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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Companhias

À minha prima A., finou-se-lhe o marido. Ficou só neste mundo. Não obstante, dizia estar sempre acompanhada. Por Deus. Ignoro se Deus a acompanhava em todos os cómodos da casa, como soía acontecer com o marido, presumo, mas tal ideia afigura-se-me blasfema. Nem quero imaginar o quão inconveniente seria a presença de Deus naqueles momentos em que todos ansiamos pelo maior recato. Além de que o voyeurismo divino se me afigura inconsistente com a alta ideia que faço de Deus. Convenho, por isso, que o “estar sempre acompanhada” será força de expressão. Ainda que o ser omnividente, tomado à letra e entendido com o rigor a que a presente reflexão aspira, implique o escrutínio mais absoluto de todos os esconsos da nossa existência. Enfim, desisto de dirimir esta questão, cuja complexidade me assusta.


Também eu, quando fiquei sozinho, passei a estar sempre acompanhado. Pela rádio. Em cada cómodo da casa, um receptor: no quarto, aceso, ao levantar e ao deitar; na casa de banho, sempre que a permanência é um pouco mais demorada do que a exigida por um chichi; na cozinha, quando atamanco uma refeição; na sala, quando a tomo; no escritório (que fino!), baixinho, quando escrevo ou leio. Às vezes, há dois ou mesmo três receptores ligados – quando me desdobro em tarefas, de um lado para outro, qual fada do lar, descontado o desencontro de género. Estou sempre acompanhado, geralmente por vozes de que gosto, de pessoas que geralmente não conheço. São apenas vozes, mas eu sei que pertencem a pessoas que existem mesmo; não são criações do meu espírito. E essas pessoas, por muito que não queiram (claro que elas nem pensam nisso), fazem-me companhia. As vozes delas trazem-nas a elas para dentro da minha casa e para dentro de mim. Como não hei-de estar-lhes grato? Sem isso, ia tantas vezes ser difícil aguentar a solidão de que só gosto quando lhe vislumbro o fim próximo.


Postas as duas situações – a minha e a da senhora minha prima – em paralelo, falta apenas tirar ilações, o que faço com ponderação e gravidade q.b., que o assunto não é para menos: o que nem ela nem eu suportamos é a condição de Robinsons, encalhados numa ilha perdida. E como a necessidade aguça o engenho, inventamos um Sexta-Feira: ela, um transcendente; eu, um tecnológico. A ela, vale-lhe Deus; a mim, a telefonia.

 

Multiversal, de José Estêvão Cruz – a poesia e a sua circunstância

multiversal, J. Estêvão Cruz (1).jpg

A poesia de circunstância, geralmente seguidora do cânone convencional da rima, da métrica e genericamente denotativa, sempre desempenhou um papel de relevo na afirmação identitária da comunidade e, se os tempos agora são outros, ela não deixa de constituir, em momentos de celebração, um factor suplementar de coesão na liturgia da festa. Entende-se, assim, que uma “oração de sapiência” da Confraria do Atum (!), proferida em 3 de Março de 2018, no Centro Cultural António Aleixo de VRSA, possa integrar o multiversal, último livro de José Estêvão Cruz.

 

O volume arranca com uma composição de inspiração camoniana vertida em estrofes de oitava rima, “estilo grandiloco e corrente”, a imitar a epopeia nacional, ainda que o autor prescinda da invocação às ninfas, que não têm as do Guadiana a fama e o reconhecimento de que gozam as Tágides. A habilidade versificatória e a soma de conhecimentos sobre o ciclo de vida do atum não deixam dúvidas e espraiam-se pelos demais poemas do primeiro painel, acrescentando-se-lhes o saber da vida dos que vivem das fainas do mar, tudo isto numa morfossintaxe sacudida e prenhe dum falar que inevitavelmente lembra o Raul Brandão de Os Pescadores.

 

Voltada esta página, com “Multiverso” e a radical mudança de estilo, o leitor encontra a provável resposta à dúvida sobre o significado do título do volume, já que, se “versal”, segundo o dicionário, denota “letra maiúscula, capital, capitular” – o que não parece hipótese interpretativa fiável –, o sujeito afirma-se, neste poema, capaz de exercer o seu múnus poético de formas múltiplas: “de enxada na mão”, “a fazer uma bomba”, “de cruz em riste”. E, de facto, a variedade de formas e de temas confirma a “multiversalidade” do volume, primeiro muito apegado a referências geográficas locais (praia, rio, doca, …), depois, progressivamente, afastado dessa concretude e içado para voos mais próprios da reflexão sobre o ser e a condição humana, o homem e a sua circunstância, o amor, enfim.

 

É no termo desta caminhada para uma linguagem transgressora dos vínculos significativos da referencialidade que surge aquilo que já é um universo desafiante das leis da física e do raciocínio silogístico: “Não sei / em qual Outono / ficaram escondidas / as pérolas do teu olhar”. Estamos, enfim, no prólogo dessa aventura a que se chama poesia.