Suponho que as definições de ciência dadas pelos dicionários e pelos compêndios escolares dirão todas mais ou menos isto: conhecimento obtido a partir da observação e da experimentação. A observação, só, não chega: os nossos antepassados observavam a Terra e achavam-na plana (alguns nossos contemporâneos parece terem ainda essa crença), ainda que muitos já tivessem percebido que não era assim, muito antes da viagem de circum-navegação, que foi uma espécie de experimentação.
Peter Atkins, autor do interessante (e difícil) livro “Como surgiu o universo” (Gradiva), escreve o seguinte, a este respeito: «A ciência é severa: uma única consequência que entre em conflito com a observação basta para condenar uma hipótese à enorme sucata de ideias inúteis da História que se foi acumulando ao longo dos tempos; uma única consequência verificada mais não é do que um incentivo para perseverar na demanda, e não uma garantia de validade. As hipóteses amadurecem tornando-se teorias, à medida que as suas implicações – e nalguns casos previsões – se multiplicam e conformam com a observação, mas mesmo uma teoria que tenha sobrevivido até uma meia-idade confortável pode ser condenada por uma única consequência falsa.
Todas as ideias, em ciência, vivem na precariedade.» (p. 45)
Subscrevo inteiramente esta “descrição” e acrescento que a falibilidade, em ciência, é sinónima, ou factor, de credibilidade. Nada mais contrário à crença religiosa, cuja irracionalidade Tertuliano (pelo menos, é a ele que a frase é, geralmente, atribuída) assumiu com absoluta clareza: “credo quia absurdum”. Eu acredito na ciência porque sei que ela é falível e tem a honestidade de mo dizer, do mesmo modo que confio no médico que me diz receitar-me determinado medicamento ou propor-me certa cirurgia por estar esperançado, tendo em conta a sua experiência, de que resulte comigo. Pode não resultar? Pode. Mas a alternativa (sofrer indefinidamente ou morrer) não é satisfatória. Estando eu debilitado, se ele me prescrevesse uma sangria (como se fazia in illo tempore, e não me refiro à bebida com o mesmo nome), estaria, no fundo, a imitar Tertuliano: acredito que isto o vai curar porque é absurdo.
O que acontece com a “neurose obsessiva universal” (designação que, como saberá, Freud deu à religião, sendo que a vulgar neurose de qualquer um de nós é uma espécie de “religião individual”) é que me pede que acredite porque sim: Deus existe porque só assim se entende a existência do universo e, como somos todos pecadores, há que expiar os nossos pecados, batendo no peito, rezando muito, fazendo penitência, pagando o dízimo ou a indulgência. Enfim, não me alongarei, pois sabe isso tão bem ou melhor do que eu. O que também saberá é que Freud explicou a origem de tudo isto muito bem explicado em textos como “Totem e Tabu”, “Moisés e o Monoteísmo”, “Actos Obsessivos e Práticas Religiosas”, “O Futuro de uma Ilusão”. Obras que também nos permitem compreender a importância das crenças religiosas em geral para uma grande parte da humanidade, que, privada de mitos e fantasias, e não lhe bastando os contos de fadas infantis ou a ficção romanesca, talvez não aguentasse o impacto permanente de uma realidade nem sempre agradável. Quem escreve seriamente sobre isto, também, é Edgar Morin, que cito:
«A formidável colonização da vida humana pelo mito, pela magia, pela religião, testemunha a amplitude e a profundidade de uma solução neurótica, sem a qual a humanidade talvez não tivesse sobrevivido. A fórmula de T. S. Eliot ainda não deixou de ser verdadeira: «human kind cannot bear very much reality» (o género humano não pode suportar muita realidade).» (“O Paradigma Perdido”)
Igualmente com uma posição clara a este respeito, os materialistas dialécticos nunca isolam os aspectos “espirituais” dos puramente materiais. Eles sabem (como os existencialistas ateus) que a existência precede a essência, ou seja, que a infra-estrutura material, o ser social, é determinante, em última análise, da super-estrutura (consciência, ideias, crenças,…). Pragmaticamente, reconhecem que não é aconselhável retirar aos trabalhadores o ópio religioso que lhes alivia os sofrimentos corporais e sociais sem antes criar condições que lhes permitam encarar confiantemente o futuro cuja construção lhes incumbe. Cito Lénine: «(…) o jugo da religião sobre a humanidade é apenas produto e reflexo do jugo económico que existe dentro da sociedade. Não é com nenhuns livros nem com nenhuma propaganda que se pode esclarecer o proletariado se não o esclarecer a sua própria luta contra as forças negras do capitalismo. A unidade desta luta realmente revolucionária da classe oprimida pela criação do paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade de opiniões dos proletários sobre o paraíso no céu.» (“O Socialismo e a Religião”)
Mas o Gabriel Meiller é agnóstico. O que me surpreende em alguém que escreve no site Freud & Nietzsche, porque Freud era ateu, e Nietzsche, para além de ter matado Deus, desancou o cristianismo e todas as suas fantasias de forma violentíssima, para não dizer tresloucada, porque entre Freud e Nietzsche vai uma distância enorme, em termos de postura intelectual: o método de Freud é estritamente científico, e ele sublinha, vezes sem conta, a sua eventual falibilidade, as suas fontes, o cuidado que põe nas conclusões que tira; Nietzsche, pelo contrário, e sem contestar a sua genialidade, é torrencial, aforístico, profeta, parece aspirar a ser o deus que nega, em suma, é um propagandista. Sabemos da sua formação filológica e também da sua hereditariedade, educação, convívios, doenças, etc. Enfim, creio que nenhum deles acataria o seu relativismo conceptual, isto é, a ideia da incapacidade humana para “decidir” sobre a existência ou não existência de Deus.
