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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A Casa, de Carlos Luís Figueira ‒ a verdade de um combate num romance-testemunho, ou a tensão entre a arte e a vida

A Casa, Carlos Luís Figueira.jpg

O primeiro romance de Carlos Luís Figueira (julgo saber que há um segundo em gestação) evidencia a capacidade do autor para verter num texto ficcional o dramatismo que caracterizou o combate dos comunistas, nas duríssimas condições da clandestinidade, contra a ditadura fascista. O impacto que tal luta produzia, quer nos aspectos práticos da vida pessoal e familiar dos seus protagonistas, quer no seu relacionamento social, quer ainda no seu equilíbrio psicológico e emocional, está aqui delineado com o traço firme de quem sabe do que fala. E, perante a autenticidade de um relato circunstanciado, muito rico em pormenores dos quais só quem passou pela experiência poderia dar testemunho, a reacção do leitor antifascista não pode ser outra senão a admiração e o respeito.


Num prefácio que enquadra o romance no seu contexto histórico e que descodifica o seu título, explicando que as casas clandestinas eram um “dos mais importantes pilares da organização clandestina do PCP”, Carlos Brito sublinha que “o percurso [de Augusto, o protagonista] é muito parecido com o percurso que o próprio Carlos Luís Figueira fez na sua juventude, nomeadamente quando, pelos meados dos anos 60 do século passado, veio para o interior do país, como funcionário do PCP [….] circunstância que confere uma enorme autenticidade às reacções [da personagem].” Sirvo-me deste sublinhado de Carlos Brito para observar que não só essa autenticidade é flagrante como o próprio narrador, apesar de heterodiegético, isto é, não participante, se insinua, à leitura, como que amalgamado com a personagem Augusto, tornando-se difícil dissociar a personagem actuante da instância narrativa, tanto mais que esta última goza do estatuto da omnisciência. Parece ser, com efeito, uma só voz a que age e a que relata.

 

Temos, pois, uma narrativa que veicula uma experiência de vida e de intervenção política marcadamente excepcional. Se foram numerosos aqueles que, durante os quarenta e oito anos de vigência do regime fascista em Portugal, aspiraram pela liberdade, pela justiça social e pelo fim das desigualdades, foram poucos, de facto, os que levaram tais anseios até ao sacrifício da sua vida familiar e à renúncia a uma carreira profissional. O autor do romance foi um deles, movido, como o protagonista, por aqueles anseios e pelo ideal de uma sociedade liberta da exploração do homem pelo homem. Quer a nobreza dos anseios, quer a grandeza do ideal explicam a prevalência de que neste romance gozam o pensamento político e a acção das personagens, claramente sobrepujantes relativamente a aspectos estritamente relacionados com a literariedade, o que, naturalmente, afecta a valoração do leitor propenso a debruçar-se sobre a utensilagem estilística e a proficiência narrativa do autor.

 

O leitor que, no caso vertente, se deu por tarefa criticar o romance de Carlos Luís Figueira associa a admiração e o respeito que deixou expressos a uma especial atenção à forma como o escritor logra a metamorfose do real em arte, não o obliterando, mas conferindo-lhe aquela aura de fantasia sem a qual é grande o risco de a fotografia se sobrepor à tela (1) . Nesta perspectiva, a carga ideológica de alguns diálogos com falas extensas, a pletora de informação prática concernente às tarefas de que o protagonista se desincumbe e às suas constantes preocupações e congeminações, alguma falta de naturalidade nos diálogos entre Augusto e a companheira e, sobretudo, o registo muito objectivo da generalidade do discurso são aspectos que contrariam o conceito de “abertura” da obra literária, isto é, a sua especial aptidão para propiciar uma leitura plural (2).

 

Mas A Casa é um romance-testemunho e, como tal, obedece a um critério de transparência e univocidade que se não compagina com a ambiguidade que o literário privilegia. Por essa razão, quando comparado, por exemplo, com os Contos Vermelhos de Soeiro Pereira Gomes (3), rapidamente se constata que o neo-realista, pese embora a carga ideológica que subjaz à corrente, envolve situações e personagens num halo de nebulosidade onírica. Não que o leitor não saiba que o militante que se aventura na luta clandestina vive mergulhado no medo ‒ medo de falhar no cumprimento da tarefa confiada pelo Partido, medo de ser descoberto por um agente ou um bufo, medo físico da tortura nos calabouços da PIDE ‒, e tais emoções, bem em evidência no texto, não primam pela doçura do sonho. Não obstante, a transfiguração literária daquelas situações atenua-lhes a feição tormentosa, até porque o leitor interiorizou um pacto narrativo e esse pacto diz-lhe que “por detrás da mentira da ficção, [ambos] irão juntos à descoberta de uma verdade escondida” (4). Se há uma “verdade escondida”, o leitor não se esquece de que o narrado é a “mentira da ficção”.

