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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

DA COMUNICAÇÃO À OPINIÃO (ou: o intricado processo de legitimação dos poderes)

I

A capacidade de formar, de informar e de influenciar os cidadãos do Estado moderno foi, desde há muito, universalmente reconhecida, e a designação de «quarto poder» veio juntar-se aos tradicionais poderes legislativo, executivo e judiciário cuja separação Montesquieu defende. Longe de ser um revolucionário, o autor de De l’esprit des lois, de 1748, aspirava a uma «monarchie tempérée», algo que, traduzido para o nosso século, equivaleria à «democracia liberal» ou ao «Estado de direito» (com rei ou presidente), isto é, ao sistema dominante no que, sem maiores especificações, poderíamos designar por Ocidente. Em cada época, a diferentes condições materiais de existência correspondem – ressalvadas todas as influências recíprocas – diferentes modos de pensar e diferentes ordenamentos jurídicos, políticos e sociais.

Se, já no Século XVIII, a imprensa desempenha um papel importante na divulgação das Luzes, nunca como hoje os massa media tiveram o poder que têm. Ultrapassado e destronado, Guttenberg foi remetido para um desprezível terceiro ou quarto lugar no campeonato universal dos meios de comunicação de massa encabeçado pela televisão, por sua vez secundada pelas redes sociais.

Se ainda estivesse entre nós, o barão de Montesquieu estaria provavelmente a defender a versão actual da sua «monarquia moderada» e a desancar a «tirania» autocrática de certos «regimes». Salvo se, como excepcionalmente acontece com os privilegiados, reconhecesse o embuste em que facilmente caímos, quando a descendência colateral da maquineta de Guttenberg nos oferece, vinte e quatro horas por dia, um manancial infindo de notícias, reportagens entrevistas e comentários que, qual feixe de luz atravessando lente convergente, incide sobre a zona que a alguns importa iluminar, deixando na penumbra ou na noite mais negra todas as outras.

Como logo se percebe, vem isto a propósito da nossa comunicação social e do papel convincente, eficaz e avassalador que ela desempenha na formação da “opinião pública”. É o processo de legitimação do poder político, do poder comunicacional e até do meu modesto poder, enquanto receptor, que importa aqui indagar, excluindo, por ora, a problemática da exploração dos bons sentimentos dos cidadãos a favor da guerra das audiências e da captação de publicidade – o que ficou recentemente bem demonstrado, aquando do caso do menino marroquino morto no fundo de um poço – e dos seus maus sentimentos, quando se trata de promover a intolerância ou o ódio para com aqueles que divergem da maioria.

II

Rendida, na sua esmagadora maioria, à versão dos acontecimentos que a televisão, em particular, profusamente lhe serve, a opinião do público, homogeneizada, adquire o estatuto de verdade incontestável. Não obstante não ter sido construída graças a um intenso trabalho de pesquisa e análise, de confrontação de dados e concomitante reflexão, essa opinião reivindica a “coincidência” com a versão dominante dos acontecimentos para justificar a sua autenticidade. O senso comum corrobora este raciocínio dedutivo, já que reconhece sistematicamente a razoabilidade da posição maioritária e vê com enorme desconfiança o que contraria o paradigma. Abundam, na história da humanidade, opiniões (um universo com quatro mil anos de existência, espécies animais e vegetais tiradas do nada tal como são hoje, casal primordial de que todos descendemos, Terra plana no centro do universo, etc.) que eram as verdades oficiais de cada época, partilhadas por multidões, e que a ciência paulatina (e sacrilegamente) desconstruiu, arrostando com a repressão, a perseguição e a morte.

Indo além disso, não se limitando a ser verdadeira, a opinião do público é ainda SUA, no pleno sentido do possessivo. Porquê? Porque, obnubilada a consciência de que a versão em causa lhe foi transmitida por um agente exterior, a opinião de cada um e de todos (de facto, da esmagadora maioria) adquire o estatuto de opinião autónoma. Autónoma, porque fundada em “dados objectivos”, constantes de reportagens e entrevistas aos quais atribui validade inquestionável; autónoma, também, porque assente num esboço de reelaboração pessoal subsequente, pouco importando que o crivo do escrutínio crítico do seu possuidor, na melhor das hipóteses, tenha intervindo muito fugazmente e não lhe tenha ocorrido questionar os critérios subjacentes às escolhas de intervenientes, de locais, de momentos. (Quem desconhece a prática televisiva que consiste em filmar zonas previamente definidas de um comício, de uma manifestação, etc., ou a entrevista informal feita a um transeunte previamente auscultado?)