O mesmo Peter Atkins que citei acima sobre o método científico, escreve isto: «O funcionamento do mundo foi, por alguns, atribuído a um Criador espantosamente metediço, mas incorpóreo, a guiar activamente cada electrão, quark e fotão até aos respectivos destinos. As minhas entranhas revolvem-se perante esta visão extravagante do funcionamento do mundo e a minha cabeça segue o mesmo caminho das entranhas.»
Cientista, Atkins não alimenta pruridos pretensamente filosóficos que, apoiando-se na falibilidade do conhecimento científico, acabam por legitimar qualquer embuste, pondo-o em pé de igualdade com aquilo que paulatinamente se vai sabendo com alguma segurança. Como tudo nos é dado pelos sentidos, a dúvida sobre a fiabilidade das impressões sensoriais levou, como sabe, a filosofia idealista a negar até a própria existência da matéria (Berkeley).
Quanto à impossibilidade de provar a inexistência de Deus, que diabo!!!, há imensas coisas que nós somos incapazes de provar sem que isso prove que elas existem. Conhece a parábola do bule de chá de Bertrand Russell? Não a transcrevo aqui para não me alongar ainda mais, mas pode lê-la na Wikipedia ou em “A Desilusão de Deus”, de Richard Dawkins. Muito resumidamente (a parábola tem outros desenvolvimentos): se me disserem, a mim ou a si, que, entre a Terra e Marte, há um bule de chá muito pequeno, em órbita, nenhum de nós será capaz de provar que não é verdade. Pela parte que me toca, recuso liminarmente a ideia absurda; o agnóstico sente-se na obrigação de provar que não há um bule de chá em órbita.
O cepticismo e a crítica da ciência – volta e meia, em moda nos círculos intelectuais – mais não fazem do que retirar legitimidade àquilo que se sabe (de ciência certa, passe a contradição com a já esclarecida relatividade da verdade…). Quanto aos argumentos da antiguidade e da universalidade, em matéria religiosa (a humanidade, desde sempre, acreditou; quem és tu, ateu, para duvidares daquilo em que a humanidade acredita?), o anarquista Bakunine, em “Deus e o Estado”, dá uma resposta eloquente. Não a resumo aqui, mas bastará recordar Galileu, para se ter uma pequena ideia da justeza das crenças da humanidade.
E, por falar em Galileu, cito um episódio que Stephen Hawking relata na sua “Breve História do Tempo”: em 1981, por ocasião de uma conferência organizada pelos Jesuítas no Vaticano, para a qual foram convidados vários especialistas em cosmologia e tendo como pano de fundo o “arrependimento” pela condenação de Galileu e da teoria heliocêntrica, aconteceu que
«No fim da conferência os participantes foram recebidos em audiência pelo papa, que lhes disse que estava certo estudarem a evolução do universo desde o big bang, mas que não deviam inquirir acerca da natureza do big bang, porque tinha sido o momento da criação e, portanto, trabalho de Deus.»
O que satisfez Hawking foi o papa ter ignorado a sua contribuição para a conferência. É que
«a possibilidade de o espaço-tempo ser finito, mas ilimitado […] significaria que não tinha tido um princípio e que não havia qualquer momento de criação.»
E conclui:
«Não tinha qualquer desejo de partilhar a sorte de Galileu, com quem me sinto fortemente identificado, em parte devido à coincidência de ter nascido exactamente trezentos anos depois da sua morte!»
“Como te atreveste, assassino, a contrariar o meu projecto, é assim que me agradeces ter-te poupado a vida quando mataste Abel, perguntou o senhor, Teria de chegar o dia em que alguém te colocaria perante a tua verdadeira face”
José Saramago, Caim
U
sserius, bispo de Meath, arcebispo de Armagh e chanceler-mor da Sé de S. Patrício, citado por Eça de Queirós, cujas palavras reproduzo, no seu conto “Adão e Eva no Paraíso”, afirma que “Adão, Pai dos Homens, foi criado no dia 28 de Outubro, às duas horas da tarde…” Julgo saber, doutra fonte, que o mesmo erudito clérigo irlandês situou a Criação no ano de 4004 antes de Cristo. Se esta última datação não me parece passível de dúvida, já em relação à primeira, pese embora a idoneidade do setecentista prelado anglicano, tenho fundadas razões para a sujeitar ao crivo de uma análise mais fina. Com efeito, o meu ilustre e, infelizmente, malogrado amigo Frei Bento da Anunciação, teólogo de renome no círculo das nossas comuns amizades e autor de copiosa bibliografia nas áreas das ciências cosmogónicas e escatológicas, publicada a expensas do próprio, tinha uma leitura, neste e noutros particulares, heterodoxa. Garantia-me o meu religioso amigo que, naquele dia, e após as trabalhosas ocupações a que entretanto se entregara – a saber: separar a luz das trevas, logo no primeiro dia, criar os Céus, no segundo, colocar Terra e Mares no seu devido lugar e promover o crescimento de plantas, no terceiro, dispor os astros no firmamento, no quarto, e povoar os ares e as águas de aves, répteis e baleias, no quinto, e vigésimo sétimo do mês de Outubro –, Deus considerou que a parte do Seu projecto ainda por concretizar, a criação do homem, era demasiado importante para lançar mãos à obra sem, ao menos, Se conceder um dia, não de descanso, o que a Sua perfeição dispensava (pese embora a lamentável e absurda referência que a Sagrada Escritura faz a tal respeito), mas de reflexão, que essa, sim, é atributo inalienável da divindade. O sexto dia foi, pois, para o Senhor, o dia da reflexão. Ora a reflexão induz geralmente decisões mais judiciosas do que aquelas que a acção irreflectida produz, e foi assim que Deus se viu confrontado com uma angustiosa (mas oh! quão produtiva) dúvida que, quase seis milénios volvidos, isto pelos cálculos do nosso estimado Usserius, pode muito bem ter contaminado o pensamento existencialista, v.g. no particular da angústia existencial. A qual dúvida enunciou nos seguintes termos, decerto imbuídos de plebeísmo e impróprios para Deus, mas cuja fidedignidade o meu amigo Frei Bento asseverava: estando Eu só, num universo que, em cinco dias, tirei do nada, qual a pressa de aqui pespegar um ser decerto repleto de qualidades, ou não fosse minha criação, mas bem menos interessante do que aqueloutro que tenho em mente criar a seguir? E foi assim que, no dia seguinte, sétimo da criação, se bem que vigésimo oitavo do mês de Outubro, Eva foi criada, na douta conclusão do meu amigo teólogo, a quem a determinação da hora do evento motivou aturado estudo, o qual produziu sérios indícios de que teria ocorrido às primeiras horas da manhã, ou não estivesse o seu Autor interessado em desfrutar ao máximo de tão prazenteira criação. E Adão teve de esperar pelo nono dia. Sim, porque o oitavo dia, o oitavo dia já nós veremos, seguindo a lição do meu saudoso Frei Bento, que destino lhe deu o Senhor.