 

A comparação de A Casa com os contos de Soeiro Pereira Gomes é incontornável, dada a semelhança das situações relatadas, mas carece de legitimidade, ou não obedecessem narrativa breve e romance a “respirações” e dinâmicas perfeitamente distintas. Com comparação ou sem ela, o facto é que, em A Casa, o leitor dificilmente se esquece de que está a ler o relato fidedigno do que verdadeiramente ocorreu e de que aqueles seres de papel que são as personagens tiveram modelos vivos (5), aos quais foram buscar quase tudo o que ostentam. E ainda bem. Porque escasseiam testemunhos da luta clandestina em tempos de servidão prestados por aqueles que estiveram na voz activa da História.

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1. "Toda a história da arte é fundamentalmente a história das tendências realistas e da sua luta contra as tendências formalistas. [No entanto,] a verdade no realismo nunca pode ser a fotografia instantânea, seja da vida social, seja dos próprios objectos e fenómenos naturais. A representação da realidade na obra de arte não pode pretender ser literalmente fiel pela razão simples de que se trata de uma obra de arte e não da própria realidade representada. A verdade na arte é diferente da verdade na vida e essa é condição indispensável para que possa ser a sua real representação." Álvaro Cunhal, "Problemas do realismo", in Obras Escolhidas, IV, edições Avante, pp.786-787

 

2. “a abertura, entendida como ambiguidade fundamental da mensagem artística, é uma constante de toda a obra em todos os tempos”, Umberto Eco, Obra Aberta, Relógio d’Água, 2016, p. 48

 

3. In Refúgio Perdido, edições Avante!, Lx.ª 1975. Da 1.ª edição de Refúgio Perdido, em 1950, pela Sociedade Editora do Norte, não constavam estes contos.

 

4. Roland Bourneuf e Réal Ouellet, O Universo do Romance, Almedina, Coimbra, 1976, p. 101

 

5. Sobre os “modelos vivos” dos romancistas, leia-se o interessantíssimo prefácio de Somerset Maugham a “Seis Novelas escritas na primeira pessoa do singular”, in Chuva e Outras Novelas, Livros do Brasil, Lx.ª, s/d, pp. 58, 59.

 

O Livro da Casa, de Fernando Cabrita ‒ um livro da vida e do homem

O Livro da Casa, Fernando Cabrita.jpg“Havia algures um parque cheio de abetos e de tílias, e uma velha casa de que eu gostava. Pouco importava que ela estivesse longe ou perto, que não pudesse nem aquecer-me nem abrigar-me, reduzida aqui ao papel de sonho: bastava que existisse para preencher a minha noite com a sua presença. Eu já não era um corpo dado à costa numa praia, orientava-me, era o filho desta casa, cheio da recordação dos seus odores, cheio da frescura dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a tinham animado.”
Saint-Exupéry, Terre des Hommes, Gallimard, Folio, p. 64

Lê-se O Livro da Casa, de Fernando Cabrita, e é como se os nossos pais arborícolas ou cavernícolas, dessas eras em que “tudo era novo e peregrino e vasto” e “éramos um só na corrente imprecisa dos dias” (p. 26), estivessem aqui, ao pé de nós, de caras e corpos pintados “com a alegria breve das cerejas e das bagas” (p. 23), mas nem por isso menos aptos a acompanhar-nos ao café ou ao teatro. Ou como se Odisseu, longe de casa, se prestasse a dar-nos guarida no convés do seu “barco impreciso na mão das águas” (p. 34), de regresso à sua Ítaca, fazendo e desfazendo o seu destino. Ou ainda como se “o pequeno felá”, “do alto da sua pirâmide, na última pedra do último degrau, / no último dia, na derradeira claridade”, saudasse “o sol de anteontem”, “esse pai comum e bom” (p. 65), e connosco lhe rogasse despertar dos nossos mortos, “já que não a vida, a memória doce que nos faz revivê-los e encontrá-los a cada sonho e a cada dia” (p. 67). O mesmo se poderia dizer de Diógenes, o cínico, e de Macías, o trovador, mas também de personagens tão humildes quanto os “grumetes velhos” (p. 41) ou o marinheiro desconhecido, cujo “corpo gasto” “devolvemos ao mar inicial” (p. 49), e de personagens tão ilustres quanto o Conde de Borgonha, pai do fundador da nacionalidade, ou “Cronos, o nosso velho pai, senhor das eras e das demoras”, que “a todos visita” (p. 53). Em todos aqueles casos, a escrita do autor persegue o desiderato de rememorar o passado ‒ mais do que isso, presentificá-lo ‒ , mesmo se “O último poema da casa” reconhece que “nada há que possa, nada, / trazer-nos de volta a casa, / de volta ao lar que foi nosso um dia” (p. 105). Por que meios consegue o autor trazer ao convívio dos seus leitores todas estas personagens, que geralmente percepcionamos como seres petrificados no tempo e inacessíveis, é a pergunta que talvez se nos afigurasse despicienda, caso estivéssemos perante uma narrativa ficcional (quantos, como Herculano e Saramago o fizeram com mestria!), mas que se impõe no caso da poesia, já que, se a vibração lírica é aqui inquestionável, não será este o género em que mais naturalmente personagens diversas ganham vulto para nos interpelar.


