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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

“TELEMÓVEIS”, DE CONAN OSÍRIS

I


Lembro-me de Osíris quando andava aí no antigo 3.º ano do Liceu (agora, 7.º unificado). Eu andava sempre com o Rui, o Delmar e o Luís; ele, com Ísis e Hórus. Chamávamos-lhes a Santíssima Trindade.


O Rui, o Delmar, o Luís e eu caçoávamos com a professora de História, a quem chamávamos Pernalta, por andar alcandorada numas pernas esguias e muito altas. Uma vez, disse-nos que os Egípcios calculavam a idade das mulheres pela observação dos calcanhares; a partir daí, sempre que a víamos de sapatos abertos atrás, conjecturávamos sobre a idade da senhora, vetusta para nós. Ao meio-dia, ouvia-se um sino a badalar. Ela interrompia então a exposição em curso sobre as civilizações da Antiguidade, aproximava-se da janela junto à secretária, aparentava recolher-se numa comunhão contemplativa e persignava-se. Disse-nos um dia que o marido era oficial do exército e que estava numa das nossas províncias ultramarinas (Portugal era enorme, na época).


O Osíris, porém, não saía do compêndio de História, imóvel, estático, hierático, como o escriba sentado. Não se dava ao desfrute, até porque, mais dia, menos dia, lá chegaria “o dia em que se pesam as palavras perante Osíris, o da voz justa”, como dizia o Livro dos Mortos. Foi, por isso, com espanto que o vi no Festival, travestido de Yoda-Davros-Spock-Vader, a fazer um barulho aborrecido, assim a modos que de influência árabe, mas não me atrevo a ir mais longe na apreciação, porque até agora só consegui ouvir uns escassos segundos do banzé em questão.


Em todo o caso, não duvido de que vai fazer um belo pendant com a galinha do ano passado.

 


II


Acabei por ouvir o Osíris no youtube. Aquilo é pior do que eu pensava quando escrevinhei o último post. Reconheço que sou um analfabeto em matéria musical, mas, meu Deus!, até como provocação aquilo é o nítido nulo e de uma absoluta improbabilidade mesmo numa galáxia distante da nossa. Ainda assim, o que mais espanta é que tal coisa tenha obtido uma pontuação superior a todas as outras coisas, que eu confesso não ter ouvido, mas que estou pronto a reconhecer serem incomparavelmente superiores em termos de musicalidade. Poderão ser igualmente desmioladas no domínio do conteúdo linguístico (não sei se o Osíris usou algum código comunicacional enquadrável na categoria de idioma porque não entendi uma palavra do que propalou), que isso é o que acontece a maior parte das vezes nestas disputas cançonetísticas, mas julgo de todo inconcebível que mais alguma daquelas coisas fosse tão ignaramente dissonante. O facto de a inépcia musical, longe da reprovação, ter concitado o aplauso do júri e do público prova, se necessário fosse, o estado de lassidão mental a que parece termos chegado. É caso para dizer que os bárbaros podem entrar. Nesta Bizâncio, os monges já não discutem o sexo dos anjos; mandam extra-terrestres à Eurovisão.


Fiquem bem, que eu fico a ouvir o Hotel Califórnia. Sim, dos Eagles. “You can check-out any time you like, But you can never leave!” Believe me.


III
(finalmente, uma análise séria)


Tendo, por duas vezes, postado comentários menos abonadores da canção vencedora do recente Festival da Canção, venho hoje emendar a mão com uma análise do respectivo poema, que reputo de portentoso espécime da mais recente produção poética nacional. Faço-o, contrito e desgostoso, reconhecendo a sanhuda soberba crítica a que não soube resistir e definitivamente decidido a não mais azucrinar o nosso garboso, ainda que mal sucedido, representante no certame levado a cabo na Terra Santa de Israel, farol da tolerância e da convivência pacífica entre os filhos de Deus.


Duma singela quadra inicial, algo irregular na métrica (pormenor despiciendo no contexto da poesia hodierna), irrompe um dos mais pungentes gritos de dor e revolta da humanidade, nesta era de divórcio com a espiritualidade: o diálogo com Deus (“céu”, no texto), noutros tempos logrado pelo simples recolhimento ou, no caso de ascetas, anacoretas e místicos, por uma vida de privação e mortificação da carne, via cilício ou burel, longe do século, deveria ser viabilizado através do recurso à tecnologia digital, porém, a tentativa salda-se pelo mau êxito: o sujeito poético pretende uma resposta à dúvida que o atormenta, v.g., saber se mata a saudade, ou se é ele quem morre, presumivelmente às mãos desse leitmotiv incontornável da alma e da poesia nacionais, e não consegue a ligação, o que o leva a partir o gadget. Não sabemos se a ligação não se concretiza por falta de atendimento do céu ou por deficiência na rede, mas as reclamações recorrentes às operadoras e à ANACOM levam-nos a crer que o céu teria atendido a chamada se lá em cima o telemóvel tivesse tocado, sobretudo tendo em conta que se tratava de uma questão de vida ou de morte.