Exposta, pois, esta primeira discrepância, cujas consequências nos calendários só não são devastadoras porque a tese de Frei Bento da Anunciação não logrou ultrapassar os umbrais do mosteiro onde dedicava o seu santo ócio ao estudo destas espinhosas questões, passemos ao meu humilde relato. E que relato me proponho eu fazer, perguntar-me-ás, leitor. Ao que te responderei que, encorajado pelas lúcidas pesquisas de Usserius e alimentado pelas surpreendentes conclusões a que Frei Bento chegou, me persuadi de que, não obstante a pequenez que me tolhe os movimentos e me prende ao barro de que provimos, eu próprio seria capaz de criar um modesto relato dos primeiros tempos que Deus e as suas primordiais criaturas viveram nesse jardim das delícias que era o Éden. Não uso aqui o verbo com o significado que a religião lhe dá – o de tirar daquela espécie de cartola de mágico que é o nada –, mas antes na acepção comezinha com que a humanidade se tem contentado, desde sempre, vedado que lhe está o acesso às artes do Criador, e que é, corriqueiramente, o de haurir algures – o Génesis, Primeiro Livro de Moisés, e o Cântico dos Cânticos, para este efeito – a matéria-prima que, depois de devidamente saboreada, insalivada, isto é, confrontada com os dados fornecidos pelo meu amigo teólogo, e assimilada, é vertida em letra de molde. Vamos, então, aos factos.
Tendo, pois, criado a mulher à Sua imagem, com recurso não só ao pó da terra, como conviria ao seco e desenxabido Adão, mas também aos mais vistosos e suculentos pomos que as árvores do Éden já ostentavam, e tendo “inspirado em seu rosto um assopro de vida”(G: 2,7), Deus a levou a passear no jardim, que dotara da mais variada flora, particularmente de espécies arbóreas com aptidão fruteira, e, mais particularmente ainda, da árvore da ciência do bem e do mal, a qual virá a desempenhar papel de relevo nesta história e, por via disso, na história de todos nós. Ora as árvores carecem de rega e as do Éden não constituíam excepção à regra, razão pela qual, mas também para conceder à Sua criatura a possibilidade de se refrescar, Deus colocou neste Seu jardim um rio com quatro braços, a saber, o Fison, que banhava e rodeava o aurífero país de Evilath, o Gehon, que levava as suas águas à Etiópia, o Tigre, vizinho dos assírios, e o Eufrates. Foi neste último que Eva quis banhar-se, ia o Sol no zénite, depois de ter percorrido, de mãos dadas com o Senhor, as duas léguas que os separavam das terras que, mais tarde, viriam a ser as de Sinear. Eva abandonou a mão do Senhor, que a ficou observando com ternura, enquanto percorria os poucos metros a que estava da margem baixa coberta de agriões e hortelã. Ela tinha já, com seis mil anos de antecedência, a coruscante beleza das criaturas que pululam hoje nas pantalhas dos cinemas. Avançava pé ante pé, com requebros moderados nos quadris desenhados com sábia perícia, detendo-se agora e logo como que a medir a distância do perigo e a ousadia necessária para o enfrentar. Os longos cabelos sedosos pendiam-lhe sobre as costas e esvoaçavam ao sopro ligeiro de um zéfiro tresmalhado. E, à medida que avançava, Deus não parava de bendizer a hora em que lhe acudira ao espírito a ideia de postergar a criação do homem a favor da criação da mulher. Eva entrou na água morna do Eufrates, que, naquele ponto, deslizava com doçura e redemoinhava num refego da margem, e foi avançando até que a água lhe cobria já a curva da anca. Mas quando tudo parecia indicar que a primogénita da humanidade não tardaria a ensaiar as primeiras braçadas, eis que Eva se afunda, volta à tona, se debate e dá sinais de grande aflição. O Criador, por seu turno, ciente da sua proverbial omnipotência, não se inquieta. Eva nada perderia em desconfiar doravante dos perigos que o leito dos rios encerram. Porém, Eva suplicava a ajuda da divina Providência, e o Criador, na Sua imensa sabedoria, conveio que era chegada a hora de lha providenciar. Despida a túnica que Lhe cobria o corpo desde todo o sempre, entrou no Eufrates e nadou até Eva, que se Lhe prendeu ao pescoço com a fúria do náufrago. Deus afagou-a, tranquilizou-a e, vendo-a ali tão perto de Si e tão meiga e sentindo-lhe o aveludado da pele, não pôde evitar um breve devaneio, mais próprio de uma mortal criatura, de que logo se arrependeu: Meu Deus, como é bela a obra que criei. E, ressalvada a incongruência do desvario, digno de exprobração, tinha razão o Senhor, porque de todas as criaturas que, desde o quinto dia da Criação, povoavam a terra, o ar e os mares, Eva era, sem dúvida, a mais perfeita. Não só a mais perfeita. Era também a mais encantadora, no sentido pleno do termo, pois, recém-criada, Eva detinha já esse poder sobrenatural de subjugar e de atrair a si que, nos séculos que se seguiram, não deixaria de aperfeiçoar. Que podia a omnipotência de Deus perante aqueloutra omnipotência? Nada. E o Senhor disse então: Sejamos felizes. E sucumbiu. Sucumbiu ali mesmo, na margem baixa do Eufrates, em leito perfumado de hortelã e agrião.
