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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

TABU E IMPERATIVO CATEGÓRICO

Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão: porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão. Êxodo, 20, 7

É em Totem e Tabu, capítulo/ensaio II, que Freud identifica o tabu dos povos primitivos com o “imperativo categórico”, o dever kantiano.

«Trata-se […] de toda uma série de restrições a que se submetem esses povos. Isso ou aquilo é proibido, não sabemos porquê e também não lhes ocorre fazer a pergunta; eles apenas as cumprem como algo óbvio, e estão convencidos de que uma transgressão será punida automaticamente, de forma severa. Há relatos confiáveis de que a inadvertida desobediência a essa proibição foi realmente punida de forma automática. O inocente infractor – que comeu de um animal para ele proibido, por exemplo – fica profundamente deprimido, aguarda sua morte e então morre de facto. A maioria das proibições diz respeito à capacidade de fruição, à liberdade de movimento e comunicação. Em muitos casos parecem dotadas de sentido, indicam evidentemente certas abstinências e renúncias; em outros casos são de teor incompreensível, contemplam detalhes sem valor, parecem de natureza inteiramente cerimonial. […] é denominado tabu […] algo simultaneamente sagrado, acima do habitual, e perigoso, impuro, inquietante.

«Nessa palavra e no sistema que ela designa se exprime algo da vida psíquica, algo cujo entendimento ainda não está ao nosso alcance. Antes de tudo, parece difícil nos aproximarmos desse entendimento sem examinar a crença em espíritos e demónios, peculiar a essas culturas tão remotas.

«Mas por que devemos voltar nosso interesse para o enigma do tabu? Acho que não apenas porque todo problema psicológico é digno de uma tentativa de solução, mas também por outros motivos. Suspeitamos que o tabu dos selvagens polinésios não se acha tão longe de nós como pensávamos inicialmente, que as proibições morais e tradicionais a que obedecemos poderiam ser essencialmente aparentadas a esse tabu primitivo, e que o esclarecimento do tabu lançaria luz sobre a obscura origem do nosso próprio “imperativo categórico”.»

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Está fora de questão abordar aqui e agora toda a extensão dos quatro ensaios que Freud reuniu sob o título Totem e Tabu. O seu alcance e profundidade são tais que o leigo se sente compelido, em caso de necessidade, a fazer pouco mais do que a sua síntese vagamente comentada. De resto, o intuito do post é apenas o de insinuar (!…) uma aproximação do conceito de tabu à reacção tantas e tantas vezes verificada, de cada vez que se aborda a problemática da crença religiosa numa rede social. Dir-se-ia que não é apenas incómodo que o crente sente, ao ver a sua crença posta em causa por ateus e outros hereges; é, antes, um sentimento híbrido e contraditório. Por um lado, ele experimenta e exprime solidariedade activa com o seu Deus, cuja existência vê ser posta em causa pelo estranho; por outro lado, sente que, se não o fizer, estará como que a pactuar com uma força demoníaca e, por via disso, a desrespeitar os Mandamentos da Lei de Deus; por outro lado, ainda, e como consequência dos anteriores, o crente sente, provavelmente e em casos extremos, o desejo de fulminar o descrente, embora renuncie facilmente ao seu eventual ímpeto destruidor por receio de incorrer na desobediência ao quinto dos Dez Mandamentos.

Discutir a crença é tabu e, para o crente, o dever de honrar o seu Deus é imperativo, incompatível com a ligeireza do debate numa rede social. Apenas em situações formais, claramente definidas, e garantida a presença de “autoridades” na matéria, quer do lado da crença quer do lado oposto, o crente aceitará pacificamente a discussão, sendo que a presença de “autoridades” em matéria religiosa funciona como factor caucionante e desculpabilizante da sua própria participação, ainda que como mero espectador.

Tabu e imperativo categórico encontram, assim, no debate institucional reservado às “autoridades”, numa espécie de retorno às fronteiras impostas pela escolástica medieval, o seu ambiente. Ao “magister” inimigo de Deus tolera-se a presença e o discurso subversivo, desde que diante dele se encontre o “magister” canónico, advogado de defesa da boa doutrina. Àqueles que, como o autor do post, se apresentam despojados das insígnias do conhecimento certificado e se aventuram a fundar as suas congeminações em citações de cientistas de que talvez apenas tenham um conhecimento superficial, denega-se a legitimidade imprescindível num debate que ultrapassa os estreitos limites da razão humana e entra pelos terrenos metafísicos de que apenas a fé (com a sua dispensa das leis a que o confronto com o mundo físico nos habituou) é dona e senhora.