Longe de lhe suscitar dúvidas quanto à genuinidade de uma opinião de facto veiculada por canais informativos que dão uma visão filtrada da realidade, (sendo que, aqui, “filtrada” é necessariamente sinónimo de “truncada”) a constatação pelo receptor de que a sua opinião coincide com a dos concidadãos, reforça a sua convicção de que ela é autónoma e de que essa coincidência a valida definitivamente. Uma vez que aquilo que lhe é, demorada e criteriosamente, instilado acaba por ser sentido como seu, o cidadão fica sinceramente persuadido de que pensa pela sua cabeça. No fundo, trata-se de um processo com muito de semelhante ao processo educativo: se a educação incute princípios, crenças e modos de ver o mundo, orientando o nosso foco observacional e condicionando o nosso comportamento, a partir da infância, os massa media “educam-nos”, na idade adulta.

A versão oficial dos acontecimentos é, pois, legitimada pelo seu carácter dominante. Sendo partilhada, ab initio, pelo maior número de receptores, duvidar da sua autenticidade, recusar a evidência mediática, constitui como que um acto de rebeldia sujeito à censura social, e o opinante minoritário é visto como elemento associal. De resto, o discurso oficial beneficia, à partida, da legitimação resultante de ser o discurso do poder político, poder este que, se hoje já não carece da bênção eclesiástica, não deixa de ser percepcionado como reflexo do poder divino na esfera temporal. Com efeito, ele usufrui de uma aura que reflecte o freudiano “complexo paterno”, com raízes na horda primitiva e no “assassínio do pai”. O sentimento de culpa / pecado é permanentemente alimentado pelo discurso religioso, de par com o dever de observância da autoridade (verdadeiro “imperativo categórico”, incondicional) já que esse poder político é o executor de um mandato outorgado pelo Criador, a fim de assegurar a prossecução dos Seus desígnios na Terra («o príncipe é ministro de Deus para bem teu». S. Paulo, Epístola aos Romanos). E todo o aparelho institucional (Igrejas, Escola, Órgãos de comunicação) participa activamente na reprodução ininterrupta dessa crença.

Recapitulando: aceite a versão oficial como verdade incontestável e assimilada à opinião pessoal de cada um, esta passa a gozar de um acréscimo de legitimação: ao invés de ser percepcionada como reflexo de uma opinião pré-existente, a adesão ao discurso oficial é sentida como coincidência deste discurso com a sua própria opinião e, se o discurso dos media coincide com a sua opinião pessoal, não só esta é necessariamente verdadeira como beneficia da carga emotiva suplementar resultante da gratidão por se ver reconhecida: não sou eu que partilho a visão dos media; são os media que partilham a minha visão dos acontecimentos. Nada poderia ser mais gratificante.

Em suma, aquilo que não passava, à partida, de uma versão truncada e tendenciosa dos acontecimentos torna-se a opinião universal, serve os interesses imediatos de uma das partes envolvidas nos acontecimentos e, de caminho, legitima um aparelho de guerra ideológica que enverga o camuflado diáfano de “órgão de comunicação social”.

III

A questão da legitimação é importante, se não mesmo fundamental, por representar um valor acrescentado de prestígio e de aceitabilidade irrecusável: o que é legítimo funda-se na razão e está naturalmente justificado.

