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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Memórias de Adriano: um monumento literário

(ficha de leitura)

Memórias de Adriano (2).jpg

 

A palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros. Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, Livros RTP, p. 40

O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que, pela primeira vez, se lança um olhar inteligente sobre si mesmo: as minhas primeiras pátrias foram os livros. Memórias de Adriano, Livros RTP, p. 48

Sou como os nossos escultores: o humano satisfaz-me; nele encontro tudo, até o eterno.” Memórias de Adriano, Livros RTP, p. 126

 

Trajano morre; sucede-lhe seu primo e filho adoptivo Adriano, que endereça este longo discurso ao filho adoptivo[1] e sucessor – Marco Aurélio.

Livro enorme esta carta-romance de Marguerite Yourcenar[2] para cuja leitura o excelente prefácio de Isabel Alçada nos proporciona preciosa ajuda, ao mesmo tempo que limita a tentação de alinhavar aquela meia dúzia de notas com que, habitualmente, o escriba satisfaz irrefreável pulsão comentarista. O escriba contentar-se-á com um breve comentário e muitas citações. E é deste prefácio que sublinha, desde já, estas palavras: “o essencial do pensamento humano resiste ao tempo e permite neutralizar uma distância de dezoito séculos.” (10) De facto, o que mais impressiona na leitura destas “memórias” é mesmo a permanência: aquele homem do século II é o meu vizinho, o meu amigo, sou eu. Não necessariamente com toda a panóplia de ocupações e de preocupações atinentes ao exercício das funções imperiais (os detentores de cargos político-administrativos terão algumas delas, mutatis mutandis), mas com as hesitações, fraquezas, perspectivas, volições que caracterizam o homem de todos os tempos. Para mais, deparamos com um imperador cuja modernidade pode ser aferida pela preterição da política de conquista a favor da paz[3], pelas leis aprovadas a favor das mulheres e pelo reconhecimento da inconveniência das desigualdades sociais (as excessivas, é verdade, que a infra-estrutura não permitia então a formação da consciência que só viria a vingar dezassete séculos mais tarde).

Claro que, por detrás deste Adriano do século II que se nos dirige por interposto Marco Aurélio está uma Marguerite Yourcenar do século XX, profunda conhecedora quer da cultura clássica quer do seu e nosso tempo. É, pois, natural que sintamos a sua personagem tão próxima de nós que chegamos a duvidar da sua autenticidade e sentimo-nos tentados a atribuir à autora, que não à figura histórica, grande parte daquilo que, no texto, é assacado a esta última, até na modernidade da linguagem. Os “Apontamentos sobre as Memórias de Adriano” e a “Nota bibliográfica”, ambos da autora, são, porém, tão esclarecedores, quer sobre todo o processo de maturação do projecto e de redacção, quer sobre as fontes, pormenorizadamente inventariadas e comentadas[4], que forçoso é acreditar na argúcia e génio do imperador. O que não invalida uma observação complementar: ao absorver a este ponto a cultura clássica e o pensamento do imperador, a autora tornou-se o seu legítimo e fiel porta-voz – uma espécie de alter ego.

Nestas circunstâncias, não se estranhará, por exemplo, a agudeza introspectiva que ressalta deste passo, como de muitos outros, que a psicologia moderna não desdenharia:

“Quanto à observação de mim mesmo, obrigo-me a isso, quanto mais não seja para entrar em composição com este indivíduo junto do qual estarei forçado a viver até ao fim, mas uma familiaridade de sessenta anos comporta ainda muitas probabilidades de erro. No seu aspecto mais profundo, o meu conhecimento de mim próprio é obscuro, interior, inexpresso, secreto como uma cumplicidade. No seu aspecto mais impessoal, tão gelado como as teorias que eu posso elaborar acerca de números: emprego o que tenho de inteligência para ver de longe e de mais alto a minha vida, que se torna então a vida de um outro. Mas estes dois processos de conhecimento são difíceis e requerem, um, uma penetração no nosso íntimo, outro, uma saída de nós mesmos. Por inércia, tendo, como toda a gente, a substituí-los por meios de pura rotina, por uma ideia da minha vida parcialmente modificada segundo o conceito que o público forma dela, por juízos feitos, quer dizer, mal feitos, como um molde antecipadamente preparado a que um alfaiate desajeitado adapta laboriosamente um tecido que é nosso. Equipamento de valor desigual; utensílios mais ou menos embotados; mas não tenho outros: é com eles que eu construo, melhor ou pior, uma ideia do meu destino de homem.” (42)

