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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

O comer e o amar – as duas faces da moeda da vida?

Comeres com Poemas, A. Murteira.jpg

 

O único livro de receitas que, por razões que não vêm ao caso, me acontece visitar, compulsar e até ler intensivamente foi, até há bem pouco, O Livro de Pantagruel, de Bertha Rosa-Limpo, Jorge Brum do Canto e Maria Manuela Limpo Caetano . Não sendo propriamente um fin gourmet, não desdenho a boa cozinha e até acrescentaria que, ao duplo prazer de comer com a boca e com os olhos, adiciono um outro – o de confeccionar um prato a partir da leitura de uma receita bem redigida, ou não me dessem sempre as más redacções desagradáveis transtornos gastroentéricos.
Posto isto nestes termos gastronómico-sintácticos, cumpre dizer que a estreiteza bibliográfica de que padecia acabou por ser debelada pela leitura de Comeres com Poemas, de António Murteira , subintitulado Para Viver um Grande Amor. O facto de o autor deste livro ter sido autarca e deputado do PCP em duas legislaturas acicatou a minha curiosidade e irreprimível instinto crítico.
Não conheço pessoalmente António Murteira, mas atrever-me-ia a dizer que, se o bon vivant é aquele que ama e exalta os prazeres da vida, é de um bon vivant que se trata. Por certo que não o bon vivant focado na fruição egoísta de quanto de bom a vida pode oferecer-nos, mas antes o fruidor ciente da importância da partilha afectuosa com aqueles que amamos ou que comungam dos mesmos ideais. Ciente e praticante. Com efeito, neste livro de António Murteira , o aparente paradoxo entre a fruição do prazer e o empenhamento no bem comum é constantemente desmentido não só pela denúncia convicta e sentida da barbárie que (ainda) é a sociedade em que vivemos como pela referência frequente ao convívio fraterno com amigos e pela afirmação da necessidade de se caminhar no sentido de uma transformação consentânea com a humana aspiração à felicidade, embora não “se desenhem ainda os contornos das sociedades de amanhã” e quando desconhecemos “que surpresas estarão reservadas à fabulosa espécie animal que conhecemos por Homo sapiens” .
Este sentido do empenhamento no colectivo e de uma solidariedade que não se esgota na sua afirmação verbal está expresso logo no texto prologal, onde o autor, perante a sua própria imagem reflectida no espelho, “homem de onde os laivos da juventude já se ausentaram”, contesta a opinião de Pessoa sobre o acto de escrever como “esquecer” ou “ignorar a vida”, dizendo que, “pelo contrário. […] É a teimosia em não desistir, em continuar a percorrer o labirinto, com ou sem o fio de Ariadne. Em agarrarmos na picareta e, ombro a ombro com os outros humanos, abrir caminho em direcções que os velhos do Restelo dizem não ser possíveis…” . O acto de escrever institui-se, assim, para o autor, como prolongamento do combate que travou noutras circunstâncias históricas, num Alentejo palco da magnífica epopeia da Reforma Agrária que a burguesia latifundista e o seu aparelho estatal se encarregaram de desmantelar .
Ora, se o acto de escrever tem esta importância, “A importância do comer é tão primordial e determinante”, diz A. Murteira, “que, quando um dia conseguirmos colocar comida na mesa de todas as pessoas e famílias, nesse dia o mundo e os humanos iniciarão uma nova era e uma nova civilização, diferente de todas as civilizações vividas. Nova civilização onde a paz poderá reinar e a cultura florescer.” E porque “a comer nos fizemos homens”, lembremo-nos de que “Quando estamos a comer um churrasco ou um peixe grelhado estamos a repetir um ritual celebrado pelos nossos antepassados pré-históricos do Paleolítico.” É que “Saber essa memória torna-o mais simbólico e gostoso” .
Há, nestes Comeres com Poemas, um manancial de informações sobre os produtos agro-alimentares alentejanos e sobre a origem de muitos deles na Ásia Central, no Extremo Oriente, nas Américas, nas Caraíbas, etc. Igualmente sobre as certificações desses produtos, a doçaria conventual e a popular, as ervas aromáticas e as outras. Mas há, sobretudo, uma constante chamada de atenção: “Como regra não se esqueça de que a comida saborosa, como o amor, não pode ser feita à pressa! Lume brando ou médio-brando é o que permite obter os melhores resultados.” E há, ainda, a evocação afectuosa de um tempo volvido, tempo a que a noite fascista não logrou subtrair o bulício da vida e a esperança num amanhã luminoso, como acontece com a descrição do mercado no grande Rossio de Estremoz .