O Sol, estrela jovem de dois dias, escondera-se já para além das terras que viriam a ser de Lubim, Deus e Eva experimentavam ainda as delícias por que também é conhecido o jardim do Éden. O sétimo dia, o da criação da bem-aventurança, finava-se. Deitados lado a lado, ambos seguiam, na cúpula celeste, o majestoso espectáculo de milhões de minúsculos olhos brilhantes que os contemplavam na Terra. E viu Deus que era bom. E disse a Eva que, ao outro dia – o oitavo, como sabemos – iriam ambos dar um passeio para os lados da terra de Elam, filho de Sem. Ora, vendo-a circunspecta, perguntou-lhe o Senhor o porquê de tal cogitação, ao que Eva retorquiu com a sua ignorância de que, naquele jardim, houvera mais gente. O Senhor apercebeu-se, então, de que, por razões de comodidade, vinha usando a sua omnisciência para nomear terras e criaturas que ainda não existiam, e mostrou-se pesaroso. E Eva achou graça à Sua humilde contrição. E acarinhou o Senhor. E ao oitavo dia foram ver as terras de Elam, filho de Sem. E, quando repousavam num vergel onde um regato rumorejava por entre oliveiras, palmeiras, figueiras e cedros, Deus entendeu, na Sua infinita sabedoria, que era chegada a hora de revelar a Eva a derradeira parte do Seu projecto. E, sentando-se ambos entre os nardos que por ali floriam, disse-lhe o Senhor Deus: Não é bom que a mulher esteja só, far-te-ei um adjutório semelhante a ti. Eva não compreendeu de imediato a necessidade de um coadjutor, mas Deus lhe disse que o jardim do Éden era para lavrar e guardar, e Eva acatou a determinação do Senhor. E assim se passou o oitavo dia, até que a noite chegou. E, tendo-a ambos passado ali mesmo, ao outro dia se puseram a caminho da margem onde, na antevéspera, Eva se fizera à água e fora salva pelo Senhor. E, fosse da violência da marcha, fosse do vigor do sol, Eva, que suava, deixou-se cair sobre pedras angulosas que juncavam o chão e feriu-se. E disse o Senhor que era bom. E, pela primeira vez desde que o mundo era mundo e ela a ele viera, Eva não entendeu o Senhor. Como podia Ele, na Sua tão grande sabedoria, achar bom o sofrimento? E pensou que a atitude do Senhor para com ela era o Mal. E não lhe ficou grata. E por isso, chorou. Chorou e logo adormeceu. Deus recolheu então em Suas mãos uma gota do sangue de Eva, uma gota do seu suor e duas das lágrimas que se lhe escorriam das faces, e com elas amassou uma mão cheia de barro que daquele mesmo chão por eles pisado tirou. E, tendo brevemente esculpido uma figura humana naquele pedaço de nada, ali mesmo lhe insuflou o sopro da vida e o homem foi feito alma vivente. Não tardou muito que Eva acordasse, refeita da queda e do cansaço. E logo percebeu que Deus acabara de criar o seu adjutor, conforme lhe fora prometido. E ambos estavam nus, e não se envergonhavam. E, tendo Deus concluído a Sua obra, afastou-se, deixando-os sós para que se conhecessem.
O nono dia aproximava-se do seu termo e Deus experimentava o renovado sentimento da solidão. Para trás ficavam séculos e séculos de uma existência vazia e absurda a que a Criação viera, enfim, dar um sentido. Concluída a Sua obra, deixados os astros, a terra e os mares, animais e plantas, mulher e homem entregues a si mesmos, nada mais Lhe restaria do que observá-los à distância, seguir-lhes os movimentos e julgá-los pelas suas acções ou omissões. E Deus achou que não era bom. E ficou de ânimo sombrio, como noite tormentosa. E a imagem de Eva volvia-Lhe incessantemente ao espírito, tal presença material. E, no seu sofrimento, sempre que a imagem de Eva se fazia presente ao seu espírito torturado, proferia palavras que ofendiam a sua habitual sensatez e que, invariavelmente, descreviam a harmonia do corpo de Eva, a sua perfeição divina, e a comparavam com tudo o que de mais belo, de mais saboroso, de mais agradavelmente perfumado e de mais enternecedor Ele tinha logrado criar durante os árduos dias daquele primeiríssimo mês de Outubro. O nardo e a madrágora, o incenso e a mirra, o cedro e o cipreste, a açucena, a romã e o açafrão, o aloé e o cinamomo, o mel, o vinho e o leite, o regato e a fonte, a pomba e o cabritinho, o lírio e o jacinto, o marfim e a safira, o mármore e o nácar, a prata e a púrpura – eis os vocábulos que da boca do Senhor manavam como jorros cristalinos brotando de nascente.
