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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

A difícil arte de escolher um lado

Para a esquerda social-democrata ‒ isto é, para toda a esquerda reformista, que abomina acima de tudo a ideia da revolução, que acredita num capitalismo reformável (como se as reformas lhe retirassem o carácter intrinsecamente injusto) e para quem a democracia burguesa (dispensando ela o qualificativo) constitui o estádio supremo de evolução dos sistemas de governação ‒ a avaliação da situação na Síria, como em várias outras conjunturas históricas, reveste-se de certa dificuldade. Ela bem condena, sem apelo nem agravo, o regime de Assad, responsável pelo recurso a armas químicas causadoras da morte de civis, com uma estranha incidência em crianças (estranha perversão), em condições de sofrimento atrozes, mas depois ocorre-lhe a tutelar imagem da democracia norte-americana, que é o presidente Donald Trump, e essa esquerda, que não poupava loas ao amistoso Obama, como se o amistoso Obama, com a jovial Hilary, não tivesse patrocinado as mesmas guerras de todos os demais, não resiste a censurar-lhe uma boçalidade dificilmente escamoteável e que descredibiliza a tal democracia (sem qualificativo). Vai daí, tem um assomo frenético de relutância e mete tudo no mesmo saco ‒ monstros sírios e presidentes do sacrossanto mundo livre, sobretudo os alvares, já que os outros são tratados com mais consideração.

 

Na pressa que a move de condenar, dando mostras de uma irrepreensível equidistância em relação aos patifes deste mundo, convoca até o diabo para que venha e escolha. Mas o diabo é avesso a convocatórias, como bem o sabe um primeiro-ministro dum passado infausto, e retruca-lhe com a judiciosa resposta de que é a cada um de nós que cabe escolher o lado em que quer estar, já que para isso nos dotou o Senhor de livre arbítrio. Ora a tarefa de escolher implica necessariamente alguns riscos e certo trabalho: o risco maior é talvez o de nos enganarmos na escolha do lado em que queremos estar, mas isso são os ossos do ofício de viver. Quanto ao trabalho, ele pode passar por estudar inúmeras disciplinas académicas, motivações comportamentais e outras coisas mais. No penúltimo domínio, seguramente o de mais fácil acesso a qualquer observador, impõe-se a constatação de que o “regime” sírio (“regime”, como sempre lhe chama a nossa isenta imprensa) derrotou a conspiração imperialista euro-americana, que financiou, armou e industriou os grupos terroristas que puseram a Síria a ferro e fogo durante anos, tendo reconquistado os bastiões que aqueles grupos ainda detinham nas imediações de Damasco. Nestas circunstâncias, só com um significativo contributo da imaginação é possível descortinar uma motivação para que o “regime” tenha desencadeado um ataque com armas proibidas, para mais sob a ameaça de retaliação, caso o fizesse. Claro que é sempre possível pensar numa manobra de diversão. Mas… para distrair a opinião pública síria dos escândalos sexuais envolvendo o ditador Assad? Azar! Assad está demasiado ocupado a bombardear os civis financiados e armados pelas democracias ocidentais para se dar ao deboche. Em contrapartida, Trump, esse sim, está seriamente comprometido com escândalos dessa e doutras naturezas (que o podem levar ao impeachment), como aconteceu com o culto Bill Clinton, no caso da estagiária Mónica Lewinsky, em 1998. Na altura, como as primeiras páginas dos jornais não largavam o assunto, Clinton ordenou o bombardeamento de uma fábrica de armas químicas no Sudão. Veio depois a saber-se que os químicos em questão eram medicamentos, mas a operação saldou-se por um êxito relativo: as manchettes dos jornais puseram o escândalo em surdina.

 

Sarkozy, por seu turno, desempenhou papel de relevo na eliminação física do ditador Kadhafi e na destruição da Líbia (decididamente, todos estes democratas ocidentais parecem sofrer da síndrome do 007). Que terá levado Sarkozy a abominar a tal ponto o ditador cruel que anteriormente recebera afectuosamente no Eliseu? Segundo consta, e a esquerda social-democrata sabe-o, o ilustre ex-presidente terá beneficiado do financiamento da sua campanha eleitoral de 2007 por aquele monstro, primo de Assad.