A parte mais substancial do volume está reservada às receitas tradicionais alentejanas, a começar pelas da açorda d’alho, fatias d’alho, sopa de tomate e gaspacho alentejano, que, “num longo período de miséria e opressão que a classe dos latifundiários impôs aos trabalhadores e às populações do Alentejo, do Ribatejo, das Beiras interiores, […] eram as quatro comidas limite, em que do quase nada as […] mães ilusionavam uma comida para mitigar a fome à família” . Porém, A. M. não se contenta com a enumeração de ingredientes e a descrição do modus operandi – invariavelmente, uma colherada de deambulações ora de natureza política ora mais sentimentais ou até brejeiras confere ao seu discurso umas vezes o travo da recordação menos prazenteira, outras, mais frequentemente, o sal e a pimenta da incursão nos prazeres da vida ou de outras carnes. Relativamente às primeiras, refira-se, a título de exemplo, o caldo de espinafres com bacalhau, oportunidade para o autor elogiar festivais e eventos que “constituem estímulos importantes à cultura e à criatividade das gentes, tanto mais que pela região proliferam festejos que se afundam no mau gosto, na adulteração ou esquecimento da cultura e da gastronomia local e regional, na beatice medieva, na pimbalhada mais boçal a roçar o obsceno, em tradições que vivem de maltratar os animais, como as touradas e outras tradições imbuídas de marialvismo” . É ilustrativa da segunda categoria de deambulações a receita da sopa de espinafres com feijão aromatizada de poejo e coentro, que constitui como que um intermezzo erótico a pedir meças a Boccaccio, a Chaucer ou a Bocage (entre muitos outros, claro).
Depois das sopas, cozidos, tomatadas, vêm as entradas de terra e de mar e depois os “comeres da terra”, com as mil e uma maneiras de cozinhar o borrego, as migas de pão, os miolos da matança, a cachola de porco e o tornedó de lombinhos, a galinha tostada, a perdiz frita, o coelho em vinho tinto, a lebre com feijão branco, e depois os “comeres do mar”, caldeiradas, cataplanas, fritadas e arrozes, tudo isto a culminar em “comeres de matizes mediterrânicos, africanos e orientais”: gambas à Teresa-cansada-de-guerra, camarões grelhados à Incomáti, caril de camarão à Índico feito por Gutana (habitante de um muceque, “quase uma menina”) , caril à Inhambane, de Jaime Nugando, “um negro de Inhambane [que] sabia a geografia e a política da África. De como os brancos tinham partido um continente inteirinho aos bocados, tinham partido a África aos bocados, e cada um fazia um país à medida dos seus interesses. Dividiam regiões inteiras, dividiam nações antigas, tribos e etnias, famílias e amigos, terrenos de pastoreio comunitário que há centenas de anos ou milénios eram utilizados por nómadas de diversas tribos e etnias, deixavam o rio ou o poço deste lado da ‘fronteira’ e os do outro lado ficavam sem rio nem poço […] Para já não falar da escravatura humana. Quantos milhões de negros foram levados da África como escravos, o senhor alferes sabe?”
Mas não se pense que a gastronomia política (…) de A. M. se fica pela sanha crítica em relação ao fascismo, ao neoliberalismo e ao colonialismo. Uma “escalivada” (comida grega do Mar Egeu, feita com beringelas, pimentos, alho, azeite e sal) servida no Mar Negro, URSS, serve de digestivo a uma apreciação muito crítica dos vícios e desvios que conduziram à queda do Estado socialista em 1991, nomeadamente a “ausência de democracia interna no partido”, o “dogmatismo” e a “promiscuidade entre partido e Estado” . António Murteira sublinha, contudo, que o que mais lhe custou e custa “não foram os insucessos, não foram as derrotas, por mais amargas que tenham sido”, mas sim a mentira .
São “80 receitas de paixão” a ler, a saborear, a aplicar de vez em quando nos nossos cozinhados e a digerir, sobretudo, no que diz respeito àquilo que não é propriamente gastronómico. Um livro de fazer crescer a água na boca.

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1.Círculo de Leitores, 49.ª edição

2.Edições Colibri, 2012
3.O autor tem várias outras obras publicadas.
4.P. 294

5..p. 295
6.P.11
7.“O proletariado agrícola que representava na ordem de 85% da população activa nos campos, e mais de metade da população da região, já não existe enquanto classe. Teve o momento alto como protagonista na Revolução, na Reforma Agrária, na edificação de um poder local democrático que substituiu o poder local dos agrários. A contra-revolução em Portugal, capitalista e católica, e a Reforma da Política Agrícola Comum (PAC), ao destruírem a Reforma Agrária e parte da agricultura portuguesa, destruíram também o proletariado agrícola enquanto classe maioritária e com um transformador e democrático para o Alentejo.” p. 26
8.P. 34
9.P. 39
10.P. 92
11.“Manhã cedo, íamos ao pitoresco e policromático mercado (…) fazem a água fresca.”, p. 102
12.P. 105
13.P. 141
14.P. 262
15.p. 266/267
16. p. 279
17. p. 281