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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Águas Vivas de Levante, de José Estêvão Cruz − uma história dentro da História

Águas Vivas do Levante, José E. Cruz.jpg

 

Corre o ano de 1755 quando "António Brandão, pároco da vila de Cunhais do Outeiro", se vê constrangido a abandonar a sua paróquia e a boa vida de que ali desfruta. Na mesma ocasião, Mariana de Sabóia (ou Saboia) é compelida pelo marido, o visconde João de Saboia, a deixá-lo, a ele e aos seus domínios da região de Leiria. Em ambos os casos, estão em causa condenações do Santo Ofício, por ofensas graves à Santa Madre Igreja − ofensa fundada a do pároco, forjada a de Mariana; em ambos os casos, também, o destino dos condenados é Castro Marim, pois "o reino aplica estas penas com o objectivo de aumentar o povoamento, em especial nos lugares da fronteira" (p. 69). E é em torno destes degredados que José Estêvão Cruz constrói uma história que se anuncia como a primeira de uma trilogia, parcialmente inspirada em obras de Hugo Cavaco e de Geraldo Peroni e Timothy Coates (parcialmente, pois, nisto da inspiração, aos factores extrínsecos há que juntar sempre os que decorrem da índole do autor).

 

Não sei até que ponto Águas Vivas do Levante pode ser tido por romance histórico. Se é verdade que a diegese está claramente ancorada numa época perfeitamente definida e, para mais, bem conhecida de todos − o despotismo esclarecido pelas Luzes que os Enciclopedistas se empenhavam em acender em artigos que nada poupavam à sua observação e crítica acutilante − também é claro que o autor não quis que uma sobrecarga histórica comprometesse a leveza e a sedução do romanesco. Como é evidente, não será de crucial importância dirimir a pertinência da catalogação. Se a questão é levantada, é-o apenas na estrita medida em que convém sopesar a importância relativa dos elementos de natureza epocal numa narrativa cuja trama não é susceptível de ser transposta para outro tempo.

 

É que 1755 não é um ano qualquer do século XVIII português, e a narrativa de José Estêvão Cruz é bem expressiva quanto ao impacto que o abalo sísmico seguido de maremoto teve nas terras e nas gentes do litoral sul do país e particularmente do sotavento algarvio. Antes mesmo do abalo propriamente dito, e como parece ser costume acontecer, são os animais, sobretudo as aves, que anunciam a desgraça que aí vem. Depois, são, claro, as manifestações geológicas do fenómeno, a alteração da morfologia do solo e os desmoronamentos com as inevitáveis consequências nas populações. Há males (para muitos) que vêm por bens (para uns poucos). Neste caso, a desdita das gentes de Castro Marim propiciará a intervenção benfazeja dos nossos dois condenados, com o que ambos granjearão a sua simpatia e um acolhimento tão caloroso quanto as circunstâncias o permitem. Além disso, a destruição dos arquivos oficiais, quer em Castro Marim quer na corte, liberta os dois desterrados dos vínculos infamantes e condenatórios e permite-lhes até assumir novas identidades, como marido e mulher (de aparência, apenas). Isto somado aos haveres que ambos puderam amealhar, antes dos dissabores conhecidos, e trazer, para fazer face ao embate da vida recomeçada em terra desconhecida, vai permitir-lhes enfrentar um futuro que o leitor presume auspicioso, se bem que o romance o anuncie "bem complicado" (p. 126).

 

As duas personagens de José Cruz granjeiam rapidamente a simpatia do leitor. Mariana, vinda de uma família de camponeses, empregada numa taberna de estalagem, é desposada pelo fidalgo, que sucumbe aos encantos da bela jovem ("para nos podermos casar, sendo eu plebeia, houve um édito real que solicitou", p. 63). Movida por uma inteligência penetrante e pela curiosidade e ambição do conhecimento ("Sentia já pequeno o horizonte da quinta onde moirejava em benefício do senhor da terra." p.34), Mariana reivindica do marido a possibilidade de encetar a "aprendizagem de várias disciplinas e línguas, com base num procedimento de um tal Luís Verney, homem do novo pensamento das luzes que despontava na Europa [o qual] defendia que as mulheres também deveriam estudar pois tinham igual capacidade que os homens." (p. 29) Como é natural, sempre que a ignorância recua e a ética não cede, Mariana tem uma visão desassombrada do país e do tempo em que vive: "Este país está cheio de injustiças, manigâncias e traições. Confunde-se o que é proibido com o pecado, a lei civil com a lei canónica. As pessoas não são livres de escolherem o seu destino. A minha esperança está na educação, nas letras, no ensino, numa nova filosofia que parece despontar no horizonte europeu." (p. 68) Os próprios alicerces da fé cedem perante a evidência de uma natureza que se rege apenas pelas suas leis: "com os conhecimentos que adquiri e aquilo que estudei enquanto pertenci à nobreza, vendo o que aqui aconteceu e tendo a noção que em todo o lado se terá passado o mesmo, começo a fazer uma interpretação diferente do mundo. Acende-se outra luz, mais capaz de compreender que nós humanos temos de nos valer a nós próprios." (p. 102) Se não é ainda a assunção clara do ateísmo é, no mínimo, a afirmação deísta de que a Inteligência Superior não mete o nariz na sua criação.