No caso concreto da informação sobre a Rússia e a Ucrânia, nos dias que precederam a intervenção militar russa, só muito raramente uma voz dissonante se fez ouvir ou ler e introduziu os ruídos de uma “revolução laranja” que teria sido um golpe de Estado, em 2014; de um nazi de nome Stepan Bandera arvorado em herói nacional; de milícias neonazis integradas na guarda nacional ucraniana; de ataques a populações russófonas nas províncias separatistas; de um cerco à Rússia montado pela NATO, …). Todas estas notas dissonantes foram desvalorizadas, relativizadas ou silenciadas, quer pelos comentadores, invariavelmente defensores da superioridade moral do modelo de desenvolvimento económico e de organização político-social do Ocidente, quer pelo foco permanente em movimentações e entrevistas de cidadãos ucranianos, cujos receios eram legítimos e compreensíveis, mas cujas opiniões são formadas segundo modelo certamente muito semelhante àquele que nos cabe em sorte.

Após a invasão do território ucraniano pelas tropas russas, a cobertura televisiva apenas redobrou de empenhamento na promoção da sua perspectiva, desta feita, porém, gozando de uma justificação: a clara violação do direito internacional pela Rússia, facto objectivo e indesmentível.

O que retira legitimidade à justificação é que, noutras violações claras e indesmentíveis do direito internacional (na Jugoslávia, no Iraque, na Líbia, na Síria) a cobertura noticiosa primou pelo recato, pela discrição, pela urbanidade. O parti pris da visão maniqueísta mantém-se; objectividade e isenção dispensam-se.

Não se trata aqui de exprimir surpresa ou decepção; nem sequer discordância. Trata-se de constatar que é assim mesmo que a comunicação social funciona nas democracias liberais, sendo que a distinção em relação ao tratamento dado aos conteúdos informativos no regime autocrático russo passa pela comparação entre os respectivos graus de verosimilhança: a informação deste último é, em muitos casos, facilmente sentida como instrumental e inverosímil (a mensagem da comunicação social russa é muito pouco convincente), enquanto a das democracias liberais, que conta, à partida, com uma grande aceitação por parte do receptor, é objecto de um savoir-faire inegável, o que lhe confere um elevado grau de confiabilidade.

Na sua obra O Estado, Georges Burdeau explica assim a evolução do mecanismo de legitimação do poder político:

«Se os chefes dão tanto valor a que os considerem legítimos, é porque a legitimidade lhes traz um acréscimo de autoridade que eles não podem receber senão daí. Ao Poder que se impõe, ela acrescenta a qualidade que se liga a um Poder consentido, porquanto ninguém tem a possibilidade de se pretender autoridade legítima se não for reconhecido como tal. […] Enfim, ela introduz o Poder no universo mágico das representações e das crenças dotando-o de todos os prestígios que lhe vêm do que os homens julgam ser a natureza dele. Metamorfose moderna da sacralização do Poder, a legitimidade laiciza o seu fundamento sem lhe enfraquecer a solidez, visto que substitui a investidura divina pela consagração jurídica.»

Se o poder político se legitima pela consagração jurídica (agora que a “investidura divina” passou à História), o poder mediático legitima-se pela apropriação individual de que a sua mensagem é objecto: feita “opinião pública”, perdida a relação causal entre essa mensagem distorcida e a “opinião” que ela gera, o poder mediático ascende à condição de sentir do povo, de expressão da consciência colectiva. Está consumada a sua função mistificadora e alienante.

Neste contexto, os defensores de uma visão dos acontecimentos não inteiramente sobreponível à dominante são genericamente tratados como estando desfasados, fora da História, e como defensores de regimes autocráticos, quando não acusados de coisas piores. Alguns militares que se distinguiram ultimamente por introduzir no comentário televisivo variáveis de análise que se caracterizam por trazer à colação aquilo que o discurso normativo silenciara são desqualificados e sistematicamente apodados de colaboracionismo com o regime russo.

É possível descortinar nestas acusações alguma justificação, uma vez que os opinantes minoritários dão, geralmente, maior ênfase, no caso do conflito em curso, aos desmandos dos EUA/EU/NATO do que aos de Putin. Porém, dar maior ênfase a uns não significa ignorar ou aprovar os outros. Enfatizar significa, sim, que os opinantes minoritários entendem, tudo ponderado, que a parte que goza da simpatia da comunicação social dominante poderá ter (ou tem, inequivocamente) uma responsabilidade no desencadear do conflito que é geralmente ocultada, não lhes cabendo, a eles, amplificar o conhecido coro uníssono, pois, nesse caso, abdicariam de acrescentar algo à leitura oficial dos acontecimentos.