Enfim, se o imperativo categórico kantiano é a lei moral em que se fundamentam os preceitos morais, o tabu é, no debate religioso e para muitos crentes, a lei que penaliza as violações da sacralidade. Assim como o dever moral se não compadece com a consideração de circunstâncias conjunturais que visem, por exemplo, o afastamento de consequências indesejáveis, também o tabu é, no debate religioso e para muitos crentes, a expressão de uma restrição à violação inaceitável da sacralidade, já que esta se situa num patamar que, como a lei moral fundamental, é insusceptível de compaginação com a problematização conjuntural ou circunstancial. A sacralidade é o imperativo categórico do crente; o tabu é o mecanismo que assegura a preservação da integridade da crença e a manutenção do equilíbrio psíquico do seu detentor (ainda que seja discutível associar compromisso neurótico com a realidade a equilíbrio psíquico…).

GUERRAS DE RELIGIÃO / GUERRAS DE… ATEÍSMO

Acredito que, com muita frequência, a religião tenha sido, e ainda hoje possa ser, mais pretexto do que causa genuína de conflito violento. Interesses puramente materiais, territoriais ou outros, estiveram certamente em jogo em muitos dos conflitos que envergaram o disfarce religioso para lograrem uma legitimação que, de outro modo, seria mais problemática. Há, contudo, um rasto sangrento infindo e indesmentível relacionado com as diferenças de credo, ao longo da História. No passado, foram as Cruzadas que opuseram cristãos e muçulmanos (por vezes, judeus também, apanhados de ricochete, por via da sua proverbial liquidez financeira), numa contenda que durou cerca de dois séculos e ficou marcada por episódios que não lembrariam ao Diabo. Na sua Uma Pequena História do Mundo, capítulo 23, E.H. Gombrich escreve:

«Quando, depois de longos anos de batalhas e dificuldades inimagináveis, [os cruzados, que tinham partido em 1096, liderados por Godofredo de Bouillon] chegaram por fim às muralhas de Jerusalém, diz-se que ficaram tão comovidos ao ver a Cidade Santa, que só conheciam da Bíblia, que começaram a chorar e a beijar o chão. Depois sitiaram a cidade. Os soldados árabes defenderam-na com valentia, mas os cruzados acabaram por conquistá-la.

«Infelizmente, depois de entrarem em Jerusalém não se comportaram nem como cavaleiros nem como cristãos. Massacraram todos os muçulmanos e cometeram atrocidades horríveis. Depois, penitenciaram-se por isso e, cantando salmos, dirigiram-se para o túmulo de Cristo.»

Às cruzadas seguiram-se as guerras entre católicos e protestantes, que devastaram a Europa dos séculos XVI e XVII. Em História Breve da Humanidade, capítulo 12, Yuval Noah Harari refere que

«Todos os envolvidos aceitavam a divindade de Cristo e o seu evangelho de compaixão e amor. No entanto, discordavam quanto à natureza desse amor. Os protestantes acreditavam que o amor divino era tão grande que Deus tinha encarnado e permitido que fosse torturado e crucificado, assim redimindo o pecado original e abrindo os portões do Céu a todos os que professassem a sua fé n’Ele. Os católicos defendiam que a fé, ainda que essencial, não era suficiente. Para entrarem no Céu, os crentes tinham de participar nos rituais da Igreja e praticar boas acções. […]

«Estas disputas teológicas tornaram-se tão violentas que, durante os séculos XVI e XVII, católicos e protestantes mataram-se uns aos outros às centenas de milhares.»

Em pleno século XX, ainda a Irlanda do Norte se debatia com o infindo antagonismo entre a burguesia protestante e o proletariado católico.

Na actualidade, cristãos e muçulmanos guerreiam-se na Nigéria e no Norte de África; no Iraque, são os xiitas e os sunitas; budistas e muçulmanos, na Tailândia; judeus e muçulmanos, em Israel e na Palestina.