 

Quanto a Thereza May, diz-se que está metida numa camisa-de-onze-varas, com a dor de cabeça do Brexit, e que carece de refrigério. Tudo tão lógico quanto aparenta ser o incompetente envenenamento do espião russo em solo britânico, nas vésperas das eleições presidenciais russas e a três meses do Campeonato do Mundo de Futebol, acontecimento que pode muito bem fazer parte do pacote propagandístico destinado a preparar a opinião pública para mais uma aventura da qual ninguém sabe ao certo como se sairá se as coisas azedarem.

Porém, a esquerda social-democrata não se deixa convencer com constatações tão simplistas; ela busca explicações mais profundas e, sobretudo, ela faz questão de preservar a sua pureza moral, recusando maniqueísmos sempre indiciadores de primarismo. Por isso mesmo, vai tudo corrido com o labéu de fdp’s (o meu dicionário pede-me que substitua o substantivo que tem por inicial um “p” por “pura, luta, pita, pauta ou peta”, mas nenhuma destas palavras traduz com rigor a ideia em questão, além de que é essa a expressão usada no texto que me serve de inspiração, (cf. https://aventar.eu/2018/04/16/se-nao-e-preto-so-pode-ser-branco/ ).

 

A atitude da esquerda social-democrata em relação aos Estados ameaçados na sua soberania tem muito de comum com a de um famigerado governador da Judeia, contemporâneo de Cristo. Também ela se desincumbe da tarefa de julgar passando as mãos por água. É que ela acredita no imperialismo, mas não vê propriamente nele uma fase superior do capitalismo. Para ela, se os EUA são imperialistas, os russos também o são e os soviéticos também o eram. Já os Estados da União Europeia nem por isso ‒ uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, sendo que as nossas democracias têm a virtude de conjugar a natureza capitalista com a justiça social, o que lhes confere, naturalmente, o galardão de democracias sociais ou social-democracias.

 

Claro que, a montante das motivações próximas no tempo que foram referidas mais atrás, estão as causas remotas e superiores destes conflitos. E lá voltamos ao imperialismo: garantir o acesso aos recursos naturais do planeta e o seu controlo, de modo a assegurar a manutenção e reprodução de sociedades assentes na pilhagem. Sob os pretextos julgados mais verosímeis em cada ocasião, o imperialismo cerca a Rússia, fazendo avançar o seu braço armado para a Europa de Leste e impondo, ou tentando impor, regimes alinhados com os seus interesses no Médio Oriente ‒ na Síria, como na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, no Irão, com a preciosa ajuda do regime saudita (perdão, de Riade, pois essa coisa do “regime” é só para a Síria, a Venezuela, Cuba e uns quantos outros países pouco recomendáveis), copiosamente armado pelos EUA para massacrar impiedosamente o Iémen, sem que a nossa imprensa se mostre particularmente chocada, e do Estado sionista, ponta de lança do imperialismo americano no Médio Oriente, que incumpre resoluções da ONU, ocupa parte do território sírio há cinquenta anos, massacra o povo palestiniano (quem se lembra do conluio entre o exército israelita, Ariel Sharon e os falangistas libaneses, na chacina de Sabra e Chatila, em 1982?), o que inclui o uso de bombas de fósforo branco, aliás como prova de que aprenderam bem a lição do amigo americano, perito no uso do Agente Laranja (entre outros medicamentos) nos genocídios que cometeu no Sudeste asiático.

 

Por estas e por outras é que o maniqueísmo faz sentido: há que acreditar mesmo que, de um lado, estão os maus, do outro, os bons. Ainda que, muitas vezes, os bons possam ser apenas menos maus. O que quer dizer que, nas actuais circunstâncias, faz sentido estar do lado de Assad e de Putin, ainda que se discorde das suas políticas em muitas outras. São eles quem se opõe, neste contexto, ao avanço do imperialismo, prestando com isso um notável serviço à humanidade. A esquerda social-democrata achará que é uma execrável visão do mundo a preto e branco, quando ela o vê policromo. Mas a História regurgita de situações em que a esquerda social-democrata se deslumbrou com o arco-íris e perdeu o Norte, mancomunando-se com as forças da regressão social e pactuando com as injustiças inerentes à natureza exploradora e criminosa do capitalismo e do imperialismo. Não será isso mais execrável?