***

Magísteres, filósofos e poetas: da necessária superação

Notáveis, pela sua modernidade e acutilância, são as referências críticas à vacuidade de magísteres

“ […] cada um encerrado nos estreitos limites do seu saber, [desprezando] os colegas que, tão estreitamente como eles, sabiam outra coisa” (48)

e à mediocridade de filósofos:

“Em muitos pontos, aliás, o pensamento dos nossos filósofos parecia-me também limitado, confuso ou estéril. Três quartos dos nossos exercícios intelectuais não passam de bordados no vácuo; perguntava a mim mesmo se essa vacuidade crescente era devida a um abaixamento da inteligência ou a um declínio do carácter […] ” (197).

Em relação à disciplina necessária ao trabalho poético, a sua opinião é taxativa:

“ […] os lugares-comuns aprisionam-nos: começava a compreender que a audácia do espírito não basta, só por si, para nos desembaraçarmos deles, e que o poeta só triunfa sobre as rotinas e impõe às palavras o seu pensamento graças a esforços tão longos e tão assíduos como as minhas obras de imperador” (194)

A família e as leis: cepticismo

Curiosa, no mínimo, é a sua descrença nas virtudes da família, decorrente do exercício de funções como “juiz do tribunal encarregado dos litígios por causa de heranças” (53):

“Maridos contra mulheres, pais contra filhos, colaterais contra toda a gente; o pouco respeito que tenho pessoalmente pela instituição da família não resistiu muito a isso” (55).

Não menos curiosa, a sua descrença nas leis assenta em raciocínio que não andará longe do que juristas dos nossos dias poderiam partilhar:

“Devo confessar que acredito pouco nas leis. Demasiado duras, são transgredidas com razão. Demasiado complicadas, o engenho humano encontra facilmente maneira de se escapar por entre as malhas dessa nassa monótona e frágil” (111)

O amor, os amores

Adriano chega “à idade em que a vida se torna, para cada homem, uma derrota aceite” (26) e começa “a avistar o perfil da [sua] morte” (27). Na juventude, não lhe terão faltado relações com patrícias casadas, amores em que, na opinião de Serviano, seu “velho cunhado”, “havia mais ambição e curiosidade que propriamente amor”, já que “ a intimidade com as esposas [o] introduzia pouco a pouco nos segredos políticos dos maridos” (71). Mas agora, ele sabe que “o desejo de conhecer exactamente as riquezas que cada amor nos traz, de o ver mudar, talvez de o ver envelhecer, concilia-se mal com a multiplicidade das conquistas” (35), e o culto que votou a Antínoo parece, efectivamente, atestar uma fidelidade a que a morte prematura do efebo, “belo lebréu ávido de carícias e de ordens” (144) não terá propiciado demorada afirmação. Recorda a Idade de Ouro (145) desta relação nestes termos:

“Naquela época punha em fortalecer a minha felicidade, apreciá-la, e também em julgá-la, a atenção que sempre dispensara aos mais pequenos pormenores dos meus actos; e que é a própria voluptuosidade senão um momento de atenção apaixonada do corpo? Toda a felicidade é uma obra-prima: o menor erro falseia-a, a menor hesitação altera-a, a menor deselegância desfeia-a, a menor estupidez embrutece-a. A minha não é responsável em coisa alguma por aquelas das minhas imprudências que mais tarde a quebraram. Julgo ainda que teria sido possível a um homem mais hábil que eu ser feliz até à morte.” (152)