Entretanto, sozinhos no Éden, Eva e Adão inventavam um léxico para a fauna e a flora de que cada elemento lhes inundava a alma de um indizível deslumbramento. Alternadamente, ora Eva perguntava Que planta é esta? e Adão respondia É o cálamo, ora Adão perguntava Como se chama esta ave, ao que Eva tornava É o flamingo. E esta árvore?, perguntaram ambos, ao deparar com uma que se encontrava no meio do jardim e cujos frutos se assemelhavam a maçãs. Podiam ter-lhe chamado macieira, mas, por razões que escapam à compreensão humana, Eva e Adão hesitaram e decidiram colher um dos seus frutos. Talvez o sabor do fruto lhes desse o significante de que careciam. Porém, aconteceu que o Senhor Deus passeava no jardim pela viração do dia e os viu. Ainda mal tinham erguido o braço na direcção do ramo mais baixo da árvore, quando um trovão os fez estremecer. O Senhor Deus interpelava-os, irado e vociferante: Esta é a árvore da ciência do bem e do mal e esse o seu fruto; não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais. Transidos de medo, Eva e Adão entreolharam-se e abraçaram-se. E, feita a advertência, o Senhor deixou-os, ainda iracundo, e retirou-se para um canto do universo. Estavam agora cientes de que a desobediência à determinação divina teria um preço. Eva, contudo, recompôs-se rapidamente do pavor experimentado minutos antes. E, caindo em si, considerou que aquela atitude divina não se ajustava à imagem que guardara do Criador desde que Este lhe insuflara a vida. Nenhuma semelhança entre o ser terno e gentil que a levara a conhecer o jardim para os lados da terra de Elam, filho de Sem, que a salvara, quando quase se afogara no Eufrates, e que partilhara com ela tantos afagos, tantos momentos de bem-aventurança, apenas uns dias antes. Naquele pequeno conjunto de memórias, apenas uma, fugaz, mas ainda assim impressiva, destoava: a reacção do senhor perante a sua dor, ao cair e ferir-se. Mas não, uma pequena nota discordante não podia ofuscar toda a soma de lembranças felizes que lhe acudiam. Para Eva, aquela interdição rude e absurda só podia ser chiste. E, mesmo que chiste não fosse, obedecer ao decreto do Senhor também tinha um preço, qual seria o da ignorância para todo o sempre. E aqueles frutos eram magníficos. E não só eram magníficos como eram, o Senhor o dissera, a chave do conhecimento do bem e do mal. Porém, que mal e que bem poderiam ser-lhe dados a conhecer, se ela experimentara já todo o bem que Deus lhe prodigara e o mal, ainda que em menor grau, com a sua queda e, agora, com a proibição de comerem daquele fruto? Eva tinha sede de saber. Não já Adão, que, de cenho franzido, via a mulher meditar e tremia como varas verdes. Afastemo-nos daqui, disse-lhe, que é vontade do Senhor mantermo-nos longe desta árvore. E Eva soube que não podia ceder ao medo que tolhia os movimentos do seu companheiro. Talvez fosse temerário, mas aquele passo havia de ser dado, ou para sempre a torturaria o remorso de haver abdicado do conhecimento. E estendeu o braço, desobedecendo ao Senhor, e comeu o fruto proibido, e o quis dar a provar ao companheiro, que recusou. E Eva, que pressentia a sua omnipotência desde que estivera com o Senhor, acarinhou Adão, e Adão sentiu as suas forças cederem perante a insistência de sua mulher. E provou do fruto proibido. Ora, ambos estavam nus, como sempre haviam estado, desde a sua recente chegada ao paraíso. E, ao comerem do fruto proibido, ambos souberam da sua nudez. Adão teve então um movimento de recuo e quis cobrir as suas partes pudendas com um pâmpano. E Eva sorriu, acarinhou-o, e, percebendo que o conhecimento da nudez era consequência de haverem comido do fruto proibido, o disse a Adão e lhe fez compreender que taparem-se seria denunciar-se, ao que Adão contrapôs a omnisciência do Senhor. E, de novo, sorriu Eva perante a candura de seu companheiro: O Senhor não sabia que íamos colher o fruto da árvore, por isso se irou, e não saberá que comemos do fruto da árvore, enquanto não lhe dermos provas disso. Adão, porém, não se dando por vencido, retrucou com a inconveniência de as criaturas de Deus pretenderem abrir os seus olhos e, com isso, igualar-se-Lhe, conhecendo o bem e o mal. E, desta vez, Eva não retorquiu. Porém, percebeu quão difícil era a arte da persuasão e mais se firmou na convicção de que lhe cabia experimentar tudo aquilo que se lhe apresentasse.
