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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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O Auto das Barcas, de Gil Vicente, em leitura de Noémio Ramos

Auto das Barcas, Noémio Ramos 001 (1).jpg

N.B. Este post foi redigido em 1 de Julho de 2019 e diz respeito ao título Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente, Inferno... a interpretação - I, embora só tenha sido publicado nesta data, portanto dois anos mais tarde. A imagem ao lado pertence a um novo livro de Noémio Ramos, publicado em Outubro de 2019, que abarca as três partes do Auto das Barcas, Inferno, Purgatório e Glória, e que não é contemplado por este post.

Noémio Ramos é um estudioso. E um polemista. Com uma já vasta produção no domínio da investigação vicentista (desde 2008, publicou mais de dúzia e meia de livros sobre a obra do dramaturgo), acaba de lançar um novo volume, desta feita sobre Inferno, a primeira parte do Auto das Barcas, no ano em que passam quinhentos anos sobre a sua publicação. E é precisamente neste título ‒ Inferno ‒ que reside uma das primeiras farpas do polemista à “académica erudição vicentista”[1] instalada e às Direcções Gerais das Artes e da Educação, pois, contrariamente ao que se tornou regra afirmar, não há um Auto da Barca do Inferno, mas sim um Auto das Barcas composto de três partes ‒ Inferno, Purgatório e Glória ‒, à maneira da Divina Comédia, de Dante, inspirador de Gil Vicente para a estrutura da obra[2], sendo que, no florentino, é Paraíso, e não Glória, a designação do espaço de bem-aventurança.

Outra divergência de fundo do investigador, relativamente à profligada erudição vicentista prende-se com a ideia feita de que as personagens do Mestre seriam tipos (sociais), isto é, apresentando feições características de diferentes grupos integrantes da sociedade coeva, representá-los-iam: o Fidalgo, o Usurário, o Frade, o Judeu, etc.[3] Para Noémio Ramos, que encontra na Suma Teológica de Tomás de Aquino a fonte de Gil Vicente no domínio da doutrina moral da Igreja, as personagens vicentinas são alegorias de pecados de que o doutor da Igreja elaborou exaustiva catalogação. E apoia a sua tese em numerosas e extensas citações, que, aliás, seja dito à conta de crítica benévola, talvez devessem ter sido resumidas pelo autor, poupando ao seu leitor uma leitura bastas vezes algo fastidiosa. O mais curioso da questão é que tal tese, parecendo entrar em contradição com o reconhecimento de Gil Vicente como digno representante da nossa Renascença (o teocentrismo e a religiosidade, em geral, são mais próprios da mentalidade medieval)[4], vai, no entanto, e por interposto pecado, ao encontro de uma mais tardia concepção da personagem teatral, que terá uma das suas concretizações mais exemplares quiçá na comédia de caracteres de Molière, em pleno século XVII, com o Tartufo, o Avarento, etc.

Seja como for, Noémio Ramos fustiga, por um lado, o zelo com que a “elite de eruditos” sonega ao público os “dados da pesquisa científica”, onde se incluem as “fontes”[5], e, por outro, os “sucessivos académicos de renome, em geral responsáveis pela Educação em Portugal, que cimentaram as ideias de religiosidade e devoção das obras de Gil Vicente (politicamente impostas em 1562, seguindo as orientações do Concílio de Trento), muitos e diversos palpites e as mais fantasiosas ideias sobre o Autor e o seu Teatro, inculcadas na História da Literatura Portuguesa, ainda hoje cristalizadas nas enciclopédias, produzindo grande lamaçal na Internet, nos manuais escolares, etc. […]”[6].