Quanto a guerras em que se tenham envolvido ateus, em razão de divergências atinentes ao seu ateísmo, indaguei.

Mas não encontrei.

REFLEXÃO MUITO BREVE SOBRE ARTE E CRÍTICA

REFLEXÃO MUITO BREVE SOBRE ARTE E CRÍTICA

Há relações inevitáveis entre o ser social do escritor e a sua prática literária. As tendências conhecidas como “arte pela arte”, ou “arte pura”, que pretendem arredar das expressões artísticas as preocupações sociais, traduzem uma opção política vincadamente alienante. Uma arte que se desliga do homem concreto e das suas preocupações materiais para se limitar a vogar nas regiões etéreas da fantasia é uma arte que se põe, objectivamente, ao serviço do statu quo e que abdica de desempenhar um papel na caminhada da humanidade para um futuro melhor. Não que a arte deva subscrever um programa político, ou sequer cingir o seu foco às problemáticas sociais. Isso constrangê-la-ia a alienar parte substancial da sua função encantatória e das virtualidades que encerra no domínio da defesa emocional, relativamente ao impacto de uma realidade demasiado dura para ser enfrentada sem criteriosas pausas. Neste sentido, a arte pode mesmo avantajar-se à forma mais tradicional da fuga, que é o compromisso neurótico proporcionado pela religião. Ela deve, contudo, saber interpretar os interesses mais legítimos da parcela de humanidade que esteja ao seu alcance e a eles vincular-se. Neste sentido, uma arte poética ou romanesca que, de forma clara ou velada, intenta promover valores deletérios, seja em termos políticos, seja em termos morais, e, no caso da arte pela arte, parecendo mesmo ignorar o que sejam valores, excepção feita do esteticismo (a rebusca formal é tudo o que conta) é uma arte objectivamente ao serviço da manutenção de relações de dominação económica, social e política de uma parte da sociedade sobre outra (para não usar a terminologia mais corrente).

A crítica dominante, a que sacrifica aos deuses do neoliberalismo, verá nesta tese uma óbvia contaminação de preconceitos políticos herdados de eras volvidas; tê-la-á por execranda. Reservo-me o direito de pensar que a crítica institucional defende teses contaminadas por uma ideologia que faz uso do termo “liberdade” como santo-e-senha para justificar todas as atrocidades – o que tenho por execrando.

 

APONTAMENTOS SOBRE RELIGIÃO, FILOSOFIA E POLÍTICA

MON DIEU, LA BIBLE!

On peut lire des textes religieux, mais il vaut mieux se garder d’une exposition trop prolongée à ce type de lectures. 

Je ne crois pas que, lors de mon enfance et de l’apprentissage de la doctrine chrétienne à l’école primaire (c’était une école qui appartenait à une église évangélique méthodiste), j’aie entendu parler des préceptes abominables de l’Ancien Testament, que l’on peut comprendre dans le contexte de l’époque reculée où ils ont été conçus par nos ancêtres, mais qui transmettent l’idée d’un Dieu non moins sauvage que ses créatures. Un Dieu si méprisable, d’ailleurs, que les chrétiens (pour me restreindre à ceux-ci) font preuve d’une énorme générosité, en lui pardonnant ses indignités. Ou peut-être d’une énorme ignorance (ont-ils lu leur livre sacré d’un bout à l’autre ?). Ou encore, éventuellement, d’un énorme besoin de préserver leurs attaches au père – méchant, mais protecteur, malgré tout. Le pasteur avait probablement le bon sens de juger les préceptes divins à tel point inconcevables et incompatibles avec l’idée d’un Dieu décent qu’il choisirait les versets et les épisodes les plus anodins.

Freud, qui a étudié les origines du phénomène religieux, en remontant jusqu’aux époques les plus reculées de l’histoire de notre espèce (la magie, la pensée omnipuissante, le totémisme, le polythéisme, le monothéisme) démonte parfaitement les mécanismes psychiques qui ont conduit l’humanité à la croyance et aux pratiques religieuses qu’il considère comparables à la névrose obsessive. Il observe, d’autre part, dans «Moïse et le Monothéisme», que Jéhovah était, probablement, à l’origine, un dieu barbare du volcan, pour les tribus qui vivaient dans la région occupée par les hébreux lors de l’exode, ce qui expliquerait le caractère barbare des récits de L’Ancien Testament.

