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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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A Fronteira das Águas Porosas - História e ficção na foz do Guadiana

A Fronteira das Águas Porosas (1).PNG

Ler José Estêvão Cruz traz sempre o prazer do encontro com a história de Portugal nas suas vertentes económica, política, social, cultural. Em JEC, a história está invariavelmente ligada à geografia, à fauna, à flora, às pescas, às artes e ofícios, à arte da navegação, até à cartografia, a todo um complexo civilizacional cuja envergadura impressiona o leigo mais focado nas minudências da expressão literária e, se não desinteressado, pelo menos não tão atento aos pormenores do quadro em que se desenrola a vida concreta da gente concreta.

Foi essa a descoberta feita com a leitura dos dois primeiros títulos da trilogia a que deu o título Fronteira de BloqueiosÁguas Vivas de Levante e A Dama da Luz –, trilogia agora completada com A Fronteira das Águas Porosas, que vem, mais uma vez, confirmar a aptidão do autor para uma criação romanesca profundamente entrosada com a história nacional e, sobretudo, regional, já que a acção se desenrola no sotavento algarvio.

São agora os preparativos da pretensa reconstrução da vila de Santo António de Arenilha que servem de pano de fundo (um pano de fundo de enorme vastidão) à movimentação das personagens, umas transitadas das anteriores narrativas, outras recém-chegadas. Santo António de Arenilha fora mandada construir por D. Manuel I e foi engolida pelo mar (p. 131), pelo que são, de facto, as movimentações relacionadas com a fundação de Vila Real de Santo António que constituem o essencial da trama histórica em que se inscreve a acção romanesca.

Para trás, nos dois primeiros volumes, ficaram as andanças dos degredados António Brandão e Mariana, de destinos em boa hora cruzados, e o seu labor empenhado na construção da Companhia das Pescarias de Monte Gordo, sítio onde quase um século antes se haviam acoitado os pobres pescadores fugidos da vila tragada pelo mar. A prolongada e sui generis relação de Brandão e Mariana, não contra todas, mas contra algumas expectativas, vai chegar ao fim, sem que a adolescente Helena, fruto de uma noite sem exemplo, fique sabedora da paternidade do leal companheiro da mãe.

Por razões de diversa índole em que sobrelevam as de natureza geológica (instabilidade dos solos) e económico-financeira (fiscalização das capturas marítimas e cobrança dos impostos respectivos [1]), não é Monte Gordo o local eleito para a construção da nova Vila Real, mas sim a embocadura do Guadiana, o que motiva o desagrado dos pescadores e da protagonista do romance, sem que isso desencadeie qualquer acção violenta, antes pondo em evidência aquilo a que mais tarde se viria a denominar de “brandos costumes”: «a nossa vontade tem de ser tida em consideração. Podem fazer as vilas que quiserem que nós não precisamos de sair daqui. Estamos bem, como sempre estivemos: abandonados à nossa sorte. E estamos vivos. Esta minha fala é a de todos os que têm barcos nesta praia» (p. 153), diz Bartolomeu da Rosa, patrão de uma barca, a Mariana, que tenta chamar o povo à razão, isto é, fazer-lhe compreender que não havia volta a dar-lhe e que tinham mesmo de acatar a determinação do Paço. É verdade que a soma de recursos que são mobilizados e investidos pelo poder central, quer em materiais de construção, quer em técnicos, quer em forças militares, foi tal que não haveria modo de contrariar o despotismo iluminado do Marquês, pouco anos depois, aliás, caído em desgraça, após a morte de D. José I, e muito como consequência do processo dos Távora [2].

Em A Fronteira das Águas Porosas, estamos, assim, mais uma vez, no domínio da ficção histórica. Quanto a estas componentes – história nacional e ficção –, o que ficou dito é um pálido apontamento da intriga e da vastidão informativa coligida pelo autor. Se a informação histórica e os episódios da intriga são o principal atractivo da narrativa e fazem as delícias de leitores eruditos e menos eruditos, são, todavia, os aspectos relacionados com a expressão literária e a técnica de composição que mais importam a este leitor não erudito que nutre especial apetência pela sujeição da escrita ao crivo fino da coerência narrativa e da sugestividade linguística.

Nestes termos, dois aspectos a considerar: o da construção da personagem e o do estilo.

No tocante ao primeiro, a capacidade criativa de JEC é evidente. Sendo certo que, no caso deste último volume, o leitor está já familiarizado com as personagens que acompanha desde o primeiro, é sempre com gosto que adere à sua humanidade e as sente como seus semelhantes, por mais que saiba que não passam de seres de papel. Os traços definidores da sua personalidade são desenhados a traços largos, mas impressivos, e apenas se estranha, por vezes, no comportamento da protagonista, uma ousadia desafiadora dos homens com quem priva ou interage que roça a libertinagem. Sabe-se que se está em presença de uma mulher verdadeiramente desempoeirada, emancipada, conhecedora das ideias dos espíritos mais esclarecidos da época e com uma experiência de vida riquíssima, mas, mesmo assim, a maneira descarada como se insinua parece ser mais própria duma feminista do século XX do que de uma bem sucedida mulher de negócios oitocentista, aristocrata pelo casamento. Este leitor admite, porém, sem rebuço, padecer de alguma ingenuidade ou de mais que provável desconhecimento dos usos e costumes epocais.