 

Quanto ao pároco, se a sua formação religiosa não lhe permite acompanhar Mariana nestas perigosas congeminações, não deixa de ser uma personagem que cativa pela sua verticalidade. Incapaz de resistir aos apelos de Eros ("Deixava-se seduzir com facilidade pela maviosidade das palavras femininas", p. 15), António Brandão reconhece que "Se tivesse mais cedo refletido sobre os seus próprios desvios de comportamento, há muito teria deixado a batina, sem agora ter de se sujeitar à humilhação." (p. 24) Aquando da pernoita na estalagem das imediações de Castro Marim, fazendo-se passar por irmãos, o pároco e Mariana ocupam o mesmo quarto, mas "Ambos estavam blindados pelas experiências negativas que os tinham conduzido ao degredo [pelo que] Estava assumidamente afastada qualquer ideia de concubinato." (p. 73) Mais tarde, na sequência do sismo, é como marido e mulher que passarão a coabitar, mas aquela determinação manter-se-á: " — Partilharemos tudo como um casal, menos a cama. Fizemos um pacto pelo caminho, recorda-se?

— Se eu não fosse padre, você era a mulher que eu gostaria de ter.

— E terá, mas incompleta." (p. 107)

 

O estilo de José Estêvão Cruz nada deve à afectação e muito pouco à rebusca formal. Caracteriza-o, antes, um despojamento que o aproxima do registo jornalístico, e a impressão deixada pela leitura de Águas Vivas do Levante aproxima-se da que deixaria a leitura de uma reportagem, extensa, claro, porque muito circunstanciada, e, naturalmente, impregnada de literariedade, mas de uma literariedade que resulta mais da riqueza do pensamento e dos atractivos da intriga do que do aformoseamento estilístico. Como não raras vezes acontece com edições menos escrutinadas, há neste livro algumas ocorrências de pontuação menos criteriosa e umas quantas gralhas. Nada disto compromete a legibilidade do texto e poderei de tudo dar nota ao autor, se ele o entender útil.

Abri de 2017

Fernando Martins

Telegramas do Mediterrâneo, de Pedro Jubilot

Telegramas do Mediterrâneo, Pedro Jubilot (1).jpg

 

"[...] no mitigar da cena, distingo simplesmente que não há melhor sítio que a concha ancestral do mediterrâneo para fazer amigos eternos. mesmo que essa eternidade possa durar o lacónico curso de um só verão apenas." Pedro Jubilot, Telegramas do Mediterrâneo, "telegrama" n.º 26, CanalSonora, 2016

 

Não haverá grandes afinidades entre os Telegramas do Mediterrâneo, de Pedro Jubilot, e Uma Viagem Sentimental, de Laurence Sterne, publicada em Londres quase duzentos e cinquenta anos antes. Contudo, num caso como no outro − e pese embora a importância que lhe parecem atribuir quer o clérigo anglicano, que parodia as narrativas de viagens em voga no século XVIII, quer Pedro Jubilot, que discorre liricamente a partir de apontamentos descritivos da paisagem − a geografia talvez não passe de mero pretexto para trazer à colação o que verdadeiramente lhes importa: a paisagem, sim, mas a paisagem interior, i.é, a dos afectos e das emoções.

 

A primeira interrogação que assalta o leitor de Telegramas do Mediterrâneo, porém, não é a de saber qual o papel da deambulação pelos mais diversos sítios da bacia mediterrânica − de Algeciras, Espanha, a Izmir, Turquia, passando pelas geográfica e culturalmente aparentadas Cacela e Tavira. Esta interrogação ficará para mais tarde, depois de lidos e relidos alguns dos cinquenta e um "telegramas" que, invariavelmente, como se espera de qualquer correspondência prolixa ou lacónica, mencionam o lugar donde são "expedidos". O que primeiro questiona o leitor com preocupações didácticas é a natureza destes pequenos textos: poemas ou prosa? A resposta não se afigura fácil nem imediata, pois, logo desde o primeiro texto (de Cacela Velha), o leitor depara-se com o vagamente narrativo (chegada à amurada junto à ria), a evocação nebulosa do que terá sido visto e sentido por um enigmático sujeito pronominal ("daqui vejo o que ele viu? sinto o que ele sentiu?"), a expressão da condição necessária para que o visto e sentido por esse sujeito se compagine com o visto e o sentido pelo sujeito da enunciação ("só se não ouvir hoje o ruído de todos estes dias, ou então se me lembrar de como as coisas já foram simples"), a descrição, em jeito de jogo vocabular e muito permeável à menção histórica da ocupação árabe ("onde o mar se em-prata de lua ou se vai namouriscar"), a resolução do enigma referente ao sujeito "ele" (trata-se de Ibn Darraj al-Qastalli, poeta hispano-árabe de origem berbere nascido em Cacela no séc.X) e, finalmente, uma frase/parágrafo de homenagem à beleza do sítio ("se acaso alguém souber de outro lugar assim de tão belo, poderá vir um dia trocar de morada comigo"), a lembrar o poema de Sophia