O primeiro daqueles meios é a familiaridade do autor com as humanidades e com o berço dessa cultura ‒ a saber, numa perspectiva globalizante, o mundo mediterrânico. Está bem patente, em muitos dos poemas que integram o livro, o conhecimento da literatura e, em geral, da cultura clássica, no sentido lato de tudo o que perdurou (da Antiguidade Oriental à Idade Média), o que determina uma intensa intertextualidade. Mitologias diversas (“o fogo de Zeus”, p. 33; “A todos visita Cronos”, p. 53; “Ó Osíris pai, justiceiro”, p. 56; “Hórus altivo”, p. 65; etc.); citações de trovadores e de poetas (“Sabias, como os provençais, as palavras e as artes / e como eles soías bem trovar”, p. 80; “Éramos tão novos, tão fora de querer mal”, p. 45; “quando ainda tínhamos Pasárgada para onde ir a cada desilusão”, p. 89; etc.); alusões com evidente referencialidade histórico-cultural (“Odisseu, pastor da paz e das guerras já passadas”, p. 34; “Cantavas as baladas de Merlin, o Velho, / os amores impossíveis de Lancelot do Lago, / as velhas canções dos nibelungos, / os versos dos bardos do norte”, p. 80; etc.) ‒ tudo isto convoca permanentemente o leitor para o encontro e para o diálogo com o outro. Por outro lado, importa sublinhar o conhecimento dos países em questão. Com efeito, os informantes espaciais que pululam nestes poemas podiam ser (quantas vezes não serão em tantas obras literárias não menos valiosas por isso!) meros instrumentos indutores da verosimilhança ou coadjuvantes da cor local. Julgo, contudo, não estar enganado, dizendo que o autor esteve em todos ou quase todos os lugares a que neles se refere, e daí a impressão de verdade que a leitura proporciona  (1).


O conhecimento a que me venho referindo não seria suficiente, se Fernando Cabrita se revelasse incapaz de insuflar vida aos nossos antepassados. Pelo contrário, deparamo-nos aqui não com seres distantes, porque muito distintos de nós na sua idiossincrasia, mas próximos e semelhantes, porque apreendidos nos anseios, nas necessidades e nos comportamentos que irmanam todos os homens. É que o autor posiciona-se num continuum da espécie, dos tempos mais recuados até ao dia de hoje, e a notável persistência do sujeito “nós”, nestes poemas, onde o singular “eu” prima pela quase total ausência (2), induz a ideia de uma contemporaneidade única, comum a todos os homens de todos os tempos, como acontece na “Ode à casa” (“A árvore amamentava o nosso sono e a nossa vida / […] / quando dormíamos de ouvido encostado ao chão / e o mundo dormia como nós. / […] Não havia horas, não havia tempo. / Éramos uma corrente de coisas sem passado e sem futuro / […] / Nós, criadores e criaturas, pais dos deuses / filhos da árvore boa em que descansámos, / sob ti enterrámos os nossos mortos / e devolvemos à terra os que sobre ela dormiram / no regaço da tua mansidão, ó árvore. / […] / Tudo era novo e peregrino e vasto. / […] / Éramos um só na corrente imprecisa dos dias […] / todos os homens sempre um só na corrente imprecisa dos dias […]” (pp. 23-28) (3), ou no poema “Sobre nós preside um deus qualquer”:


Sobre nós preside um deus qualquer
que nos quer bem, ou mal, ou nem se importa
que cedo haja em cada de nós a tempestade
a deixar-nos a alma triste e a carne morta
Que felizes éramos na nossa aldeia, na pequena horta
onde deixámos filhos por nascer e essa mulher
que esconde o rosto triste atrás da velha porta
e ilude nela a mágoa enorme da saudade
E quando tudo então parece imensidade
e o vento sul a nossa dor sem fim exorta
sobre nós preside um deus qualquer
que nos quer bem, ou mal, ou nem se importa. (4) (p. 47)