Tese cara a Noémio Ramos, e tese apoiada em “demonstrações”[7] é a de que a obra de Gil Vicente se apresenta como uma “história da Europa”. Veja-se, a título de exemplo, em Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531, e Sobre o Auto da Índia[8], de que modo o autor defende a interpretação segundo a qual o Auto da Índia, criado e encenado em 1509, celebraria a vitória portuguesa na Batalha Naval de Diu, ocorrida em 3 de Fevereiro desse mesmo ano, sendo que as personagens em cena, dotadas de dimensão alegórica, representariam, entre outros, o povo português, Espanha e a baixa nobreza portuguesa[9]. De igual modo, no caso em análise, “Gil Vicente procurou realizar, com o todo do Auto das Barcas, uma Peça de Teatro para representar o momento histórico e cultural, político e ideológico do seu Tempo, com um objectivo equivalente ao reconhecido estatuto sócio-cultural que obteve o Poema de Dante, denominado Comédia, para o Tempo e momento histórico, cultural e político, do poeta florentino”[10]. É assim que Noémio Ramos vê na figura do Frade folião, que entra em cena com Florença pela mão, nada menos do que o Papa Leão X (nascido a 11 de Dezembro de 1475, em Florença, e falecido a 1 de Dezembro de 1521, em Roma)[11] e na figura do Sapateiro não um consertador de calçado, mas sim (pasme-se!) um banqueiro. Com efeito, “Sapateiro era, naqueles tempos, o epíteto injurioso ‒ a contumélia ‒ dado aos Banqueiros, e daí a ira nesta figura”[12].

Definitivamente, é um dramaturgo imbuído da mentalidade dos novos tempos, profundo conhecedor da realidade europeia e empenhado na denúncia da corrupção reinante que irrompe desta leitura de Noémio Ramos, em oposição à imagem tradicional que dele nos legou o ensino ‒ mais conforme à de animador da corte, decerto lúcido, mas ainda assim muito apegado ao pensamento medieval: “GV configura [no Auto das Barcas], não uma moralidade medieval, mas uma Comédia altamente erudita, que, na sua habitual humildade, ao se referir a si próprio, a Autor denomina por Auto de moralidade […]. Salta à vista a incongruência de classificar a peça como obra maior da Idade Média europeia, quando Gil Vicente retoma a Comédia de Dante, avança com a crítica da época à filosofia de Tomás de Aquino (tal como Erasmo, mas com outra perspectiva e fundamentos) e apresenta a glória artística de Florença com o representante familiar dos seus mais destacados mecenas, trazendo-a pela mão em grande esplendor. Portanto, partindo do berço (Dante) à magnificência quinhentista da Renascença.”

E é assim que a “erudição vicentista” é desapiedadamente zurzida, em toda a “simpleza” de uma “alma simples” ‒ termos com que Noémio Ramos, ironicamente, se designa e designa a sua atitude. Esperando não vir a ser desapiedadamente desancada, a alma ingénua que alinhavou estas poucas linhas impregnadas de simpleza quer chamar a atenção de Noémio Ramos para o bem que teria representado uma criteriosa revisão do seu texto, no sentido de o expurgar de indesejáveis obscuridades de expressão, de todo incompatíveis com a valia do conteúdo.

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[1] Ramos, Noémio, Sobre o Auto das Barcas de Gil Vicente – Inferno… a interpretação, Lógos, Março de 2018, p. 4

[2] “[…] reconhecemos as semelhanças: pela estrutura global da peça, Gil Vicente segue a Comédia de Dante, apresentando os principais vícios capitais na primeira parte, Inferno.” (p. 38). “[…] a Divina Comédia, de Dante, constitui apenas um dos recursos de suporte do Auto das Barcas, de Gil Vicente, e é de facto uma das ditas ‘fontes’ que a erudição vicentista tem subtraído ao leitor comum.” p. 43

[3] “[…] somos obrigados a descartar a ideia de figuras tipo, uma ideia que com muita insistência a erudição vicentista tem induzido no público em geral […]. As personagens são simplesmente alegorias aos pecados capitais.” p. 48

[4] Será conveniente recordar que o Renascimento italiano precede em muito o ibérico.

[5] P. 12

[6] P. 23

[7] “demonstração” é, justamente, o título de um dos capítulos da presente obra, que explica em pormenor a ‘démarche’ interpretativa do autor.

[8] Ramos, Noémio, Gil Vicente, Carta de Santarém, 1531, e Sobre o Auto da Índia, Edição Inês Ramos, 2010, p. 44 ou ainda www.gilvicente.eu

[9] https://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt/a-farsa-chamada-auto-da-india-em-46296

[10] P. 44

[11] “[…] Gil Vicente figura na personagem o Papa Leão X e se, ainda assim, alguém quiser colocar quaisquer dúvidas, o nome de Florença para a dama desfaz as hesitações” p. 92

[12] P. 78