Em abono desta perspectiva, é notório que os defensores das democracias liberais omitem pormenores relevantes para uma cabal compreensão do que está em jogo:

  1. Os “regimes autocráticos”, que dizem ser defendidos pelos minoritários, são geralmente países que enveredaram por modelos de desenvolvimento económico e de organização político-social não alinhados com os do Ocidente. Como, entre os Romanos, os bárbaros, esses “regimes” não falam a língua do Império. São, por isso, sujeitos a sanções e sabotagens tais que se vêem impedidos, durante longos períodos, de ascenderem aos níveis de vida a que todos aspiramos. Os casos da Cuba socialista, da Venezuela bolivariana, da Síria martirizada, da Líbia que recuou no tempo, são casos paradigmáticos de bloqueio, embargo e acções desestabilizadoras por parte dos EUA, insensíveis às atrocidades cometidas pelos seus amigos sauditas, no Iémen, e israelenses, na Palestina. E, se a tão aclamada liberdade de expressão das democracias liberais é, de facto, fortemente condicionada em muitos “regimes autocráticos”, a honestidade intelectual suscitaria algumas perguntas e arriscaria algumas respostas: 1.º, a liberdade de expressão que nós conhecemos não é, ela mesma, o expoente máximo do condicionamento da liberdade? Parece que sim, uma vez que logra a proeza de nos levar a considerar “nossa”, “pessoal”, “autêntica”, a opinião que nos foi inculcada pela comunicação social. Por outro lado, alguém conhece algum órgão de comunicação social que dê ao contraditório o espaço mínimo necessário, não sequer para contraditar, mas simplesmente para completar a informação? 2.º, sem o condicionamento da liberdade de expressão nos tais “regimes”, seria viável um modelo de desenvolvimento e de organização político-social distinto do que vigora nas democracias liberais? O Chile de Allende, a Bolívia de Morales, a Venezuela e a Síria parecem dizer-nos que não; 3.º, a autocrática Federação Russa é equiparável a “regimes” onde, por vias diversas, se propugna a construção do socialismo? Não. O capitalismo russo não é diferente do capitalismo americano ou europeu, assim como o capitalismo da Alemanha nazi não era diferente do capitalismo das democracias ocidentais que, em 1938, e em Munique, pactuaram, pondo a União Soviética à margem. Não são diferentes, mas têm interesses próprios, contraditórios – e a geopolítica dá-lhes expressão.
  2. As pessoas que buscam refúgio e melhores condições de vida nas democracias liberais foram, quantas vezes, obrigadas a fugir das suas pátrias – vítimas do colonialismo, do neocolonialismo, das missões ditas humanitárias, de intervenções militares dessas mesmas democracias e do terrorismo que tudo isso tem incentivado, por via da humilhação a que esses povos têm sido sujeitos ao longo de décadas – para não trazer à colação as cruzadas e a defesa da fé e do império, que têm séculos de história. Relativamente ao terrorismo islâmico, como não recordar Mário Soares, que, um dia, disse não justificar, obviamente, mas não deixar de compreender, esse terrorismo, o terrorismo dos que têm a bomba, mas não o bombardeiro. O incómodo sentido por aqueles que não justificam o terrorismo, mas não se limitam a condenações liminares, porque o contextualizam no âmbito das humilhações infligidas ao mundo muçulmano, e por isso o compreendem, tem alguma semelhança com o que hoje sentem e exprimem em relação à invasão russa da Ucrânia: injustificável, mas explicável, isolá-la do contexto é apagar esse contexto. Mário Soares foi gentilmente criticado, na altura; os que hoje não justificam, mas compreendem, arriscam-se a ser lapidados.
  3. As democracias liberais, apresentadas como inultrapassáveis modelos de virtude e de bem-estar, ergueram-se e mantêm-se hoje, em larga medida, graças à exploração das riquezas alheias e de um proletariado deslocalizado para o Terceiro Mundo. De resto, para se ter uma ideia dos níveis de desigualdade e injustiça social que caracterizam a sociedade capitalista e a sua configuração democrática liberal, os números seguintes são esclarecedores: « […] os EUA oferecem um exemplo perfeito. Os 50% mais pobres possuem 2% da riqueza do país, mas o 1% mais rico, que possuía ligeiramente menos de 25% da riqueza do país no final dos anos 70, possui agora mais de 40%. E o 0,1% de americanos mais ricos, um grupo de umas 160 mil pessoas, possui cerca de 22% da riqueza do país e conseguiu captar mais de metade da riqueza gerada nos EUA entre 1986 e 2012. […] os EUA estão hoje numa situação em que o 0,1% mais rico detém tanta riqueza como os 90% mais pobres todos juntos.» O autor das palavras que acompanham estes números, tão esclarecedores quanto aterradores, é insuspeito, suponho: Daniel Susskind, autor de Um Mundo sem Trabalho, trabalhou com o Governo britânico como conselheiro político da Strategy Unit do primeiro-ministro, como analista de políticas na Policy Unit no n.º 10 de Downing Street e como analista político sénior no Cabinet Office.
  4. O afastamento do espectro da guerra na Europa, com o advento da Comunidade / União Europeia, e deixando de lado o episódio de bombardeamento e desmembramento da Jugoslávia, em 1999, tem servido de alimento à ficção de que a construção de uma Europa de paz se deve a esse processo de integração. Obnubila-se, assim, a realidade dos múltiplos conflitos em diferentes continentes que têm como causas próximas ou remotas as políticas implementadas pelo imperialismo, na sua busca constante de controlo dos recursos energéticos imprescindíveis à reprodução de uma economia predadora. As deslocalizações não se limitaram ao aparelho produtivo e ao respectivo proletariado; também as guerras foram deslocalizadas para regiões distantes, preservando o casto olhar democrático e liberal das atrocidades comprometedoras da boa consciência ocidental.