Em qualquer destes casos, e muitos outros poderiam ser aduzidos, o sujeito poético foge à individuação e representa-se indistintamente num colectivo alheio a qualquer hierarquia. Cumulativamente, a presença de um elemento comum a todas as eras, que é a casa ‒ fosse ela a árvore, a caverna, o tonel, o mar ou o convés do navio ‒ confere homogeneidade acrescida à linha do tempo. É à casa, “senhora e mulher” que o poeta dirige o seguinte pedido: “dá-nos a tua mão feminil / o pireu nobre do teu regaço / onde os perdidos barcos aportem / e salvos sejam pelo teu calor redentor. / Dá-nos, mulher e casa, / o teu ventre protector / a tua luz que acolhe e aquece […]” (p. 19). A casa, que é lar, espaço físico e solo, mas também a família, os chegados, os companheiros, é o elo que mantém ligados todos os homens, por muito distantes que estejam no tempo, porque, no limite, a casa é a “terra dos homens” de que nos fala Saint-Exupéry.


Julgo encontrar um terceiro factor de presentificação destas personagens na extensão dos poemas. Um número significativo destas composições espraia-se por duas, três, quatro ou mesmo sete páginas, como acontece na “Ode à casa” (pp. 23 a 29). Dos poemas se poderia dizer, como dos homens, que não se medem aos palmos. Porém, assim como no romance a extensão determina uma particular apreensão do tempo da história e da própria construção das personagens (5), assim também a extensão de determinado poema, a sua discursividade, pode constituir-se como veículo de transporte do leitor numa viagem suficientemente longa para propiciar a sua relação com elas, e o gosto do autor pela ode, composição tradicionalmente longa, favorece este resultado.


Aspecto igualmente relevante neste livro é a tonalidade elegíaca e a plangência saudosista que impregna muitos dos seus poemas e que decorre grandemente da evocação de um passado de que se guarda grata memória (o advérbio “outrora” é recorrente) e da alusão frequente aos que nos precederam:


Dos dias de outrora que é feito
Das horas demoradas de Verão?
Essas tardes em que tudo era perfeito
que é delas agora, onde estão?

Da nossa casa, lar de todos nós
quando éramos todos e ninguém morrera
onde agora a lembrança, o gesto, a voz?
Como pode não ser já quanto antes era?

Esse sol que inundava o mês de Agosto
e esse mar que vinha comer à nossa mão?
Existiram no espelho do teu rosto
ou foram só fantasia e ilusão?

Onde eu, e tu e os demais
quando fomos felizes e não sabíamos?
Onde aqueles beijos à beira-cais
e os navios distantes que mal víamos?

A nossa idade foi um breve diamante
um lenho em repentina combustão
Tudo ardeu no espaço de um instante
como se deixasse de bater um coração (p. 36)

 

Este registo, de resto tão conforme ao estereótipo nacional da saudade, parece-me contudo ser resgatado pelo sentimento de profundo respeito, de comunhão (a comunhão possível) e de solidariedade com os homens de todos os lugares e de todos os tempos que povoam os poemas de Fernando Cabrita e que souberam que “ser homem é sentir, ao assentarmos a nossa pedra, que contribuímos para construir o mundo” (6).

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1. Alguns poemas apresentam a data e o local de criação.

2. No poema “Dos dias de outrora”, a ocorrência excepcional do pronome de 1.ª pessoa desencadeia a imediata adjunção de “tu” e “os demais”: “Onde eu e tu e os demais [ou seja: nós] / quando fomos felizes e não o sabíamos?” (p.36)

3. Citação muito lacunar da “Ode à casa”, que ocupa sete páginas.
4. Numa primeira leitura, muito referencial, pode ler-se aqui a nota nostálgica de um tempo volvido em que o sujeito poético e os seus comungavam de uma felicidade comum. Creio, todavia, que o enquadramento geral do poema (refiro-me ao conjunto de trinta e quatro composições) permite inferir que o sujeito pronominal aponta para o colectivo humano, para a espécie, muito mais do que para a experiência restrita do sujeito poético.
5. É sabido que o roman-fleuve, por exemplo, proporciona uma experiência de leitura em que o leitor “vê” a personagem envelhecer paulatinamente, com o demorado decorrer da acção.

6. “Être homme […], c’est sentir, en posant sa pierre, que l’on contribue à bâtir le monde.” Saint-Exupéry, Terre des Hommes, Gallimard, Folio, p. 47