar não é trazer um determinado acontecimento até nós, mas servirmo-nos do tempo para nos levar para fora da acção presente" (p. 47)), quando não sucumbe à tentação de enfiar a cabeça no forno ou de se deitar na ferrovia. Fernando Esteves Pinto produz assim um documento a cujo valor literário se soma a valência do testemunho histórico de uma época (anos oitenta do século XX), ainda que pormenores expressivos ofusquem, por vezes, as qualidades do autor e da obra.

 

19 de Fevereiro de 2017

Fernando Martins