Quanto ao estilo, e como conviria, este romance obedece ao padrão da trilogia, ou seja, a denotação prevalece nele, em detrimento da conotação, a adesão estrita ao real, em detrimento do adejar dos signos em busca do inesperado e insuspeito. Uma ou outra vez, acontece mesmo apresentar grande semelhança com a redacção dos autos judiciais, como quando o narrador se refere à relação de Brandão com Mariana nestes termos: “Apesar de se terem abstido de encontros de natureza sexual, Brandão, em casa, representava para Mariana a segurança e a tranquilidade” (p. 163). Como resultado desta opção, o adjectivo, que na literatura é tantas vezes terreno fértil em expressividade, aqui, por via de regra, não representa uma mais-valia semântica: há uma “sonora gargalhada”, na página 68, uma “mulher incrível”, na página 159, “momentos deliciosos” na página 165, por exemplo.

A propensão para o relato factual é ainda mais visível naquilo a que chamaremos “superfluidade explicativa”. Assim, quando se lê

  • «Brandão notou que Mariana lhe queria pedir qualquer coisa, mas ainda nada tinha dito.» (21),
  • «a pergunta carregava em si a perspicácia de quem está prestes a despontar para o mundo adulto.» (60),
  • «Rogério Ventura recorria ao romance de cavalaria para simbolizar a Idade Média» (72),
  • «Tinha entendido, quando a abraçou, que ela deixara uma nota de disponibilidade, mas ainda não haveria consumação naquele local.» (133),
  • «Durante dois dias não saiu de casa, tal o estado de prostração no qual se quedou, mais mental que físico.» (161),
  • «No plano físico amadurecia como mulher independente, capaz de possuir o quanto desejava, dos bens materiais aos afectos e à satisfação dos desejos mais íntimos» (205),
  • «Não imagina quanto eu aprecio a sua dedicação ao visconde e os sacrifícios que faz por ele, bem como o seu agrado com a minha pessoa. Sou mulher e os homens têm dificuldade em esconder o que desejam. Quando chegarmos a Espanha, seremos forçados a viver juntos durante algum tempo. Tudo pode acontecer ou nada. O que surgir desse relacionamento entre dois desapossados poderá ou não ser parecido ao que sucedeu entre dois antigos degredados que bem conhece.» (209-210),

Quando se lê o que ficou para trás, a reacção do leitor é esta: «Não havia necessidade! Eu tinha lá chegado sozinho!»

Onde o leitor nunca chegaria sozinho é à concretização de um projecto literário com a envergadura daquele a que José Estêvão Cruz deu corpo e que levou a termo com proficiência.

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 [1]«A senhora está ciente do muito contrabando que ali se faz de peixe e de sal, até pela sua companhia que domina com destreza as relações com os estrangeiros. E há outras actividades com produtos de uso doméstico que se infiltram até San Lucar com grave prejuízo para o erário público, provocado pelas constantes fugas ao pagamento. Cada vez se vende menos peixe, em lota, e há saídas clandestinas de sal.» (p. 48, fala o governador do Algarve, representante da Coroa)

 

[2] O decreto de “reconstrução” de Santo António de Arenilha é de 30 de Dezembro de 1773 e com a morte de D. José, em 24 de Fevereiro de 1777, D. Maria I retira ao Marquês todos os cargos. Nas palavras da personagem António Brandão, p. 92: «Eu não vejo com bons olhos esta mudança cultural que está a ser proposta. O afastamento da Igreja das questões do Estado, a expulsão dos jesuítas e, acima de tudo, esse processo muito duvidoso sobre a família Távora, com mortes horríveis na praça pública. Para além do mais, há ainda um pequeno número de pessoas com cultura suficiente para poder sustentar uma mudança do tipo daquela que querem fazer.»