A vida no Éden seguiu o seu curso feito de aprendizagens sucessivas, de repetidos deslumbramentos, de contrariedades momentâneas e de incipientes colóquios. E a afeição entre ambos prosperava, na medida em que crescia o seu conhecimento do jardim. Ora, enquanto isto, nos confins do universo, Deus interrogava-se sobre as razões dos seus actos, sobre o critério das suas opções e, em última análise, sobre a sua própria identidade: Quem sou Eu? Donde venho? Para onde vou? E como as respostas apontassem sempre para Si mesmo, sentia-se só e desacompanhado. Porém, nunca estivera tão acompanhado. E sofria. A eternidade nunca lhe propiciara percalços de maior; a pura consciência deixava-se-Lhe fluir, fora do tempo, num torpor infinito, até aquele momento inaugural em que uma ideia, subitamente, como uma chama, Lhe incendiou o espírito, que era levado sobre as águas (G. 1;2) e Ele disse: Faça-se a luz (G.1;3). Porque a esse momento seguiram-se todos os outros que haviam de ver surgir os céus e a terra, a luz e as trevas, os mares e a erva e as árvores e os luzeiros do céu e os répteis e as aves e os peixes e as bestas da terra. E a mulher. Ora a sua obra era vasta e perfeita, porém o Senhor estava mais só do que nunca e sentia que Lhe faltava uma dimensão, que Eva lhe permitira partilhar. Por isso, sofria, no canto do universo para onde se retirara. E dos lábios do Senhor começaram então a brotar palavras que a Sua omnisciência Lhe ditava, mas que, em boa verdade, só muito mais tarde deveriam ser pronunciadas pela primeira vez, e em contexto profano. E estas palavras, longe de Lhe serem refrigério, desconsolavam-no. Dizia o Senhor: Eis que és formosa, minha amiga, eis que és formosa; os teus olhos são como os das pombas entre as tuas tranças; o teu cabelo é como o rebanho de cabras que pastam no monte de Gilead. Depois, permanecia um instante silencioso, e retomava: Os teus lábios são como um fio de escarlate, e o teu falar é doce; a tua fronte é qual pedaço de romã entre as tuas tranças. Mais uns instantes de mutismo e, de novo, incontrolável, a verve do Senhor: Os teus dois peitos são como dois filhos gémeos da gazela, que se apascentam entre os lírios. E, finalmente, quase num estertor, o olhar perdido nos luzeiros do céu: Que belos são os teus amores, irmã minha! ó esposa minha! quanto melhores são os teus amores do que o vinho! e o aroma dos teus bálsamos do que o de todas as especiarias! Favos de mel manam dos teus lábios, ó minha esposa! mel e leite estão debaixo da tua língua, e o cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do Líbano. E, chegado aqui, o Senhor chorou.
Ora foi num destes momentos tormentosos que o Senhor, de si para consigo, disse que não era bom deixar-se abater por tão transcendente provação. E nesse dia desceu ao Éden. E, tendo o Senhor descido no centro do delicioso jardim, ali bem perto da árvore da ciência do bem e do mal, eis que uma serpente dele se acerca e Lhe cicia num silvo: Desobedeceram-te os dois a quem proibiste que comessem do fruto desta árvore, mal os deixaste. Dito isto, a serpente afastou-se, com desdém. Porém, o Senhor confiava na sua omnisciência e à serpente não se lembrava de lhe ter concedido o dom da fala. E o Senhor procurou Eva e o seu adjutório, Adão, para deles saber a verdade. Ora as suas criaturas, ainda maravilhadas com o quotidiano labor de descoberta de tudo quanto as cercava, mostraram-se ao Senhor na sua nudez primitiva e investidos da mais pura ingenuidade, perante o que o Senhor hesitava em fazer-lhes a pergunta que a denúncia da serpente justificava. Adão, contudo, passado o primeiro momento do encontro, dava alguns sinais de nervosismo que não passaram despercebidos ao Criador. E o Senhor disse: Tereis, porventura, desobedecido à minha proibição de comerdes do fruto desta árvore. Ao que Eva, sem hesitar, respondeu negativamente, ao mesmo tempo que, com astúcia, levava Adão a olhar para a árvore da vida ali ao lado. E como, do fruto da árvore da vida, nem um nem outro houvessem comido, Adão pôde, sem temor nem hesitação, dar resposta igual à de sua mulher, com isso deixando tranquilo o Senhor. Não fora, porém, intuito do Senhor, ao deslocar-se ao Éden, inteirar-se das acções de Eva e de Adão. O que o movia era, sim, o desejo que, agora, estando ali, junto deles, se Lhe afigurava medonho, vil e ultrajante, e que era o de estar a sós com Eva. E o Senhor sentia-se incapaz de conter o ímpeto que o arrebatava e impelia na direcção dela. E infundiu, então, um sono profundo em Adão, tão profundo que bem lhe pudera arrancar uma costela que ele nada houvera sentido. E, vendo nos olhos de Eva a mesma chama que o consumia, lhe disse que iriam junto do Eufrates colher a flor do nardo e da açucena e beber um vinho capitoso. Puseram-se ambos a caminho, porém, a urgência do que os impelia não consentia a demora da caminhada. Era agora a viração do dia e, sem mais detença, ali mesmo, a escassa distância das árvores da ciência e da vida gozaram a bem-aventurança que antes haviam experimentado junto do Eufrates. E entregaram-se ao seu terno desvario com a despreocupação própria dos justos e por uma parcela da eternidade. Ora Adão voltara a si e, erguendo-se do leito de urze e rosmaninho onde o sono o embalara, estranhou não ver a companheira nem o Senhor. E não os houvera encontrado, não fora a serpente sair ao seu encontro e, com a mesma ardileza de que dera mostras com o Senhor, lhe ciciar: Seguindo este trilho, bem podes estar seguro que não morrerás de morte e que se abrirão os teus olhos. E Adão não tardou a ver a sua companheira com o Senhor, sem que, todavia, estes o vissem. E no espírito de Adão se formou, então, um desígnio obscuro que se apossou dos seus braços. E Adão ergueu do chão uma pesada pedra e, aproximando-se do Senhor, Lha descarregou na cabeça.
Não deu acordo de si o Senhor, nem nesse infausto dia 17 de Novembro nem no dia que se lhe seguiu. Porém, ao terceiro dia se ergueu com esforço do chão em que jazia. De nada do que se passara antes se lembrava, e, porventura, ter-se-ia posto em marcha para qualquer outro esconso do universo infindo, não tivesse estranhado a poça de sangue que assinalava o exacto sítio onde repousara a Sua divina cabeça ensanguentada. Cogitou então longa e profundamente sobre o que poderia ter acontecido, mas sentia que o Seu espírito nada lograva vislumbrar, para além do que de mais imediato se lhe apresentava, qual fosse o esforço feito para se erguer e a cefaleia que o atormentava. O Senhor sofria, pois. E achou, na Sua agora diminuída sabedoria, que não era bom sofrer fisicamente, nem, muito menos, sofrer por ignorar o que poderia estar na origem de tal sofrimento.