 

Aprendizagem da sabedoria: da ambição à moderação

 

Não é apenas no amor que Adriano amadurece. À ambição de poder, de dinheiro e de glória sucede o gosto da moderação e do serviço público:

 

“Deixei Atenas seca e loura pela cidade onde homens encapotados em pesadas togas lutam contra o vento de Fevereiro, onde o luxo e a devassidão não têm encantos, mas onde as menores decisões tomadas afectam a sorte de uma parte do mundo, e onde um jovem provinciano ávido, mas não demasiadamente obtuso, julgando a princípio obedecer apenas a ambições bastante grosseiras, devia pouco a pouco perdê-las à medida que as realizava, aprender a ser moderado relativamente aos homens e às coisas, a comandar e, o que finalmente é talvez um pouco menos fútil, a servir.” (52/53).

 

De resto, a sua natureza parece ter constituído desde sempre fértil alfobre para que tais qualidades medrassem:

 

“toda a explicação lúcida me convenceu sempre, toda a delicadeza me conquistou, toda a felicidade me tornou moderado” (111)

 

Ele apreende a permanência do homem histórico para lá da efemeridade do homem biológico, e capta essa supervivência nos testemunhos materiais que vamos deixando:

 

“Construir é colaborar com a terra […]. Abrir portos era fecundar a beleza dos golfos. Fundar bibliotecas era ainda construir celeiros públicos, acumular reservas contra um Inverno de espírito, cuja aproximação certos sintomas me fazem prever, mau grado meu […]. A nossa vida é breve: falamos sem cessar dos séculos que precedem ou se seguem ao nosso como se nos fossem totalmente estranhos; contudo eu tocava-lhes nos meus manejos com a pedra. Aquelas paredes que seu escorava estão ainda quentes do contacto com corpos desaparecidos; mãos que ainda não existem acariciarão estes fustes de colunas: Quanto mais meditei sobre a minha morte, e sobretudo sobre a de um outro, mais tentei acrescentar às nossas vidas estes prolongamentos quase indestrutíveis […] Cada pedra era a estranha concreção de uma vontade, de uma memória, por vezes de um desafio. Cada edifício era o plano de um sonho.” (122/123/124)

 

A condição humana: anverso e reverso

As referências menos abonatórias sobre alguns dos seus contemporâneos não são raras:

“Encontrei na maior parte dos homens pouca consistência no bem, mas sem terem mais no mal” (55).

Todavia, não deixa de reconhecer que

O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui.” (55)

“Cada um de nós tem mais virtudes do que os outros supõem, mas só o êxito as torna notórias, talvez porque se espera então que deixemos de as praticar.” (104)

“E nunca prestei grande atenção às pessoas bem-intencionadas que dizem que a felicidade excita, que a liberdade enfraquece e que a humanidade corrompe aqueles sobre quem é exercida. Pode ser: mas, no estado habitual do mundo, é como recusar a alimentação necessária a um homem emagrecido com receio de que alguns anos depois ele possa sofrer de superabundância. Quando se tiver diminuído o mais possível as servidões inúteis, evitando as desgraças desnecessárias, continuará a haver sempre, para manter vivas as virtudes heróicas do homem, a longa série de verdadeiros males, a morte, a velhice, as doenças incuráveis, o amor não correspondido, a amizade recusada ou traída, a mediocridade de uma vida menos vasta que os nossos projectos e mais enevoada que os nossos sonhos: todas as infelicidades causadas pela divina natureza das coisas.” (111)

 

Envelhecimento e morte

 

Adriano começa “a avistar o perfil da [sua] morte” (27):

 

