Pois é. Íamos ver o “The Post”, mas havia um problema qualquer com o filme, que impedia a projecção. «Vá ver o "Verónica" ‒ é de terror, mas é curto.» Na sala ao lado ia o “Cinquenta Sombras”, mas o senhor deve ter achado que já não temos idade para essas coisas. Lá fomos. Uma jovenzita, aluna de colégio de freiras, a braços com um problema de amenorreia e dada a leituras de obscurantismo (associação explosiva de circunstâncias banais), abre inadvertidamente a porta de acesso ao mundo dos vivos a uma coisa que é designada por “espírito” e “por fantasma” e que no fim se presume ser apenas certa forma de neurose histérica a carecer de urgente psicanálise. A história é sobejamente enfadonha e deixaria qualquer ser pensante a dormir em pé não fosse a estridência dos efeitos sonoros que acompanham o surgimento do dito “espírito” ou das suas manifestações, e que, talvez mais do que as imagens, é de arrepiar ‒ e de levar qualquer um a temer pela salvaguarda dos pobres tímpanos. Comparado com isto, os filmes que mostram cenas da vida post mortem, num paraíso estilo berço de bebé, com almas dotadas de corpo, envergando imaculadas túnicas alvas, não ficam nada atrás em patetice, mas têm a inestimável vantagem de um fundo sonoro mavioso, isento de vibrações estapafúrdias, propriamente celestial.
Sai-se da sala com a impressão de se ter passado uma hora e tal com alguém que esteve a gozar connosco, isto é, a tomar-nos por adultos com idade mental abaixo dos oito anos. Parece, contudo, que a coisa aconteceu mesmo, há uns vinte e tal anos, em Madrid, e que a jovenzinha acabou por morrer, o que concita o nosso pesar. De duas coisas estamos certos: a pobre não corre o risco de se encontrar com o “espírito” que a perseguiu em vida e o realizador merece ir para o Inferno.
“As pessoas têm a ideia que a morte é a solidão total num nada completo. E provavelmente é. Mais: tenho a certeza que é, mas não somos capazes de conceber isso. Não aceitamos conceber isso. De forma alguma nos resignamos a isso. E assim nasceram as religiões. Que todas elas nos prometem, nos garantem, nos juram a existência do dia seguinte e o tornam mais ou menos aceitável.”
António Lobo Antunes, “O senhor Barata”, in “Visão” n.º 1288, 9 a 15/11/2017
“A vida é ai que mal soa”, etc., dizia o poeta e encadeava outras imagens com aparente naturalidade: “sombra que foge”, “nuvem que voa”, etc. Já eu, escrevo “A vida é…” e estaco, hesitante, à procura de um predicativo para este sujeito. Farto da espera, volto-me para a morte. Só que, também aqui, a procura do predicativo se me depara trabalhosa e embaraçante. Começo por alguns adjectivos, sempre mais fáceis de alinhar do que metáforas, que requerem a predisposição poética que me falece. Será a morte ‒ e refiro-me, claro, à morte do ser humano consciente, senhor de uma vida plena e empenhado em projectos que a nutriram qual seiva ‒ será a morte, dizia eu, dramática, isto é, pungente, mas, ainda assim, vivida (se é possível dizê-lo) como algo (ai, este indefinido tão rasca!) da estrita esfera do natural e humano? Ou será ela trágica, quer dizer, algo (novamente!) revelador do capricho dos deuses? Claro que a segunda hipótese sempre nos parece mais consentânea com a dignidade da espécie. A mim, todavia, esta história dos deuses não me convence. E também não encontro imagens que possa contrapor às que o poeta de Messines alinhou com aparente naturalidade. A vida é menos que um ai? É ai que nem soa? Decididamente, nem como paródia a coisa funciona. Decido-me, então, a ser vulgar, e completo a frase carecente de predicativo: “a morte é… uma merda”. Estranhamente, reparo que não estou longe de ser profundo e filosófico. É que, quando a defecação se me torna caprichosa, ocorre-me perguntar que tipo de relação poderá existir entre os étimos gregos skatós e éskhatos ‒ respectivamente, “excremento” e “último”, conforme diligentemente elucida o dicionário Priberam ‒ étimos que convergiram no mesmo termo: “escatologia”. Não havendo dúvidas quanto ao facto de as fezes serem o estado último dos alimentos a que lográmos retirar tudo aquilo de que o nosso organismo necessita para repor as energias despendidas na azáfama da vida, será bem mais temerário associar uma “teoria sobre o fim do mundo e da humanidade” a um “tratado acerca dos excrementos”. Certo é que jamais me ocorreria trocar as doces imagens que João de Deus colou à definição de vida pelo meu soez nome comum. Já quanto à morte, insisto, é mesmo merecedora do escatológico predicativo. Isto porque, apesar de tudo, a gente se habitua ao “ai que mal soa”, à “sombra que foge”, à “nuvem que voa”, ao “sonho tão leve” que “como o fumo se esvai”. Que importa que seja efémero ai, fugidia sombra, esvoaçante nuvem, vago sonho, desvanecente fumo? Seja o que for, a gente habitua-se e, depois, torna-se difícil, ou mesmo de todo impossível, entender que tudo possa continuar a existir sem nós, para lá de nós. Tanto mais que somos, todos, do mais simples Severino da morte e vida ao mais sofisticado doutorado, dotados das mais extraordinárias aptidões, ainda quando a vida não propiciou a sua passagem da virtualidade à concretização. Como é, pois, possível que algo (lá está ele, de novo!) tão singular e assombroso se apague assim, como se de insecto indistinto, igual a todos os demais da espécie, se tratasse? Inaceitável, de todo. Daí, a minha insistência: a morte é uma… chatice, para evitar o registo mais escatológico. Uma chatice necessária, dir-me-ão, já que se impõe deixar lugar para os vindouros ‒ os que hão-de vir e os que já estão, e estão sempre, a chegar. Com a desculpa do espaço vital já nós sabemos que se cometem às vezes barbaridades. Talvez seja, por isso, preferível reconhecer que a morte é mesmo lixada (adjectivo predicativo que não melindra grandemente os ouvidos do sujeito). Não bastaria morrer em nós apenas o que ocupa muito espaço, deixando viver aquilo que poderia continuar a pensar e a produzir? Vão-me dizer que não seria a mesma coisa, ou então que isso já acontece com aquela coisa a que chamam alma. Permitam-me discordar. Quanto à alma, sinto muito, mas é um conceito que me é estranho: não havendo matéria, não há suporte para mais nada. O não ser a mesma coisa, já aceito, mas há que reconhecer que, entre o apagamento total e definitivo e a sobrevivência de uma parte de nós, a saber, a consciência apoiada numa porção diminuta de corpo, sempre é menos deprimente esta última hipótese. Hipótese académica, está claro. Mas hipótese que acabaria de vez, suponho, com toda e qualquer veleidade escatológica: com cérebros eternos e sem aparelho digestivo, adeus teoria sobre o fim da humanidade, adeus excrementos.