Neste entretanto, Adão fora já severamente admoestado por sua mulher, nossa mãe comum, que lhe fizera sentir a inconveniência grosseira da agressão perpetrada, facto que, para além do mais, lhes poderia valer sérios dissabores na sua caminhada futura por um Éden recém-emancipado da tutela divina e, por essa via, entregue ao acaso. E, para mais vincadamente o levar a capacitar-se da sua iniquidade, recusara-se, desde o dia infausto, a com ele se recostar, o que trazia o inditoso Adão mergulhado numa melancolia infinita. Ora, foi numa das alturas em que Adão se explicava junto da sua agora temível companheira que o Senhor deles se aproximou, curioso que estava de indagar se àqueles dois se propiciara a oportunidade de testemunhar aquilo que o vitimara. E eis que, ao aproximar-se, pôde claramente ouvir o diálogo que aqui fielmente se transcreve, assaz surpreendente pelo precioso do estilo, mas sobretudo esclarecedor, pela riqueza do conteúdo: ─ Não me acuses, Eva, do que mal sabes; se o não matasse, como saber se do homem se de Deus serão, para além de teus, os filhos que conceberes? ─ Se todos os filhos que tivermos serão, como nós, filhos de Deus, como queres fazer tal destrinça? Contenta-te com a suma bênção de partilhar com o Senhor a sementeira que ele quis ter em mim.
Foi profunda a surpresa do casal edénico, persuadido que estava do passamento do Criador, e infinita a ira deste. E assim, sem mais detença, o Senhor expulsou o homem do jardim do Éden: ─ Pois que quiseste a morte do teu Senhor, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos e cardos também te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás. Depois, ordenou a dois querubins armados de espadas flamejantes que guardassem a árvore da vida, não fosse Adão estender a mão, dela tomar e, comendo do seu fruto, viver eternamente. Não assim com Eva, de quem o Senhor não podia, ainda que quisesse, separar-se para todo o sempre. Recordou, então, os desvarios por que passava sempre que a ausência de Eva o deixava mergulhado na solidão do universo. E, de novo, palavras saídas do mais fundo da sua alma lhe brotavam dos lábios como água cristalina de nascente: Os teus lábios são como um fio de escarlate, e o teu falar é doce; a tua fronte é qual pedaço de romã entre as tuas tranças. E mais: Os teus dois peitos são como dois filhos gémeos da gazela, que se apascentam entre os lírios. E só não sentia o incómodo do plágio porque, em boa verdade, seria Salomão, muito tempo volvido, quem viria a beneficiar de divina inspiração.
Por isso, suplicou a Eva que deixasse o desventuroso Adão entregue à sua sorte, ou não tivesse ele infringido as ordens divinas. Não foi esse o querer da nossa antiga mãe. Ainda se lembrava da reacção do Senhor, aquando da sua queda, quando ambos seguiam para os lados das terras de Elam, filho de Sem, a caminho do Eufrates. Também o rancor patenteado pelo Senhor, ao expulsar Adão do Éden, a chocara. Porém, o que mais verdadeiramente a afastava do Senhor era a convicção de que, com Ele, o seu destino seria o desconhecimento. Ora Eva, já o dissemos, tinha sede de saber. E, isso, o Senhor via-o agora, com toda a clareza. Por isso a fulminou: Tu em dor parirás teus filhos, e estarás sob o poder de teu marido, e ele te dominará.
Começaram, então, para os nossos pais ancestrais os trabalhosos dias da sobrevivência, numa terra inóspita que o Senhor semeara de espinhos e cardos. Do raiar da alva até ao último suspiro do dia, Adão moirejava sob o sol ardente, enquanto Eva o dessedentava, lhe enxugava o suor do rosto e procurava algo mais do que a erva do campo a que o Senhor lhes limitara a dieta. Porém, Eva penava, pesado que estava o seu ventre. E foi assim que veio a parir a Caim. E disse: Alcancei do Senhor um varão. Disse bem Eva, porque apenas três meses eram passados desde que ambos haviam sido expulsos do Éden e aquele primogénito era, efectivamente, filho do Senhor, que não de Adão. O que não obstou a que este o tratasse como se seu fora, mesmo depois do nascimento de Abel, esse, sim, concebido por Eva já muito depois da expulsão do Éden.
Caim e Abel. Irmãos por metade e quão diferentes em tudo. Se Abel brincava com o anho que a mãe trazia para junto do fogo no Inverno, logo Caim lho puxava, querendo-o só para si; se o pai a ambos dava o fruto doce e sumarento da tangerineira, logo Caim privava o irmão da sua parte e lha comia. E assim cresceram, entre birras e disputas, cobiças e despeitos, invariavelmente vindos de Caim. Fizeram-se homens. Caim foi lavrador, Abel, pastor. E tendo Abel levado a pastar as suas ovelhas, uma delas entrou numa leira onde Caim cultivava as berças que, de mau grado, partilhava com a família. Tanto bastou para que Caim se levantasse contra Abel e o matasse. Em vão, tentou o pai chamar Caim à razão, mostrando-lhe a fealdade do seu acto e a vida de pecado para que parecia encaminhar-se. Caim, porém, não mostrou arrependimento, antes decidiu abandonar os pais e errar pela terra.