“Tinha feito durante toda a vida boa união com o meu corpo; tinha implicitamente contado com a sua docilidade, com a sua força. Esta estreita aliança principiava a dissolver-se; o meu corpo cessava de fazer um só com a minha vontade, com o meu espírito, com aquilo que é forçoso que eu chame, desastradamente, a minha alma; o camarada inteligente de outrora não era mais que um escravo que faz má cara à sua tarefa.” (215)

 

Pensa, então, no suicídio:

 

“Já me não sinto com o vigor de que precisaria para espetar a adaga no lugar exacto, marcado outrora a tinta vermelha sob o seio esquerdo; não teria feito mais que acrescentar ao mal presente uma repugnante mistura de ligaduras, esponjas ensanguentadas, cirurgiões discutindo ao pé do leito. Precisava de pôr na preparação do meu suicídio as mesmas precauções que um assassino para praticar o seu crime.” (241)

 

Porém, a falta de vigor leva-o a procurar nos seus próximos o aliado capaz de lhe proporcionar um fim sem acréscimo de sofrimento, o que não só não consegue porque estes se lho recusam como porque “ao pequeno grupo de amigos dedicados que [o] rodeiam, o suicídio pareceria um sinal de indiferença, talvez de ingratidão” (243). Aceita, por isso, a sua sorte com estoicismo:

 

“Confiei toda a minha vida na sabedoria do meu corpo; procurei saborear com discernimento as sensações que este amigo me proporcionava: tenho por dever apreciar também as últimas. Já não recuso esta agonia feita para mim, este fim lentamente elaborado no fundo das minhas artérias, herdado talvez de um antepassado, nascido do meu temperamento, preparado pouco a pouco por cada um dos meus actos ao longo da minha vida. A hora da impaciência passou; no ponto em que me encontro, o desespero seria de tão mau gosto como a esperança. Renunciei a precipitar a minha morte.” (243)

 

A (relativa) imortalidade

 

A recordação de Antínoo, “embalsamado no fundo da [sua] memória”, mas cuja imagem permanece em moedas da Bitínia e em amuletos que as mães penduram ao pescoço de recém-nascidos, assim como a iminência do seu fim suscitam-lhe estas reflexões sobre a relatividade do conceito de imortalidade:

 

“uma imagem, um reflexo, um fraco eco sobreviverá pelo menos durante alguns séculos. Não se faz melhor em matéria de imortalidade.” (246)

 

“Os nossos livros não desaparecerão todos; as nossas estátuas quebradas serão restauradas; outras cúpulas e outros frontões nascerão dos nossos frontões e das nossas cúpulas; alguns homens pensarão, trabalharão e sentirão como nós; ouso contar com esses continuadores colocados a intervalos irregulares ao longo dos séculos, com essa intermitente imortalidade.” (251)

 

A “alma”: cepticismo e ironia

 

A sua curiosidade leva-o a recomeçar o estudo da anatomia, “aflorado na [sua] juventude”, mas agora focado nas “regiões intermédias em que a alma e a carne se fundem, em que o sonho responde à realidade e, por vezes, a ultrapassa, onde a vida e a morte trocam os seus atributos e as suas máscaras.” (166)

Contrariamente ao que acontece com a generalidade dos crentes, para quem a existência da alma se impõe como axioma, Adriano adopta uma postura céptica, próxima do materialismo:

 

“ […] não será a alma apenas o supremo resultado do corpo, frágil manifestação da dor e do prazer de existir? É, pelo contrário, mais antiga que este corpo modelado à sua imagem, e que, melhor ou pior, lhe serve momentaneamente de instrumento? […] Todos os sábios mudam de opinião sobre estes assuntos vinte vezes por ano; em mim, o cepticismo discutia com o desejo de saber e o entusiasmo com a ironia” (166)

 

“[Os filósofos] apresentavam arrogantemente como um facto a imortalidade daquela entidade vaga quer nunca vimos funcionar na ausência do corpo antes de ter o trabalho de lhe provar a existência.” (187)

 

