Perversidades do Velho Testamento
O Cântico dos Cânticos é, no Velho Testamento, um texto singular, um hino ao amor. Tão poético que causa estranheza encontrá-lo no meio de tanta perversidade, crueldade e imundície. Este último termo é do Levítico, que define um considerável rol de medidas sanitárias relacionadas com o sexo. A mulher, em particular (como podia deixar de ser?!), é sujeita a um período de isolamento profiláctico de sete dias, sempre que lhe advém o mênstruo. Durante esse período, todo o contacto com ela ou com objectos em que ela tenha tocado é tido por “imundo” ou “poluto” (XV). A misoginia judaico-cristã teve aqui, certamente, uma boa fonte de inspiração, sendo certo que Eva se pôs a jeito, ao incitar Adão, no Éden, a comer do fruto da árvore do conhecimento, isto é, a contrariar o diktat divino que condenava a humanidade a um futuro sem História.
Contudo, a atitude persecutória em relação à mulher está muito longe de ser a única pecha do texto sagrado. Os apelos à crueldade mais brutal abundam, sempre que está em causa o cumprimento da vontade divina ou a fidelidade canina ao “Senhor”. É ainda o Levítico que incita à lapidação dos blasfemos (XXIV), de forma idêntica, aliás, à do Alcorão (em matéria de insensatez, os livros sagrados equivalem-se), e que “regulamenta” a escravidão (XXV). O Génesis, por sua vez, autoriza Lot a entregar suas filhas virgens aos homens de Sodoma, para que “abusem delas como lhes agradar”, salvaguardando dois anjos dos apetites homossexuais sodomitas (XIX). Seguidamente, compraz-se com a caridosa “chuva de enxofre e fogo vindo do céu” sobre Sodoma e Gomorra que mata, indistintamente, homens, mulheres e crianças, transforma a mulher de Lot em estátua de sal, por ter, ao fugir, olhado para trás, e põe as duas filhas de Lot a embriagar o pai, para com ele dormirem e, assim, “salvarem a linhagem” (XIX). Note-se, de passagem, que este Lot é autor de uma proeza de se lhe tirar o chapéu, pois, velho e embriagado a ponto de perder a consciência, logra uma performance sexual invejável, em duas noites consecutivas, só entendível graças à cumplicidade do Todo-Poderoso. Blasfémias à parte, aqui temos nova fonte de inspiração: desta feita, para o recurso ao terrorismo contra os infiéis e contra os desobedientes, bem como para o abuso sexual, tão do gosto dos vigários de Cristo como é do conhecimento público.
Sabemos que o Velho Testamento é uma compilação de narrativas heteróclitas provindas de épocas remotas e que elas reflectem usos e costumes ancestrais, bem como uma sensibilidade nada consentânea com a dos nossos dias. Também sabemos que ele tem a dimensão metafórica própria dos mitos e que é comum a muita da literatura tradicional, originalmente oral. O que impressiona e incomoda é que, malgrado a sua omnisciência, o Senhor não tenha logrado ultrapassar os estreitos horizontes civilizacionais do tempo em que lhe narraram os feitos. Ele, mais do que ninguém, tinha a obrigação de saber que, uns séculos mais tarde, aquelas teimas da misoginia e da intolerância iam ser muito mal vistas pelas consciências esclarecidas e até por muitos dos seus devotos seguidores. O que também incomoda e ofende a consciência, é que os prosélitos do cristianismo, dois milénios volvidos sobre a missionação do “Redentor”, aceitem sem pestanejar a adjunção deste manual da barbárie e repositório de episódios escabrosos aos Evangelhos do Novo Testamento. Evangelhos, aliás, que também não são isentos de perversão, ainda que num outro patamar, ou não radicassem em condições materiais e culturais substancialmente diferentes. Bastará, para disso nos certificarmos, passarmos os olhos por Lucas, que põe Jesus a exigir dos discípulos uma entrega total, com renúncia a pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, bens materiais e a própria vida (Lucas, XIV, 26 e 33) ou Paulo, que legitima a autoridade do príncipe, isto é, de todos os poderosos, por serem “ministros de Deus” (Romanos, XIII). O cordão sanitário que o Levítico prescreve para a mulher menstruada ganharia sentido sendo transposto para o Index Librorum Prohibitorum ou, agora que foi abolido, para o Índex da Opus Dei. No mínimo, dever-se-ia pô-lo ao abrigo de olhares indevidos, como sejam os de crianças, os de crentes demasiado condescendentes para com a palavra de Deus e os de padres com irrefreáveis tendências libidinosas.
Valha-nos Deus!