Para Eva e Adão, esse foi sombrio período de desavença e malquerer. Por certo, nunca Adão pensara em enjeitar a companheira do Éden, nem sequer o primogénito em cujas veias corria um sangue que não era o seu, ainda que lhe não fosse por inteiro estranho. Porém, aquela malquerença de Caim não só o intrigava como o indignava, e nisso Eva tinha a sua quota-parte de responsabilidade, que se mancomunara com um terceiro, inaugurando assim uma tradição que viria a ser cultivada indistintamente pelas suas semelhantes e pelos descendentes de seu homem. Invariavelmente, nas suas quezílias domésticas, o mau carácter de Caim era mote e era refrão. De tal modo que só cento e trinta anos mais tarde, já depois de volvidos os funestos acontecimentos que viriam a enlutar o universo, um novo varão viria amparar a solidão dos nossos pais primordiais e substituir Abel no seu malferido coração. A este terceiro rebento chamariam Seth, e muitos outros filhos e filhas teriam, nos novecentos e trinta anos que Adão viveu.
Mas Caim? Por onde andaria Caim, enquanto os pais, sozinhos, se mortificavam pelo seu comportamento infamante e pelo decesso do irmão assassinado? Caim vagueava por terras a oriente do Éden. E foi vagueando que encontrou sua mulher, a quem nome não foi dado. Ora este encontro fortuito causou profunda consternação no espírito de Caim, intrigado com a existência de um ser semelhante a sua mãe à flor da Terra, não fossem Eva e Adão, seus pais, as primeiras criaturas que a haviam ocupado, sem que, para além de si mesmo, Caim, e de seu irmão assassinado, houvessem procriado fosse quem fosse. E Caim, por muito que sua alma empedernida resistisse ao assalto das emoções, percebeu, mortificado, que o Senhor se entregara a uma abominável mistificação, fazendo crer a seus pais que os havia criado, a eles, exclusivamente, para que, crescendo e multiplicando-se, povoassem montes e vales, outeiros, colinas e combas. Afinal, tal tarefa, incipientemente encetada, revelava-se quase desnecessária. E se, para além de seus pais, de seu irmão malogrado e dele mesmo, havia a sua mulher, quem lhe garantia que não existiriam ainda outras criaturas iguais a eles?
Havia. E Caim soube que o Pai Criador tirara outras Evas do pó da terra, ao qual invariavelmente adicionara os pomos mais vistosos e suculentos das árvores do Éden. E que, com sangue, suor e lágrimas de cada uma delas, moldara um seu adjutor. E que com todas elas se recostara, desencadeando fúrias inconsequentes dos homens e fratricídios semelhantes ao que ele mesmo cometera. E que, doravante, vezes sem conta, os homens se levantariam uns contra os outros, irmão contra irmão, filho contra pai, pai contra filho. E que o seu sangue correria em rios de ódio. E que em Seu nome o pai sacrificaria o filho amantíssimo. E que dilúvios os afogariam. E cidades inteiras seriam consumidas pelo fogo. E disse Caim: Nenhum de nós é filho do homem, todos somos filhos de Deus, e é Ele quem semeia a discórdia entre nós e nos conduz para a guerra. E no espírito de Caim se formou, então, um desígnio obscuro que se apossou dos seus sentidos e pôs uma determinação no seu ânimo: só com a morte do Senhor ele poderia ser livre.
Ora, estando a mulher de Caim entregue às tarefas de sua casa, enquanto Caim labutava no meio da várzea pedregosa, sob o braseiro do sol, eis que o Senhor entra em seu pobre lar. Sobre a mesa tosca onde homem e mulher rilhavam parcos alimentos, o Senhor deixa cair Seu manto. Familiarmente se aproxima da dona de casa ancestral e cicia-lhe algo que a perturba. Ela hesita, mas o Senhor é persuasivo e Sua palavra omnipotente, e ambos se afastam para um esconso da casa. Porém, Caim tem sede, está cansado. Alça a enxada ao ombro e vai em busca de refrigério. Faz fresco no lar, e os poejos colhidos por si ao despontar do dia rescendem na penumbra interior. Eis que Caim atenta no manto. Aquele manto que só pode ser o manto do Criador. E Caim aproxima-se do esconso. Cruel desconfiança lhe corrói o coração. Não se enganou. Ergue, então, no ar a sua pesada enxada e, aproximando-se do Senhor, Lhe fende a cabeça de um golpe certeiro.
No dia em que me contou estes infaustos episódios, o meu amigo Frei Bento da Anunciação pareceu imitar o Criador: se não expirou, pelo menos suspirou, pungido. Aquela era a conclusão a que ele desejara nunca ter chegado: a morte de Deus era também a morte das suas convicções e o ruir do seu ministério. Senti-me na obrigação de o confortar, chegando ao extremo de lhe sugerir, eu que não fui tocado pela graça da fé, a possibilidade de erro na sua investigação, a eventualidade de apocrifia dos documentos em que fundara o seu estudo, a inverosimilhança até de uma morte que deixava o universo à mercê do acaso. Numa última tentativa de o animar, sugeri-lhe que talvez Deus se tivesse humanizado, isto é, que talvez tivesse encarnado na humanidade, entendida no seu todo. Pois não era a humanidade sumamente criadora, sabedora, presente em todo o lado e até imortal? Em vão. Frei Bento estava sinceramente persuadido de que Deus morrera, o que fazia da sua vida um completo absurdo. E, contrariamente ao anacoreta que, movido pela fé, se retirava para o deserto, a fim de aí, na penúria, na mortificação e no isolamento, encontrar Deus e com Ele dialogar, sem ruídos, sem interferências, sem quebra da união mística, ele retirou-se, sim, mas para o descampado da vergonha e da ignomínia, entregue à luxúria mais aviltante e à vileza mais torpe. Deixei de o ver. Soube, há dias, pelos jornais, que fora encontrado sem vida, num aterro sanitário. No crânio, ostentava uma ferida profunda. Como se uma pesada enxada lho tivesse fendido.