 

As praças fortes foram conquistadas

Por seu poder e foram sitiadas

As cidades do mar pela riqueza

 

Porém Cacela

Foi desejada só pela beleza[1]

 

As chamadas formas naturais de literatura (neste caso, o narrativo e o lírico) imbricam-se, mas a prevalência da função referencial da linguagem (a "colagem" do significante ao significado), sobretudo na última frase, assegura um relativo distanciamento para com o "manto diáfano" da poesia. Acontece, todavia, que, em "telegramas" mais intimistas, a linguagem tende a despojar-se dos nexos mais visíveis da tessitura lógica, e a poesia derrama-se então pelas margens da prosa, como acontece, por exemplo, nos "telegramas" 18 ("só nos aceitámos no espelho de água clara do porto de mytilene onde deixámos as rugas da nossa dermatosidade estática se confundir no movimento das ondinhas. orientadas pela tua mão provocaram um pequeno tsunami atingindo ao largo a ilha dos vampiros"), 27 ("quando se corre, é sempre numa corrente de vida, numa das margens de um tempo perene"), 29 ("na revinda extingue-se a tarde na baía, à luz remanescente retardo o ataque dos remos, na espera de seduzir noções para um poema que aquiesças com a leitura do teu corpo, que vale por tudo o que me deixas escrever na parte mais íntima da noite adentro"), 33 ("desenreda-se sempre um adagio sublime, no tempo pênsil, em indefinido lugar, de modo dissemelhante"), 35 ("abordo a noite vaga ao escuro das ideias, lembrando o passado [...] mas vou refugiar-me no bote salva-vidas, enrolo um cigarro e espero o futuro intransigente"), 39 ("como não me lembrar das extensas fibras do teu cabelo dependurado em fita, cortando os laivos reluzentes em raiar de sol"), 47 ("é setembro, já!? custa-me abandonar o teu quarto azul, os lençóis de sol nessa cama de verdes-limos com almofadas de espuma, deixo esta singela mensagem escrita a cana d'água sobre a cómoda de areia: amo-te, volto já").

 

Traço comum a quase todos estes textos são as referências culturais, desde o já citado poeta do séc. X até pintores como Pablo Picasso ou Tripo Kokolja, passando por cantores, músicos e compositores como Paco Ibáñez, Juan Manuel Serrat, Brian Jones, Melina Mercouri, Leonard Cohen, Manuel de Falla, entre outros, poetas e escritores como Camus, Yourcenar, García Lorca, Françoise Sagan, Antonia Pozzi, Flaubert, Guy de Maupassant, Teixeira-Gomes e o menos conhecido Vítor Gil Cardeira, cineastas, jornalistas, etc., tendo todos eles, ou quase todos, em comum o facto de serem naturais dos países ribeirinhos do Mediterrâneo, ou de lá terem vivido, ou por lá terem passado. Estas referências entram na "confecção" dos "telegramas" qual condimento que "apura" o especial sabor de cada um, e o facto é que logram redimensionar-lhes o alcance significativo, catapultando as emoções do sujeito da enunciação para o mundo das artes e dos seus actores, com o que elas se desprendem da simples efusão lírica − por vezes, noutras paragens, enferma de um solipsismo enfadonho − e adquirem um valor de universalidade. Não há aqui vestígios de spleen decandentista, antes a permanente sedução de uma paisagem natural que conserva a memória daqueles que a interpretaram através dos meios próprios da música, da estatuária, da pintura, da literatura, do cinema, e de uma paisagem humana, a daqueles homens e mulheres que simplesmente emprestam à primeira os odores bons do almoço, o chamamento de D. Luzia pelo filho Paco e o "ritmo nervoso e histriónico de guitarra flamenca", em Algeciras (teleg. n.º 4) ou a visão das "calças justas pretas" da "rapariga de cabelos lisos castanhos" que crava um cigarro, em Bari (teleg. n.º 34). Como não recordar esta bela lição de Sophia Andresen: "Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso"?[2]

 

Num tempo em que alguns almejam converter os povos do Sul à religião da tecnocracia, estes Telegramas do Mediterrâneo vêm lembrar-lhes que "qualquer que seja a sua idade, nenhum homem, sentado frente ao mar egeu poderá almejar mais do que a sua vista alcança: a mulher que então ama, o petisco de polvo frito e a salada com tzatziki que lhe puseram sobre a mesa de madeira, a amizade dos que o rodeiam erguendo copos de ouzo na mão, a paisagem num mundo de luz circundante, esparramada em inevitáveis tons de azul e branco."[3]

 

Tchin-tchin!, Pedro Jubilot.

 

 

[1] Sophia Andresen, Livro Sexto, in Antologia, Círculo de Poesia, Moraes Editores, Lx.ª, 1975

[2] Op. cit.

[3] "Telegrama" n.º 16