Ceci dit, j’ai moi-même imaginé une «Genèse» aux contours fort différents de ceux du récit biblique et je m’occupe, depuis plus d’un an, non pas de ces aspects plus ou moins absurdes des récits mythiques  et de toutes les cosmogonies, mais plutôt de la nature profonde et du pouvoir immense du phénomène religieux (véritable « force matérielle »), ainsi que de notre inépuisable attraction pour la fantaisie. Tout le monde connaît le pouvoir apaisant de la croyance, lors d’événements funestes, tels que le décès d’un proche. Le marxisme a également compris le besoin de la religion dans un monde sans esprit – un opium qui nous fait rêver d’un monde meilleur, ce qui aide à supporter l’exploitation et toutes les injustices «ici-bas». Certains auteurs (Edgar Morin, par exemple, mais aussi le poète T.S. Eliot, par exemple) nous enseignent que l’homme n’est peut-être pas capable de résister à la force pressante de la réalité ; il établit alors un compromis névrotique avec la fantaisie, cette « réserve naturelle » (Freud) de notre psychisme.

22 octobre 2021

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CRENÇA, FANTASIA, MAGIA E ARTE

«Pessoas que professam alguma fé são menos propensas a depressão e outros males», diz um comentador do grupo Freud e Nietzsche. Creio que tem razão. Mas circunscrevo a minha concordância ao actual estado de desenvolvimento civilizacional. Freud pronuncia-se sobre a questão em O Futuro de uma Ilusão, ou O Mal-Estar na Civilização, sublinhando a importância do factor educacional e do banho cultural. Não podendo agora localizar a referência com exactidão, penso não errar, dizendo que Freud postula uma atitude bem diferente, se não nos fossem inculcadas, desde a mais tenra idade, as crenças herdadas do passado.

Dito isto, quem tem o amparo de uma crença enfrenta, de facto, as adversidades da vida com uma confiança que falece ao não crente. Não surpreende, pois, que o homem se evada permanentemente para esse território a que Freud (mais uma vez, se não erro) chamou "reserva natural" da fantasia. O sonho, a fantasia, o mito são, por assim dizer, "consubstanciais" ao ser humano, o que, a meu ver, não invalida que o crente, em sentido religioso, por mais resistente que seja à depressão, não deixa de padecer daquilo a que Freud ainda, e agora a expressão é garantidamente dele, chamou "neurose obsessiva universal". Em suma, o crente é alguém que logra o equilíbrio emocional, na melhor das hipóteses, abdicando da razão ("credo quia absurdum", creio porque é absurdo", Tertuliano) para confiar numa entidade inexistente a quem atribui poderes sobrenaturais capazes de o subtrair às incertezas do presente e do devir num universo em que o homem está irremediavelmente só e entregue a si mesmo e às forças naturais que não controla; na pior das hipóteses, o crente obtém esse equilíbrio graças à prática compulsiva de rituais ilusoriamente tendentes a convocar a benevolência, a ajuda e a protecção divina. Quanto à evasão pela fantasia e pelo sonho, a arte serve-lhe de veículo, hoje como sempre, se bem que a sua dimensão "mágica" («Toda obra de arte ainda conserva o selo de sua origem mágica.» Adorno), patente na sua primitiva "utilidade" instrumental para a caça, tenha posteriormente sido substituída pela «ilusão com efeitos emocionais»: «Apenas num âmbito a “omnipotência dos pensamentos” foi conservada na nossa cultura, no âmbito da arte. Unicamente na arte ainda sucede que um homem consumido por desejos realize algo semelhante à satisfação deles, e que essa actividade lúdica provoque – graças à ilusão artística – efeitos emocionais como se fosse algo real. As pessoas falam, com justiça, do feitiço da arte, e comparam o artista a um feiticeiro. Mas essa comparação é talvez mais significativa do que pretende ser. A arte, que certamente não iniciou como l’art pour l’art, esteve originalmente a serviço de tendências que hoje se acham em grande parte extintas. Entre elas, podemos suspeitar, muitas eram intenções mágicas.» (Freud, Totem e Tabu).