“Esta estreita aliança [com o meu corpo] principiava a dissolver-se; o meu corpo cessava de fazer um só com a minha vontade, com o meu espírito, com aquilo que é forçoso que eu chame, desastradamente, a minha alma” (215)

 

 

A religião: tolerância e pragmatismo

 

Adriano é absolutamente tolerante, em matéria religiosa, e recebe da autoridade cristã o protesto da sua fidelidade ao Estado:

 

“Foi por essa época que Quadrato, bispo dos cristãos, me enviou uma apologia da sua fé. Tinha tido por princípio manter para com aquela seita a mesma linha de conduta estritamente equitativa que Trajano seguira nos seus melhores dias; acabava de lembrar aos governadores das províncias que a protecção das leis se estende a todos os cidadãos, e que os difamadores dos cristãos seriam punidos se fizessem contra eles acusações sem provas. Mas toda a tolerância concedida aos fanáticos faz-lhes acreditar imediatamente na simpatia pela sua causa; custa-me a crer que Quadrato esperasse fazer de mim um cristão; de qualquer forma quis provar-me a excelência da sua doutrina e sobretudo a sua inocuidade relativamente ao Estado.” (195)

 

Acredita, com razão, na força da fé[5] e prova a realidade dos “milagres”:

 

“Julgam-me deus, como nos tempos da minha felicidade; continuam a dar-me esse título no mesmo momento em que oferecem ao céu sacrifícios pela Augusta Saúde. Já te disse por que razões esta crença tão benéfica me não parece insensata. Uma velha cega veio a pé da Panónia; tinha empreendido aquela exaustiva viagem para me pedir que tocasse com o dedo nas suas pupilas extintas; recuperou a vista sob as minhas mãos, como o seu fervor esperava; a sua fé no imperador-deus[6] explica esse milagre. (244)

 

Por outro lado, revela uma notável clarividência quanto à equivalência das religiões e às vicissitudes da História:

 

“Chábrias preocupa-se com a ideia de ver um dia o pastóforo de Mitra ou o bispo de Cristo implantar-se em Roma e substituir ali o sumo pontífice. Se por desgraça esse dia chegar, o meu sucessor ao longo da riba vaticana terá deixado de ser o chefe de um círculo de filiados ou de um bando de sectários para se tornar, por sua vez, uma das figuras universais da autoridade. Herdará os nossos palácios e os nossos arquivos; diferencár-se-á de nós menos do que poderá parecer. Aceito com calma essas vicissitudes da Roma eterna.” (251)

 

 

 

O génio político de Adriano

 

A política imperial conduzida por Roma nos vastos territórios que conquistou inspira demoradas considerações a Adriano, aqui e ali com estranhas ressonâncias na nossa própria conjuntura histórica, como seja a pretensa missão civilizadora de um povo para com os outros, vistos como bárbaros. Distinguem-no da actualidade os escrúpulos que manifesta e o ideal de paz, se bem que uma paz assente no domínio imperial:

 

“O patriotismo romano, a inabalável crença nos benefícios da nossa autoridade e a missão de Roma de governar os povos assumiam nesses profissionais da guerra formas brutais a que me não habituara ainda.” (59)

 

“Queria que a imensa majestade da paz romana se estendesse a todos, insensível e presente como a música do céu em marcha; que o mais humilde viajante pudesse vaguear através de um país, de um continente a outro, sem formalidades vexatórias, sem perigos, na certeza de encontrar em qualquer parte um mínimo de legalidade e de cultura […] Este ideal, modesto, em suma, seria muitas vezes quase atingido se os homens pusessem ao seu serviço uma parte da energia que despendem em trabalhos estúpidos ou ferozes; circunstâncias felizes permitiram-me realizá-lo parcialmente durante este último quarto de século.” (129)

 

Subscreve o ideal espartano de Terpandro, o seu “modo de vida perfeito”, que se pauta pela exclusão da miséria e da brutalidade nas relações entre os homens:

 

“Toda a miséria, toda a brutalidade deviam ser interditas como insultos ao belo corpo da humanidade” (129)