Na sextilha que segue, a anáfora “Quem mata quem” exprime a dúvida angustiante sobre a autoria do putativo homicídio, inviabilizado por presumíveis falhas de comunicação, e o sujeito poético declara abster-se de qualquer tentativa de contacto telefónico, logo que conheça os potenciais envolvidos no (futuramente) lamentável incidente. Trata-se, é claro, de uma decisão que poderá acarretar sérias consequências para o autor, que, mais abaixo, com uma enigmática alusão à “chibaria”, parece querer afastar de si mesmo o opróbrio da delação.


As duas estrofes seguintes trazem à boca da cena duas novas personagens – a vida e um “tu” que começa por nos parecer um desdobramento do eu inicial embrenhado num doloroso diálogo introspectivo indagador das mais profundas inquietações do sujeito poético. A segunda destas estrofes, porém, desfaz cabalmente a dúvida: trata-se, efectivamente, de duas pessoas distintas, cada uma delas com o seu telemóvel, sendo que o sujeito adverte o seu interlocutor de que, na eventualidade da chegada de um sms da vida, partirá ambos os telemóveis (“o teu e o meu”). O carácter atormentativo (adjectivo caucionado pelo dicionário Priberam) do sms em causa é poeticamente transmitido através de nova anáfora (“Se a vida ligar / Se a vida mandar mensagem / Se ela não parar”), e a irritação, ou talvez o desespero, do sujeito transparece enfaticamente da multiplicação de sinónimos do acto de destruir: “estragar”, “partir” e “escangalhar”.


“E se eu partir o telemóvel?”, pergunta, à laia de desafio, o sujeito, no início da estrofe seguinte. E responde: “Eu só parto aquilo que é meu”, dando de barato a ameaça feita na estrofe anterior, a não ser que a dúvida anteriormente assinalada sobre a existência de um só sujeito observador e observado ou de dois seres distintos volte à discussão. Outra dúvida persistente – esta, do sujeito poético, que não do crítico - é a de saber se quem morre é a saudade ou ele próprio. Com efeito, ele reconhece expressamente a possibilidade de ser a vítima, aliás, usando uma expressão de inegáveis contornos literários: “Vai na volta quem morre sou eu”.


A composição poética termina com a assumpção, ou assunção (mas nada a ver com a outra), da autoria do crime, crime esse praticado com uma flecha, anacronismo de evidente interesse estilístico, para sublinhar a dramática clivagem que separa o harmonioso mundo de outrora (flecha) da desumana era tecnológica (telemóvel). O que, aliás, vai ao encontro da afirmação inequívoca de um nobre objectivo de vida expresso no verso “Quero viver e escangalhar o telemóvel”. A canção perfila-se, assim, como arma de combate por uma sociedade mais humana e menos dependente de uma comunicação artificial que acaba por nos afastar do nosso semelhante e nos privar da componente afectiva do relacionamento interpessoal presencial.


Vai na volta, a canção tão injustamente preterida no certame acaba por comover o céu, que, maravilhado, pega no telemóvel e impõe a solução de dois Estados, com capital em Jerusalém.


Bem hajas, Osíris!

 

Telemóveis

Eu parti o telemóvel
A tentar ligar para o céu
Pra saber se eu mato a saudade
Ou quem morre sou eu
Quem mata quem
Quem mata quem
Mata?
Quem mata quem?
Nem eu sei
Quando eu souber, eu não ligo a mais ninguém
Se a vida ligar
Se a vida mandar mensagem
Se ela não parar
E tu não tiveres coragem de atender
Tu já sabes o que é que vai acontecer
Eu vou descer a minha escada
Vou estragar o telemóvel
O telele
Eu vou partir o telemóvel
O teu e o meu
Eu vou estragar o telemóvel
Quero viver e escangalhar o telemóvel
E se eu partir o telemóvel?
Eu só parto aquilo que é meu
Tou pra ver se a saudade morre
Vai na volta quem morre sou eu
Quem mata quem
Mata?
Eu nem sei
A chibaria nunca viu nascer ninguém
Eu partia telemóveis
Mas eu nunca mais parto o meu
Eu sei que a saudade tá morta
Quem mandou a flecha fui eu
Quem mandou a flecha fui eu
Fui eu