21 de Novembro de 2021

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O materialismo de Freud e o de Marx

No marxismo, Freud censurava, sobretudo, o relativo alheamento em relação à vida psíquica do indivíduo, uma vez que o materialismo dialéctico, por definição, põe a tónica na chamada infra-estrutura, isto é, nos meios e relações de produção e reprodução da vida material e nas relações que se estabelecem entre esta infra-estrutura e a super-estrutura - ideologias, crenças, "ordem moral", ordenamentos jurídicos, organização estatal, etc. Como é evidente, o materialismo do psicanalista Freud não podia aceitar a desvalorização do factor psíquico. Por outro lado, no Preâmbulo Primeiro (anterior a Março de 1938) a «Moisés e o Monoteísmo», ele escreve: «Na Rússia soviética iniciou-se o empreendimento de elevar a melhores formas de vida cerca de 100 milhões de pessoas que eram mantidas em opressão. Houve audácia suficiente para as privar da "droga" da religião e sabedoria bastante para lhes dar uma medida razoável de liberdade sexual, mas, ao mesmo tempo, submeteram-nas à violência mais cruel e roubaram-lhes toda a possibilidade de pensamento livre». Assim, o pai da psicanálise também mostra discordância em relação à ditadura do proletariado. Todavia, conforme explica Wilhelm Reich, «Como qualquer outro fenómeno social, a psicanálise está ligada a uma determinada etapa do desenvolvimento social; encontra também a sua condição de existência num dado nível das relações de produção. Como o marxismo, é um produto da era capitalista; mas não está tão directamente ligada à base económica da sociedade; no entanto, os laços indirectos que a ligam à base económica da sociedade podem ser claramente postos em evidência: a psicanálise é uma reacção às condições culturais e morais em que vive o homem social. Neste caso, uma reacção às condições sexuais tal como resultam das ideologias religiosas.» Por sua vez, Sérgio Augusto Franco Fernandes (em A complexa relação entre a Psicanálise e o Marxismo, REVISTA OLHAR, ANO 03 . N.º 5-6, Jan.-Dez. /01, http://www.ufscar.br/~revistaolhar/pdf/olhar5-6/sergio.pdf) esclarece o seguinte: «Para Freud, a força do marxismo estaria na indicação da influência decisiva que as circunstâncias económicas dos homens teriam sobre suas atitudes intelectuais, éticas e artísticas, fazendo que, a partir disso, se descobrissem inúmeras correlações e implicações que antes não haviam sido feitas. Contudo, para o referido autor, não se poderia supor que os motivos económicos fossem os únicos que determinariam o comportamento do indivíduo na sociedade: “É completamente incompreensível como os factores psicológicos podem ser desprezados, ali onde o que está em questão são as reacções dos seres humanos vivos.”»

Convém aqui esclarecer ser falso que, para Marx e os marxistas, «os motivos económicos fossem os únicos que determinariam o comportamento do indivíduo na sociedade». Os marxistas sempre consideraram haver implicações recíuprocas entre infra-estrutura e super-estrutura, ainda que, em última análise, seja a primeira a determinante, ideia que o próprio Freud, tão sujeito a adversidades de natureza económica, provavelmente não enjeitaria.

Enfim, Freud e Marx são materialistas, mas o seu materialismo exprime-se em domínios diversos e de forma diversa.

22 de Novembro de 2021

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Afogamentos

«Acusado de heresia, [Giordano Bruno], predecessor de Galileu, foi queimado vivo, em Roma, no ano de 1600. Afirmava Bruno que as estrelas no céu eram tão numerosas que o nosso Sol deveria ser uma entre muitas. Decerto que essas outras estrelas também teriam uma multitude de planetas a orbitar em torno delas, alguns dos quais poderiam mesmo ser habitados por outros seres.

A Igreja manteve-o preso sem julgamento durante sete anos, depois mandou despi-lo, passeá-lo nu pelas ruas de Roma, atar-lhe a língua com uma tira de couro e amarrá-lo a um poste de madeira. Foi-lhe dada uma última oportunidade de se retractar, mas Giordano Bruno recusou-se a mudar de ideias.»