O CARRO DESCAIU

O carro descaiu
Compras feitas, aguardo junto ao stop do parque de estacionamento do supermercado que todos os carros em movimento dentro da rotunda passem para finalmente arrancar. São muitos e há agora outro condutor atrás de mim que também aguarda. Ufa! Finalmente! Arranco. Ouço uma buzina. Agora que acabou a espera é que buzinas? Talvez não fosse para mim. Em frente. Ah, mas vejo agora pelo retrovisor que o fulano que me segue faz gestos na minha direcção. Que será? Ponho-me à esquerda, porque vou voltar à esquerda na próxima rotunda. Ele posiciona-se à direita, a meu lado. Faz gestos que não entendo. Talvez uma das minhas portas mal fechada. Ou um pneu em baixo. Mas ele parece irritado e insiste. Contorno a rotunda e ele segue-me. Na avenida, põe-se novamente a meu lado e eu abro a janela. Ele também. Vai sozinho no carro, mas de máscara. Não entendo o que quer! Não ouviu apitar? Quando estava ali parado, deixou o carro descair e bateu. Encoste aí à frente. Sim, eu encosto. Encostamos ambos. Enquanto eu ponho a máscara, ele, que já a tinha antes, chega-se à minha janela. Repete: descaiu, bateu. É forte, não muito mais alto do que eu, e tem uma barba preta e farta de talibã a espreitar por todos os cantos da máscara. Eu saio do carro e vou ver o dele, atrás do meu. Uma cintilante viatura vermelha metalizada com ar de nova em folha. É de 2020, diz-me, e mostra-me um arranhãozito de cinquenta milímetros de comprimento por oito de largura no pára-choques. Está a ver aqui o seu pára-choques? Também tem aqui esta marca. Eu sei que os meus pára-choques têm marcas, manchas e arranhões, e que é mesmo para isso que eles servem, mas mantenho-me expectante. Esta agora! É que não me apercebi de ter batido em nada de sólido, nem me parece que tenha deixado o carro descair. De resto, nem sequer há no local do stop um declive que pudesse apanhar-me de pé desatento e indiferente à presença do travão ali tão perto. Que maçada. Peço-lhe imensa desculpa, digo-lhe, é que não me apercebi de nada, garanto-lhe, e fico esperando que uma desculpa tão imensa e tão sincero alheamento da ocorrência sejam suficientes para apagar o arranhãozito, ou pelo menos para o deixar lá ficar sem efeitos traumáticos no proprietário de tão notável viatura. Mas bolas! Eu que, em cinquenta e cinco anos de condução, tive dois ou três pequenos choques. Choques?! Quais choques! Umas raspadelas de nada, quase uns afagos ternurentos. Bolas! Bolas! Bolas! Como é que quer fazer?, diz-me o talibã. Vou-lhe dar o meu contacto, retruco, procurando ter tempo para pensar no assunto. Ou chamamos a polícia, sugere. Eu vou ser franco, diz-me logo a seguir. E eu espero que sim, que seja franco, penso eu cá para comigo. Isto se for para o seguro, já sabe como é, o senhor é que é prejudicado: fazem a peritagem, o carro vai para a marca e substituem o pára-choques, que fica por setecentos e cinquenta euros; se for a uma oficina, pedem-lhe trezentos e cinquenta euros pela pintura, mas eu tenho um amigo que me faz isso por duzentos e trinta euros. É consigo. Eu não lhe vou pedir duzentos e trinta euros. O senhor dá-me duzentos euros e poupa as maçadas do seguro. Não se fala mais no assunto. Que diabo! Preciso de tempo para pensar no que está a acontecer. Há quem seja capaz de reflectir e de chegar a uma conclusão sábia mesmo no meio da tormenta. Eu não. Preciso de me afastar um pouco, olhar para dentro de mim, trazer à memória tudo o que foi dito, recapitular, ver o filme dos acontecimentos, como sói dizer-se. Assim, raios, não é que me apeteça desfazer-me de duzentos euros num abrir e fechar de olhos e por uma coisa de nada, mas se o homem tem razão? Se eu deixei mesmo o carro descair e bater no dele? Olhe, decido-me: não tenho aqui duzentos euros comigo. Há ali na esquina uma caixa multibanco, diz-me o ofendido. Pois, mas ali não podemos estacionar. Venha atrás de mim até ao parque de estacionamento daquele outro supermercado; estacionamos lá e tratamos disso. Está bem, anui. E, já que anui, disponho de uns quatrocentos metros de avenida, mais uns trinta de nova rotunda e outros tantos de acessos para pensar no assunto sem testemunhas da minha cogitação. Entro no parque e estaciono, mas o reclamante dá meia volta, estaciona do lado de fora, no acesso, já voltado para a avenida por onde mais tarde seguirá viagem. Espero por ele à entrada do supermercado, onde há gente que entra e que sai. Nos últimos quatrocentos e sessenta metros, pensei naquela factura que, generosa e degressivamente, passara de setecentos e cinquenta para trezentos e cinquenta, daí para duzentos e trinta, até acabar nuns redondos duzentos euros de reparação. Admirável aquela capacidade orçamentista! Invejável aquele espírito prático, revelador de estreita familiaridade com o real quotidiano! Não vou alinhar consigo, digo-lhe, e ele não consegue esconder um ligeiro espanto. Então o que fazemos? Vou-me embora assim, sem nada? Estou aqui a perder tempo e tenho lá em casa a minha avó com Alzheimer que já se quis atirar pela janela. Vá, dê-me cento e cinquenta euros; talvez eu consiga arranjar aquilo. Não quer?! Chamamos a polícia! Mas eu, moita-carrasco. Nem cem euros? E eu começo a ceder à tentação de lhe passar vinte euros para as mãos. Aquela perda de tempo… aquele empenho todo… Talvez dez euros. Então quer que fiquemos assim. Está bem. Felicidades para si. E, dizendo isto, aponta-me o punho fechado para o cumprimento agora em uso. Fique bem, digo-lhe eu. Sem toque de punho. Se ele tivesse insistido, ter-lhe-ia pago um café.