 

A crença na superioridade de Roma leva-o a relativizar a negatividade da escravatura e da servidão. Há, contudo, no seu pensamento algo de muito moderno, a saber, a multiplicidade de formas de que a servidão se pode revestir, podendo chegar a confundir-se com a liberdade[7]:

 

“Duvido de que toda a filosofia do mundo consiga suprimir a escravatura: o mais que poderá suceder é mudarem-lhe o nome. Sou capaz de imaginar formas de servidão piores que as nossas, por serem mais insidiosas: seja que consigam transformar os homens em máquinas estúpidas e satisfeitas, que se julgam livres quando estão subjugados, seja que desenvolvam neles, com exclusão do repouso e dos prazeres humanos, um gosto pelo trabalho tão arrebatado como a paixão da guerra entre as raças bárbaras. Prefiro ainda a nossa escravidão de facto a esta servidão do espírito ou da imaginação.” (113)

 

 

Finalmente, o seu génio político fá-lo impulsionar medidas de planeamento económico como sejam:

 

  • Uma reforma agrária e da mineração, com a racionalização dos procedimentos agrícolas e a entrega da terra e das minas a quem as faz produzir:

 

“As nossas terras são apenas cultivadas ao acaso: só regiões privilegiadas, o Egipto, a África, a Toscana e algumas outras souberam criar comunidades camponesas sabiamente exercitadas na cultura do trigo ou da vinha. Um dos meus cuidados era amparar esta classe, tirar dela instrutores para populações aldeãs mais primitivas ou mais rotineiras, menos hábeis.” (115)

 

“Pus termo ao escândalo das terras deixadas em alqueive por grandes proprietários pouco ciosos do bem público: todo o campo não cultivado há cinco anos passou a pertencer desde então ao cultivador que se encarrega de o fazer produzir.” (115)

 

  • Implementação das trocas comerciais:

 

“O apoio dado aos armadores duplicou as trocas com as nações estrangeiras” (116)

 

  • Combate aos intermediários:

 

“Nenhuma lei que permita reduzir o número de intermediários que abundam nas nossas cidades será demasiadamente dura: raça obscena e pançuda segredando em todas as tabernas, encostada a todos os balcões, pronta a minar toda a política que lhe não dê vantagens imediatas.” (116)

 

  • Controlo da inflação e incentivos à organização dos produtores:

 

“Uma distribuição judiciosa dos celeiros do Estado ajuda a travar a escandalosa inflação dos preços em tempo de penúria, mas eu contava sobretudo com a organização dos próprios produtores, dos vinhateiros gauleses, dos pescadores de Ponto Euxino, cuja miserável pitança é devorada pelos importadores de caviar e de peixe salgado, que engordam à custa dos seus trabalhos e dos seus perigos. Um dos meus mais belos dias foi aquele em que persuadi um grupo de marinheiros do Arquipélago a associar-se numa corporação e a tratar directamente com os mercadores das cidades. Nunca me senti mais utilmente príncipe.” (116)

 

Humildade no poder

 

Contrariamente ao que seria de esperar de um imperador-deus, senhor de um império e das suas gentes, Adriano entende o poder como um instrumento para servir:

 

“Somos funcionários do Estado, não somos Césares. Tinha razão aquela queixosa, que eu me recusei um dia a escutar até ao fim, quando gritou que se me faltava o tempo para a ouvir me faltava o tempo para reinar. As desculpas que lhe apresentei não foram simples formalidade.” (118)

 

***

 

Feita esta circum-navegação temática do romance, acrescente-se uma palavra sobre o estilo. Marguerite Yourcenar não se entrega a experimentalismos de linguagem nem de construção: narrativa linear de factos e episódios da vida da personagem, profusamente vivificada pelo seu rico pensamento, dificilmente se encontrarão nestas Memórias exemplos de rebusca formal, pelo menos no sentido da indagação de relações inesperadas entre diferentes signos na cadeia sintagmática. Não são os tropos que a autora persegue, antes a formulação exacta da verdade da sua personagem, o que, aliás, também decorre das características atinentes ao espaço e ao tempo da acção.