Michio Kaku, «O Futuro da Humanidade»

Tentar persuadir um crente sincero de que Deus não existe é como procurar convencer um náufrago a desfazer-se da bóia a que se agarra no meio duma tormenta: ambos confiam que serão salvos e essa confiança dá-lhes força – ao náufrago, para nadar até à praia; ao crente, para resistir ao impacto do real e à nossa incontornável solidão no Universo. Se chegar à praia, o náufrago morrerá, provavelmente, de exaustão, a menos que a mão humana o agarre e lhe proporcione tratamento médico adequado; o crente mortifica-se, na sua “caminhada terrestre” para merecer um ilusório perdão e um lugar à direita do Pai. Infelizmente, morrerá sem remissão, pois o Juízo Final está entravado por trâmites processuais irresolúveis nos próximos milénios e o Pai não tem mãos a medir.

Dito isto, nem se nega a bóia a um náufrago nem a compreensão a um crente. O tempo encarregar-se-á de nos proporcionar meios de salvamento mais eficazes do que a bóia e fantasias sem a carga neurótica da metafísica. Até lá, que nos seja permitido emitir opiniões sem suscitar reacções de tipo inquisitorial. As fogueiras são excelentes para um bom churrasco no Verão. Reservemo-las para o frango e as sardinhas.

30 de Novembro de 2021

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Ilusão e incerteza

Todos sabemos, por experiência própria, que a percepção do mundo físico pelos sentidos varia com as circunstâncias. Para dois amigos que mergulham na mesma praia, à mesma hora, a água pode estar fria para um, quente para o outro. Passar-nos-ia pela cabeça dizer que a água é uma ilusão dos sentidos, pois a mesma coisa não pode ser simultaneamente quente e fria? Claro que não. E, no entanto, era isso que dizia o bispo Berkeley, no princípio do século XVIII:

«A matéria não é o que acreditamos pensando que existe fora do nosso espírito. Pensamos que as coisas existem, porque as vemos, porque lhes tocamos; é porque nos dão essas sensações que acreditamos na sua existência.

Mas as nossas sensações não são mais do que ideias que temos no nosso espírito. Pelo que os objectos que percebemos através dos nossos sentidos mais não são do que ideias, e as ideias não podem existir fora do nosso espírito.» (“Diálogos de Hylas e de Philonous”)

Apesar de o raciocínio nos parecer algo bizarro, ainda hoje, volvidos três séculos, persiste uma corrente de pensamento que parece menosprezar as evidências das leis naturais e apostar em demonstrar que tudo não passa de ilusão e incerteza.

Não indo ao ponto de negar as diferenças que cada um de nós experimenta, a partir dos estímulos do mundo físico, o facto é que os nossos sentidos são o instrumento que nos permite apreender a realidade, realidade essa que existe mesmo, independentemente da apreensão que dela possa ser feita.

"Absolutizar" a diferença sensorial, ao ponto de pôr em dúvida a concretude do mundo físico em que nos movemos é a estratégia histórica das filosofias idealistas, que, no limite, negam a existência da própria matéria, como o fez Berkeley.

Claro que a teoria das cordas, insusceptível, para já, de comprovação, admite a existência de mais seis dimensões (invisíveis), para além das quatro que conhecemos (comprimento, largura, altura e tempo). A seu tempo, a ciência a confirmará ou infirmará, sendo certo que os nossos sentidos e os instrumentos que os apoiam nas tarefas de observação e de experimentação têm como objecto o mundo físico tal como ele é comprovável na actualidade. Se um dia, assim como descobrimos que a Terra é esférica e não plana, descobrirmos que o tempo não é rectilíneo, mas sim circular (a ciência debruça-se sobre esta hipótese), cá estaremos para actualizar os nossos compêndios, sem grandes estados de alma.

Até lá, não queiramos relativizar a nossa relação ao mundo a ponto de nos fazer duvidar se nós próprios existimos ou se não seremos tão-só o pensamento de sermos. Creio que alguém terá dito que a melhor maneira de provar a Berkeley que estava errado era pôr um cão a morder-lhe as canelas. Pouco provável que ele considerasse a mordedura uma ideia, ou ilusão dos sentidos.

Pela parte que me toca, vou aquecer o jantar, que ao meu estômago não basta a especulação filosófica. Diz-me ele que a sensação de carência é mais do que ilusão dos sentidos.

2 de Dezembro de 2021

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Sobre a inconveniência de discutir a religião

Noutros tempos, discutir os dogmas religiosos levava à privação de liberdade, à tortura, à fogueira. Esses tempos de intolerância passaram à História, mas parecem ter deixado um rasto. Difícil de apagar.