Porém, nada disto impressiona a auto-suficiência e a arrogância dos prosélitos do liberalismo ou de uma social-democracia que vai da direita educada a uma esquerda bem-pensante, acima de tudo empenhada em preservar os sacrossantos alicerces do capitalismo. Mesmo quando reclamam a herança de Jean Jaurès, esquecem-se oportunamente do discurso em que este, nas vésperas do deflagrar da I Guerra Mundial, exortando os socialistas a evitar a guerra, proferiu a célebre frase «le capitalisme porte en lui la guerre comme la nuée porte l’orage». Em 1914, como hoje, vingou a União Sagrada dos prosélitos de Fukuyama – com o capitalismo, a História chegou ao fim.

«Metamorfose moderna da sacralização do Poder, a legitimidade laiciza o seu fundamento sem lhe enfraquecer a solidez, visto que substitui a investidura divina pela consagração jurídica», diz Georges Burdeau, a propósito da “legitimação” e da “autoridade”. A comunicação social que impera entre nós não carece da “investidura divina” e goza, naturalmente, de “consagração jurídica”, mas, acima de tudo, beneficia do processo insidioso de legitimação da sua autoridade atrás descrito. Essa “autoridade” assenta na instilação contínua de um conjunto de valores veiculados por um discurso codificado: temos um “governo português” ou uma “administração americana”, mas um “regime” cubano, russo, venezuelano… Os “oligarcas”, são quase sempre Russos que enriqueceram graças à apropriação de património do Estado, na sequência da derrocada da URSS, e que têm influência na condução do país, mas alguém alguma vez ouviu chamar “oligarca” aos banqueiros, aos gestores, aos ministros e outros responsáveis políticos e respectivas famílias que, se não conduziram à derrocada da República, têm-na comprovadamente prejudicado, locupletando-se com o dinheiro de todos nós e deixando-a no estado que sabemos?

Termos em que, mais do que órgãos de comunicação social, temos órgãos de mistificação social, o que é natural, numa democracia em que os cidadãos gozam da ampla liberdade de votar livremente naqueles que os ludibriam e exploram, graças à preciosa cooperação da tal comunicação social.

Surpreendente? Nem por isso. A comunicação social ou é propriedade privada dos detentores de fortunas e meios de produção ou é propriedade pública do conselho de administração dos seus negócios – aquilo a que damos o nome de Estado.

20 de Março de 2022

Fernando Martins