 

[1] “[…] o nosso Estado soube formar uma regra de sucessão imperial, a adopção é essa regra: reconheço aí a sabedoria de Roma” Memórias de Adriano, p. 222

[2] Projecto esboçado em 1924; publicação em 1951

[3] “O patriotismo romano, a inabalável crença nos benefícios da nossa autoridade e a missão de Roma de governar os povos assumiam nesses profissionais da guerra formas brutais a que eu me não habituara ainda.” Memórias de Adriano, p. 59

[4] “As duas fontes principais para o estudo da vida e da personagem de Adriano são o historiador grego Díon Cássio, que escreveu as páginas da sua História Romana consagradas ao imperador cerca de quarenta anos depois da morte deste, e o cronista latino Espartiano, um dos redactores da História Augusta […]. Estes dois autores baseavam-se em documentos que depois se perderam, entre outros as Memórias publicadas por Adriano sob o nome do seu liberto Flegon e uma colecção de cartas do imperador reunidas por este último.” Memórias de Adriano, p. 280

[5] dezassete séculos mais tarde, Marx dirá que uma ideologia que se apodera das massas se transforma em força material.

[6] A propósito do conceito de imperador-deus: o que ele faz ressaltar é que a divindade é a face simbólica do poder político.

[7] Mais uma vez, séculos mais tarde, alguém daria a tal facto o nome de alienação.

VAI FICAR TUDO BEM? NEM POR ISSO.

Quando a paPraça de S. pedro vazia.jpgndemia suscita graves questões sobre modelos de desenvolvimento, sobre relações de produção, sobre a organização político-social, são numerosas as almas bondosas que multiplicam com denodado ímpeto acções benfazejas tendentes a tranquilizar almas congéneres de seus semelhantes: DJs em varandas intentam recriar ao ar livre o ambiente festivo das discotecas de outros tempos, suscitando a participação generalizada da vizinhança; grupos de cidadãos bem-intencionados aclamam profissionais de saúde conscienciosamente votados ao desempenho das suas tarefas profissionais; cantores e profissionais da comunicação repetem-nos, dia após dia, que tudo, mas mesmo tudo, vai ficar bem, umas vezes porque somos os maiores, outras vezes porque Deus está connosco. A culminar tão ruidosa pletora de generosidade e reconhecimento, a frasezinha epidural do “Vai ficar tudo bem!” induz invariavelmente a recordação dos tempos de infância de qualquer um, quando, perante pequeno arranhão sangrento no joelho e inconsolável pranto, os progenitores do sinistrado lhe sussurravam o balsâmico “Vai ficar tudo bem!”. Descontada a crueza, exagero e impropriedade da comparação, o que isto lembra também é o suicida do arranha-céus: até agora, tudo bem, que a queda ainda vai a meio. Num registo mais sério, se bem que não mais tranquilizador, todas estas manifestações parecem relevar de uma mentalidade mítica. E se é verdade que uma ideologia que se apodera das massas se transforma em força material (Marx, claro), não é menos claro que, no caso vertente, a ideologia em causa é uma força de bloqueio. Enquanto estivermos maioritariamente infectados pelo Covid das ficções religiosas e buscarmos consolo em fetiches linguísticos, nenhum cordão sanitário nos salvará. Para cúmulo, esta infecção generalizada, longe de garantir a imunidade de grupo, o que garante é a maior alienação de qualquer grupo.


Já agora, se imagens como a da Praça de São Pedro sem vivalma se mantiverem na Páscoa do próximo ano, das duas, uma: ou o vírus nos levou a todos, ou a humanidade saiu finalmente da sua multimilenária infância. Esperemos que a primeira hipótese se não concretize, já que é de todo improvável confirmar-se a segunda.