Por muito incómodo que possa continuar a ser, para alguns, o facto é que o debate religioso é uma das questões centrais de todos os tempos. Por duas razões: primo, porque se prende com a dicotomia fundamental da filosofia (Idealismo vs. Materialismo), razão pela qual banir a religião do debate filosófico é abdicar da filosofia; secundo, porque a crença, para além de traduzir uma particular cosmovisão, delineia toda a arquitectura económica, política e social (sobre a Índia, escreveu Marx: «para redigir a sua história, bastaria escrever a história das suas religiões»).

Não sendo compartimentos estanques, estes domínios – o económico, o político e o social – têm implicações mútuas. Pela minha parte, subscrevo a tese de que o factor material (a economia) é, em última análise, decisivo na definição do nosso ser social, por mais difusa que a sua relação com os outros factores se possa encontrar na complexa tessitura civilizacional. Assim sendo, crer ou não crer (em sentido religioso, claro) é susceptível de modificar a nossa atitude perante os outros e perante o mundo que nos rodeia. Se a minha crença me dá a perspectiva de uma recompensa post mortem, isto é, da “salvação”, da vida eterna no Céu, é natural que eu me conforme com as agruras e as injustiças deste mundo. No limite, eu próprio me sacrificarei até ao martírio, a fim de merecer o reconhecimento divino. Se, pelo contrário, não partilho desta visão tranquilizadora (e anestesiante – perdoe-se-me a crueza marxista!), serei tentado a lutar pela felicidade na Terra, enquanto por cá me atardo, o que poderá ser inconveniente para os beneficiários das tais injustiças.

Como não discutir, então, a crença?

E discutir não significa ofender. Discutir significa expor ideias, que convergem ou divergem aqui e ali, num esforço de compreensão do outro, sem que isso implique abdicação do intuito de o levar a reconhecer que a sua posição ideológica padece de uma ou outra fraqueza. Se as duas partes não estivessem convencidas de ter razão, a discussão seria inútil, pois tal significaria que ambas pensavam o mesmo. Rejeitar a discussão significa, isso sim, alguma falta de confiança na nossa própria convicção ou alguma má-fé.

Vem a propósito citar um episódio ocorrido em 1981, por ocasião de uma conferência organizada pelos Jesuítas no Vaticano, para a qual foram convidados vários especialistas em cosmologia e tendo como pano de fundo o “arrependimento” pela condenação de Galileu e da teoria heliocêntrica. É Stepehn Hawking quem o relata na sua Breve História do Tempo:

«No fim da conferência os participantes foram recebidos em audiência pelo papa, que lhes disse que estava certo estudarem a evolução do universo desde o big bang, mas que não deviam inquirir acerca da natureza do big bang, porque tinha sido o momento da criação e, portanto, trabalho de Deus.»

O que satisfez Hawking foi o papa ter ignorado a sua contribuição para a conferência. É que

«a possibilidade de o espaço-tempo ser finito, mas ilimitado […] significaria que não tinha tido um princípio e que não havia qualquer momento de criação.»

E conclui:

«Não tinha qualquer desejo de partilhar a sorte de Galileu, com quem me sinto fortemente identificado, em parte devido à coincidência de ter nascido exactamente trezentos anos depois da sua morte!»

O que, neste episódio, releva é a permanente tentativa da Igreja de pôr um freio à curiosidade científica. Fé e ciência: incompatíveis.

Enfim, abdicar-se de discutir a religião, em benefício da filosofia, é abdicar de discutir seja o que for, pois nada do que é humano é estranho à filosofia. Por essa ordem de ideias, não deveríamos discutir a propriedade dos meios de produção, nem a eficácia das vacinas no combate às doenças, nem o desmatamento/ desflorestamento da Amazónia, nem nada. Ficar-nos-íamos pelos consensuais “gostos não se discutem”, “paz e amor”, abdicando de discutir fosse o que fosse, para não corrermos o risco de ofender.

Quanto a discutir Freud e Nietzsche sem discutir Deus e a religião, isso significaria, muito simplesmente, amputar ambos de uma parte tão significativa e fundamental das respectivas obras que equivaleria a matá-los, a eles que mataram Deus.

8 de Dezembro de 2021